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quarta-feira, 3 de março de 2010

FRACASSO DA LEI-DO-PAI

Inez Lemos

Há muito que a droga entrou na sociedade como mercadoria fashion, consumo “obrigatório” entre os jovens, perdendo a dimensão onírica, utópica e sublimatória. A mania phármakon, atualizada no crack, é apenas a manifestação de questão que merece ser abordada no campo da prevenção. Freud chamou a atenção para algo que pulsa “além do princípio do prazer”. Poucos vão à festa sem de lá saírem entorpecidos por drogas lícitas ou ilícitas. Tornou-se chique embebedar-se. Há uma conotação de virilidade entre os cultuadores do álcool.

Muitos pais se esquecem de que tudo pode começar com a cervejinha - excessos nos churrascos familiares. A moda é pais permissivos que levam a vida sem querer saber o que se passa com o filho, como ele chega em casa, de madrugada. Muitos começam a beber ainda na adolescência – em festas e baladas. Os hábitos mudaram, tornou-se normal os jovens freqüentarem, ainda pela manhã, bares que rodeiam as universidades. Café da manhã à base de cerveja e coxinha.

Toxicomania é prova cabal do efeito das propagandas que vinculam bebida ao sexo. Ao se intoxicar, o jovem apenas consome um produto de dois mercados: de bens e do gozo. No contexto da sociedade de consumo - não há saber que resista ao efeito corrosivo da atuação do mercado -, o toxicômano ocupa um lugar de fragilidade. O jovem é tido como presa fácil dos traficantes. Vulnerável, suas defesas são frágeis, pois, justamente nessa época, ele está elaborando escolhas. Ninguém nasce forte em suas convicções. A implicação dos pais na formação dos filhos requer vigilância constante. Sempre haverá um resto passível de ser orientado. Freud incluiu o ato de educar entre os ofícios impossíveis de serem concluídos - é tarefa interminável.

A ação espetacular da mídia sufoca qualquer produção de subjetividade que esteja fora de seu alvo. O discurso que permeia a juventude - de que bebida é sinônimo de potencia sexual, por exemplo - opera uma fratura no sentido da vida, um deslocamento de significação. Se antes os seduzíamos pelo esporte, pela música, pelas amizades ou pela profissão, agora os enlaçamos pelo gozo mortífero das drogas. Gozar com a droga é diferente que gozar com o sexo. Estamos vendendo aos jovens um gozo falso, traiçoeiro e falido.
Criado fora da lei, sem conviver com a falta e a frustração, o jovem não suporta as restrições pulsionais que a vida impõe. Provavelmente, vai sair atropelando, agredindo e atirando nos obstáculos ao gozo. As interdições devem ocorrer quando se é bebê. Geralmente, quem não é limitado desde pequeno em seus impulsos acabará, mais tarde, limitado pela pulsão de morte. O sujeito não acaba com a vida por que usa droga, mas, inconscientemente, procura a droga como mecanismo de autodestruição. Há dimensão erótica no encontro com a morte - resíduo de gozo masoquista. É quando devemos suspeitar de nós mesmos. Como afirmou Freud: “não somos senhores nem em nossa própria casa”.

Quando o pai entrega o filho à polícia por ele, sob o efeito do crack, ter estrangulado a namorada, temos o total fracasso da lei paterna - o pai assume a impotência em sua função. O fracasso das instituições (família, escola, polícia) nos aponta a anomia. O momento é de repensar os papéis das instituições na restauração da autoridade perdida. O que leva um jovem a subverter as leis que regem a vida em sociedade, a nada temer? Quando os pais não inserem o filho na cultura, quando ele não é barrado em seus excessos, quem o faz é o Estado - no caso, a polícia.

O toxicômano rompe com a lei paterna ao se posicionar fora da cadeia significante, da ordem simbólica. Vive o gozo que “curto-circuita” a fantasia, inviabiliza o laço social e impede a emergência de sentimentos como vergonha e culpa, por exemplo. Constrangimento, responsabilidade e respeito fazem parte da concepção de alteridade, são estruturantes do sujeito. Não é normal sairmos pelo mundo agredindo os outros, desrespeitando leis sem sentirmos desconforto.

O sujeito identificado com o objeto droga internalizou a imagem de dejeto, de pouco valor. Dentro de que significantes os jovens estão sendo estruturados? Muito do que somos resulta do que vimos e ouvimos em nossa infância. Se um pai se dirige ao filho de forma despreziva, ele vai atuar a partir desse registro. Se o filho sente que o pai não prioriza seu tempo para com ele, registra que o pai não gosta dele, ou lhe atribui pouca importância. Atitudes como essas são devastadoras para o sujeito, que, com o intuito de provocar a indiferença do pai, reage com atitudes antissociais.

