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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A DOR DA INTERDIÇÃO

Inez Lemos

No filme A separação, Nader e Simim possuem posições diferentes sobre o Irã. Simim quer sair do país em busca de melhores oportunidades para a filha, Termeh. Nader prefere ficar e cuidar do pai que sofre de Alzheimer. Chama-nos atenção a forma determinada e absoluta como Nader lida com o conflito familiar. Sempre frio e certeiro em suas posições. Simim reclama da incapacidade do marido em demonstrar afeto e carinho - em nenhum momento este pediu a ela que ficasse, que desejava tê-la ao seu lado. Sem a esposa para cuidar da casa, Nader contrata uma empregada grávida. Num momento de fúria, Nader a empurra e esta alega que perdeu o bebê devido ao tombo provocado pela agressividade do patrão. Assim, somos jogados num festival de neurose envolvendo maridos, esposas e filhas. A situação de conflito em que os envolvidos não assumem responsabilidades transforma-se em palco de insanidades. E se intensifica quando ocorre em países regidos por religiões que permitem a radicalização fundamentalista.

A humanidade foi marcada por homens totalitários como Hitler, Komeini, Kadhafi - exemplos de força e violência contra os mais fracos. Contudo, mesmo que o consentimento social de que alguém deva exercer o poder de forma absoluta e autoritária seja posta em cheque – vide as últimas revoltas nos países árabes -, muitas crianças ainda crescem acreditando numa verdade absoluta e odiando todos que tentam contrapô-las ou questioná-las. Tanto no Irã como no Brasil, muitos são os exemplos de violência contra a mulher. Diante de tantas tragédias, é fundamental investigarmos como está se constituindo, em nossos filhos, o imaginário masculino.

Freud desenvolve o conceito de Weltanschauung (visão de mundo), na tentativa de explicar que toda sociedade é regida por uma construção intelectual que se impõe como referência. Ela atua como um Messias que irá solucionar os problemas existenciais de forma universal, se esquecendo que cada sujeito possui uma singularidade que o diferencia de outro, principalmente em se tratando de sentimentos e emoções. O recurso ideológico que apregoa a supremacia masculina como forma de dominação é simplista e covarde. Seguir uma “visão de mundo universal” pode, a princípio, parecer confortável - nos desincumbe de responsabilizarmos pela condução de nossas vidas.

Muitas famílias ainda educam os filhos acreditando na superioridade do gênero masculino, o que é reforçado, no dia a dia, pela dinâmica social. Poucas são as mães que cobram dos filhos
homens a mesma carga de tarefas com que cobram das filhas mulheres. Além do aspecto operacional, estas são inseridas no mundo dos sentimentos de forma diferente. A elas é permitido expressar angústias e fracassos. Chorar sempre foi prerrogativa do feminino. Aos homens é cobrado valentia e virilidade. Amparados no tripé: poder, sexo e dinheiro, crescem cultivando a idéia de que é preferível a morte à vergonha da derrota. Significantes como perda, conflito e dúvida, geralmente são banidos do discurso masculino.

Não deve ser fácil romper com o modelo de homem imposto por uma sociedade sexista, que cobra desempenho sexual e confunde virilidade com agressividade. Os garotos crescem presos num ideal de sucesso impregnado por uma concepção normativa, moralizante e vigiada. Aspectos tão mutiladores para o homem como para a mulher – culto exacerbado ao corpo e à beleza. Enquanto não questionarmos as opressões que o mundo atual lança sobre nós - homens, mulheres ou homoafetivos - não galgaremos um lugar ao sol. Cada época cria seus símbolos de opressão. Nem todos os homens desejam ser identificados à falocracia. Como romper com a cultura que valoriza o impulso agressivo como traço de masculinidade? Onde encontrar alternativas de vida que não apontem a paixão pelo poder e pela competitividade como prioritárias?

Muitas mães e pais acariciam mais as filhas mulheres por temerem que os filhos homens cresçam homossexuais. Esses logo são convocados ao mundo dos machos – abraços violentos, tapas nas costas, recalcando a necessidade de falar sobre temores, angústias e fracassos. Geralmente, a vida afetiva dos homens é sufocada sob máscara silenciosa e dissimuladora da dor de existir. Como lidar com o vazio, a falta de sentido e a tragédia do desamparo? A intimidade, muitas vezes, nos prende em cavernas abissais. O fogo incendiário que arde e desassossega é inerente à condição humana. Saber suportar os abismos subterrâneos é coisa para gente grande, exige sabedoria, seja do gênero masculino ou feminino.

Há um apelo subliminar para que os homens, quando se sentirem ameaçados ou interditados em seus planos, ajam com violência. Muitos pais reforçam a importância do filho não levar desaforo para casa. A lição é devolver a agressão recebida. Talvez isso nos ajude a avançar no debate sobre a violência contra a mulher, tema que domina, nos últimos tempos, as páginas dos jornais. Cenas de estupidez são recorrentes entre casais, levando a mulher a pedir separação. Geralmente, quando o namorado ou marido depara com um não, ou situações que os coloquem em desvantagem, eles reagem de forma violenta. A violência, assim, insere-se no campo da linguagem. Significa que, quando somos incapazes de simbolizar os incômodos pela linguagem,
escolhemos mecanismos que nos livrem do embate. A palavra é a espada dos sábios - o sujeito se enuncia pela fala.


Interessa investigar por que os homens são suscetíveis às contrariedades e derrotas. A violência se apresenta quando eles são destituídos do poder, da suposta superioridade que, por portarem o representante fálico, crescem na ilusão de a possuírem. É como se eles estivessem, pela primeira vez, se deparando com as interdições da vida. Homens vaidosos, ricos, mulherengos e ciumentos, geralmente não suportam que coloque em risco a trajetória de sucesso. Perder este lugar é da
ordem do insuportável. A maioria não foi educada para enfrentar opiniões divergentes, ser questionada e suportar a vergonha do fracasso. Qualquer avaliação soa como insulto.

Muitos preferem preservar o casamento, mesmo quando ele já acabou - preservam a si e à boa imagem: separação ainda é sinônimo de naufrágio e declínio. Resquício de uma sociedade patriarcal e patrimonialista, que sacraliza o casamento e marginaliza os direitos da mulher.
Atributos que potencializam violência. Aos pais que desejam outro futuro aos filhos, o melhor é, desde cedo, educá-los no conflito e interditá-los nos excessos. Não os poupar das adversidades. Situações constrangedoras fazem parte da vida. Como superá-las, assumindo responsabilidades e fragilidades?

Conflitos são inerentes à existência humana, como dúvida e contradição. Situações que estão relacionadas tanto a fatores externos como internos. Tentar escapar deles é estratégia recorrente ao gênero masculino. Poucos homens enfrentam questões polêmicas pela palavra - fogem se justificando diante das dificuldades em assumir posições. O que reforça a incapacidade de se envolverem na incompletude da vida: ciúme, ressentimento, raiva e dor. Vida íntima, vida interior. O que nos bole por dentro? Como testemunhou Henry Miller: “A vida é conflito, e o homem, sendo parte da vida, é ele próprio uma expressão do conflito”.

A linguagem dos sentimentos é universal - emoção, alegria ou tristeza. Aprender, desde cedo, que não mentir sobre eles, é não trair a si mesmo. A questão não é moral, mas corporal, pulsional. O corpo que registra tristeza, não consegue se vestir de alegria. Dissimular sentimentos é pecado, deveria ser proibido, pois gera sofrimento a quem deles escapole. Quanto menos nos permitimos sentir e desejar, mais atentos ficamos em restringir o desejo e os sentimentos dos outros.

Violência é sintoma e revela como inserimos os filhos na cultura e na lei. Efeito de sociedades que conservam o androcentrismo como paradigma - apregoa o machismo como valor, sustentando posições de umBrasil patriarcal e patrimonialista. Algumas garotas crescem tendo o casamento como ideal de vida, e valorizam em demasia a companhia masculina. Sacralizamos a mulher casada e supervalorizamos a maternidade. Incentivamos a manter relacionamentos conturbados. O lugar da vítima sempre foi sustentado pelo feminino.Melhor não seria, desde cedo, ensiná-las a amar mais a vida, do que contaminá-lascom o imperativo do casamento? Felicidade é construção, é retomada de si edesejo de saber mais do mundo.



[1] Artigo
publicado no caderno Pensar em 25/02/2012

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

QUEM FAZ O AZAR?