A violência entre os jovens cresce proporcionalmente à forma despreziva com que são tratados pela família ou pelo governo, por exemplo. A crise de autoridade que permeia as instituições reflete o fracasso do pacto edípico, quando o indivíduo recusa a ordem que sustenta a civilização – desejo de produzir e lutar por um futuro. O toxicômano é um demissionário do falo.
A única autoridade a que o toxicômano obedece é a morte. Somente ela é capaz de detê-lo em sua ensandecida via-crúcis de sofrimento. A vida sem fantasia e sem perspectivas é parceria com a morte – amiga fiel que sempre surge para salvá-lo do inferno.

A problemática das drogas se insere na mudança de lugar do pai na atualidade, quando este ocupa um espaço esvaziado de autoridade. Todo sujeito requer condições psíquicas para suportar as restrições que a cultura lhe impõe. É a lei do pai que garante ao sujeito acesso à linguagem e à cultura - quando a família refreia o gozo, os excessos. A droga entra, muitas vezes, como suplência ao fracasso da função paterna, como arremedo à ausência da lei. De forma trágica, o toxicômano acaba se defrontando com alguma forma de limite – hospital, prisão ou cemitério. O toxicômano é um ressentido da ausência de falta, um frouxo de desejo. A falta, ao mesmo tempo em que incita o desejo, o limita.

A agressividade ressituada não se inscreve apenas no campo pulsional. No deslocamento do campo pulsional para o campo do gozo, a agressividade se torna egóica na tentativa de fundar um espaço próprio. Não é o único caminho. Mas, tanto quanto menos simbolicamente um sujeito se sinta garantido, tanto mais vai apelar para outras formas de gozo. A droga é efeito do desamparo infantil frente à substituição da autoridade paterna. A questão é a relação do jovem com a ausência de lei. Por isso, muitos recorrem à religião. Como nos lembra Freud: “a relação pessoal com Deus depende da relação com o pai e que, no fundo, Deus nada mais é que um pai glorificado”.

Interessa investigar a raiz neurótica da “angústia do pai”. Muito da delinqüência remete ao desamparo original. Expressada na toxicomania, a delinqüência não reflete apenas questões subjetivas. Tornou-se um fenômeno social, uma forma de reação ao sofrimento, ao futuro morto – educação precária, desemprego, solidão. Estamos diante de verdadeira mutação cultural, de novo estatuto de ordenação do gozo.

O gozo do toxicômano se dá inseparável do próprio corpo. Não passa pelo corpo do outro, o que o torna cínico. O cínico goza à revelia do outro. Lacan vai estabelecer distinção essencial entre prazer e gozo, residindo este na tentativa permanente de ultrapassar os limites do princípio de prazer. Tal movimento, ligado à busca da coisa perdida que sempre vai faltar, é causa de sofrimento. E tal sofrimento nunca erradica por completo a busca do gozo. O gozo se sustenta pela obediência do sujeito a uma ordem, que o leva a abandonar o desejo e a se destruir na submissão ao outro. O conceito de gozo está relacionado com a lei. Essa pode ser uma relação de desafio, submissão ou de desdém.

Vários são os Nomes-do-Pai - religião, arte, esportes, trabalho. Sempre haverá um lugar simbólico que sustente o sujeito em sua relação com o objeto de satisfação. A cultura hedonista quer suprimir qualquer dimensão de sacrifício. Os toxicômanos de hoje são filhos de uma geração que, preocupada em romper com os interditos morais, acabou criando as condições para uma apologia do monopólio do gozo. Um ideal de sociedade em que os jovens podem tudo realizar. Com isso criamos uma sociedade doente.

A realização harmoniosa do gozo é aposta de apaziguamento. Contudo, a toxicomania deve migrar da delinqüência para o campo da terapêutica. O toxicômano é um ser não castrado. Castração é perda, é limite à onipotência do desejo – enfrentar o gozo em seu pacto de morte. À psicanálise, diante do gozo do toxicômano, resta operar com fantasias. Apostar na identificação com outro lugar que não seja droga, dejeto. Restaurar o encanto, o desejo por belezuras e a esperança no amor – troca afetiva e construção de futuro.

Artigo publicado em 16/01/2010 no caderno Pensar do E M.

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