Inez Lemos


Quem está meio desanimado da vida, achando-a monótona, deveria ir ao cinema e assistir a Um conto chinês. Aparentemente despretensioso, devagarzinho esse filme nos cutuca. De pronto, somos arrastados para a tela e, inesperadamente, a vida vai ganhando sentido. A trama se passa
entre Roberto (Ricardo Darín), solitário e mal humorado comerciante argentino, e Juan (Ignacio Huang), chinês que não fala espanhol e está em Buenos Aires em busca de um tio, mas nunca o encontra. Roberto é surpreendido com Juan sendo expulso de um táxi e se solidariza com o rapaz perdido. Os dois habitantes do acaso tentam se entender sob o mesmo teto. Os gestos traduzem a aflição e o desassossego de ambos - vida que chega e impõe seu lado extraordinário, pouco ordinário.

Há um charme nas produções argentinas. Histórias consistentes, saborosas - garantia de boa escolha. Filmes que partem de fragmentos da vida cotidiana, lentes que exploram detalhes
obscuros, sintomas velados – obsessões, fantasias não investigadas. Roberto tem seu lado obsessivo, cáustico, amargo. Não suporta ser passado para trás, ludibriado. Trauma de uma guerra maldita, absurda. Gostamos de ver nossos dramas retratados pela dramaturgia. O miúdo da vida, o sofrimento corriqueiro –solidão, pessimismo, desalento, azar. Somos o que sentimos. Para falar disso, os argentinos estão afinados, acertaram a sintonia ao transformar tragédia humana em arte. A emoção, quando estruturada em ficção, não tem erro.

O encontro entre Roberto e Juan aponta para o casuísmo, os acasos que, por apego excessivo ao arrazoado, geralmente dispensamos. Roberto, como todo bom individualista, resiste em abandonar o conforto da mesmice e acolher a visita indesejada. Rotina empobrecida do comerciante que vive o desalento de um cotidiano vazio: trabalho, casa e visita à mãe ao cemitério. Lastimando o desastroso destino, julga-se azarado, pois não consegue se desvencilhar do rapaz. A aparente tranquilidade, que mais era uma sucessão de dias mortíferos, aos poucos toma forma e ganha cores, vida. Quantas vezes, em nome de um conforto ilusório, sacralizamos o tédio do dia a dia? Aventura humana é desatar nós que nos emperram e que dificilmente conseguimos sem ajuda.

O novo é desafio - mexe, mistura, movimenta e desestabiliza. Intervir no estabelecido pode ser um ganho. O diferente chega trazendo cultura e sensações inusitadas. É oportunidade de
descobrir outros cantos da vida, de questionar as prisões que nos habitam. Roberto fingia que estava confortável com seu passado. Numa cristaleira, entre retratos e bibelôs, reverenciava a imagem petrificada da mãe. No santuário, conservava, cristalizados, os sentimentos de família - lembranças que cochilavam no coração. Juan, num ato desastrado, derruba tudo. Espatifando, de
uma só vez, a permanência imutável da mãe. Quebrar, interromper um sentimento e permitir que um novo se instale. Roberto recolhe os cacos e, num gesto de sabedoria, entende a metáfora – liberta-se da memória paralisante. Geralmente, nos momentos difíceis, quando somos surpreendidos por um fato trágico, nos julgamos azarados. Com o tempo, o que era azar vira sorte. Refazemos e libertamos dos entulhos, lixos interiores. A faxina exige coragem, despoja-mento e humildade. Ao abandonar o lugar da vítima - o desafortunado que teve que abrigar um oriental que sequer fala a sua língua, Roberto inicia trajetória de descobertas. Cultura chinesa, surpresas, emoção. O mundo e sua vitalidade e diferenças, há dias, dividiam com ele o mesmo teto. Diante de Juan, começa a desconfiar do sentido de viver. Entre eles, travando amizade e afeto, a vaca redentora –que mata e que une. Tudo começa e termina com ela, metá-fora do azar e da sorte. A mesma vaca que lança Juan na solidão propicia os encontros – tanto com Juan, como com a mulher que o assediava com promessas de dias felizes. Vida, o que fazer senão com ela deslizar?

Muitas vezes, lamentamos a solidão sem nos responsabilizar por ela. Não compartilhamos pedaços da vida, e não é porque não há ninguém que queira nos acompanhar. Pelo contrário, estamos sós por não abrirmos espaço para que o outro entre e se expanda. Culpamos a falta de sorte, o mau destino. Responsabilizar o acaso é mais fácil. Sem nos implicar, não nos damos trabalho e, ainda, ganhamos o lugar da vítima. Viver é bem mais que rezar para que “tudo de bom nos aconteça”.

Roberto acaba, a duras penas, se implicando no encontro com Juan. Quando isso acontece, tudo ameniza - angústias, impaciência e falta de sentido pela vida. Se anima e resolve procurar a moça que lhe declarava amor. Assim somos todos, só temos olhos quando despertamos por dentro. Sem esse apito, fingimos que vemos as pessoas à nossa volta. Mentira. Apenas enxergamos quando somos cutucados com os olhos do coração. Olho de dentro é que comanda. Enquanto isso não acontece, o outro é apenas enfeite, um guia para não virarmos o pé – pois, quase sempre, pisamos em falso.

O filme se inicia com uma notícia esdrúxula, descabida. Como a vida real: desatinada, injusta e desleal. Ansiamos por lealdade, companheirismo, amparo. Somos obsessivos por um Deus, alguma divindade que nos garanta a felicidade que julgamos merecer. Esquecemos que
viver é topar a parada, lançar-se no jogo. Um jogo obscuro, que não estabelece regras. É pegar ou largar. Ou Roberto topava a parada, ou desistia. Mas algo o impediu de desistir. Assim é conosco, muitas vezes seguimos em frente com o jogo, sem saber por quê. Mesmo desejando interrompê-lo, algo nos impele. É exatamente nessa força que reside o charme da vida. Encarar o inusitado, o acaso, ser salvo por experiências diferentes. Se acovardamos, cristalizamos emoções desgastadas.
O apaziguamento chega para Roberto no momento em que abandona o registro do lamento e se envolve - decide ouvir Juan e vencer a barreira da língua. Dialoga com as circunstâncias que a vida coloca. Ao se despir do apego individualista, Roberto abre uma avenida. Antes vivia no beco, sem saída. Quem se implica não reclama e se coloca dentro.

Explicar, justificar, tentar nos convencer de que agimos certo, fizemos o melhor. Assim operamos, quando não queremos nos haver com as questões que nos afligem. O filme nos aponta para os pequenos detalhes da vida. É quando cada qual, aproveitando os ingredientes que ela nos oferece, cria seu conto, escreve o próprio enredo.

O mundo moderno, tecnológico, não gosta de se ocupar com o outro. Circulamos alheios, não nos implicamos no cotidiano que desaba à nossa volta. O filho vai mal na escola? Culpamos os professores ou a criança – dificilmente questionamos como conduzimos a sua educação. Se somos vítima de alguma violência, raramente nos interessamos em investigar o que motivou o indivíduo a agir assim. Preferimos julgar, condenar e impingir a sentença de morte. Contudo, se vivemos em sociedade, devemos interrogar qual é a parte que nos cabe neste “latifúndio”. Somos todos severinos da mesma seca, do mesmo sertão - habitamos o mesmo deserto. Estamos
condenados às mazelas da condição humana. Somos incompletos, precários. O dente dói na boca, tanto do rico ou do pobre. A chuva derruba barracos e mansões.

Quem faz o azar? Geralmente, sempre que algo ruim ocorre, saímos em busca de um culpado. Gostamos de transferir responsabilidades. Isso consola e alivia, mas dificulta, retarda o curso da questão, pois nunca somos protagonistas de nosso próprio azar. Como iniciar o
processo de superação? Se estamos estressados, deprimidos, é o trabalho que está massacrante, ou o marido que deixou de ser carinhoso. Certamente, sem mudarmos de posição, sem abandonarmos o lugar da vítima, o azar prosseguirá.

A vida é sutil - reserva de mata virgem que merece ser explorada com a alma plena de entusi-asmo. É para ser amada em demasia, a ponto de desejar mais que ter sorte e sermos felizes. Como acolher uma existência, uma trajetória que não nos poupa esforços? A arquitetura da vida como obra de arte bate nas entranhas, aninha-se, mexe e remexe. Exige, briga e reivindica. Vida que se reinventa não se acovarda, encara as paradas. Deparar com situações difíceis e problemá-ticas faz parte da caminhada. Julgarmo-nos azarados. Lamentar e se sentir derrotados já é uma questão de escolha. Sorte ou azar, quem os faz?



[1] Artigo
publicado no caderno Pensar do E.M. em 3/12/2011.