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domingo, 28 de março de 2010

O AMOR NO FEMININO

Inez Lemos

A artista plástica e escritora francesa Sophie Calle, revoltada com o escritor e namorado G. Bouiller por ter encerrado a relação por e-mail, resolve revidar a indelicadeza do rapaz. Num gesto de cumplicidade feminina, envia a carta a 107 mulheres. Com o pretexto de pedir sugestão sobre como proceder à deselegância do rapaz, arquiteta uma fogueira pós-moderna ao ex-namorado. Não é de agora que Sophie transforma fragmentos de sua vida em arte. A artista conceitual chega ao Rio em primeira pessoa com a exposição Cuide de Você - exibindo a imagem da carta projetada sobre uma foto de seu corpo. A inquisição feminina condena o rapaz de infantil e despreparado para o amor. Todas foram unânimes em reprová-lo, julgando seu comportamento covarde e insensível.

Não nos interessa julgar o caso e a conduta do rapaz, mas tentar desvendar os fatores que ocultam os mistérios reservados às mulheres. Vale investigar a facilidade com que as mulheres aderiram ao coro das descontentes, condenando tal postura de egoísmo e macheza. Como questionar o tribunal feminino que, de forma fervorosa, aponta a guilhotina para a falta de habilidade de um namorado? Talvez seu maior pecado tenha sido não levar a sério as singularidades da sexualidade feminina. Bouiller esqueceu que navegava num continente negro, obscuro e sujeito a tempestades e fúrias. O feminino não gosta de resoluções burocráticas. É campo imprevisível, abissal e cavernoso, onde nada é transparente, matemático. É sentimento que não cabe no computador - a linguagem do Word é insuficiente para interpretar as lacunas entranhadas no corpo de uma mulher.

O feminino é um corpo que traz as marcas da incompletude e que luta para descobrir sua instância fálica. A singularidade do feminino está no fato da mulher não ter um significante que a nomeie e defina. O registro do corpo imaginário completo é uma inscrição original e nele está contida a inscrição psíquica do pênis (representante universal do falo). Para Freud, a falta do pênis denuncia a castração - quando a menina se defronta com a tarefa de se haver com um corpo que registra uma ausência. O que explica porque as mulheres precisam mais de palavras - requer dos homens ouvir algo que recobre o vazio. O sentimento de “não-toda”, longe de ser um problema, é salvação. É ele que mobiliza nas mulheres o desejo e o interesse diante da vida.

Mulher é plural, são muitas e não cabem numa gaiola cibernética. Impossível querer classificar a multidão que habita um corpo feminino. Uma legião, em vigília, cuida do desejo, controla reinos, funda países. Lacan chamou de mascarada ao arsenal de recursos utilizados pela mulher em busca de solução. Adélia Prado, com sua licença poética, atesta: “Mulher é desdobrável. Eu sou”. Na busca de compensação para repor a falta, a mulher saí pelo mundo arquitetando subjetivações, reinventando acordos. Diante de tanta insatisfação, tanta procura, Freud concluiu que o feminino não é destino, mas reinvenção: “não se nasce mulher, torna-se mulher”.

Ao contextualizar o caso Sophie, torna-se impossível imaginá-lo num outro século - o que o define como emblemático desse tempo. O que leva um rapaz escolher o cyberespaço para terminar um relacionamento afetivo? A internet é bem vista e cultuada entre as mulheres para iniciar relacionamentos. Muitas se utilizam de sites para encetar encontros amorosos. O culto à internet como agenciadora de namorados tornou-se comum. Se aprovam a informática como mediadora e facilitadora na realização de desejos - uma história de devaneios e fantasias -, era de se esperar que a mesma lógica se estendesse quando essa se encerrasse. O que subjaz a tanta ira, ironia, espírito raivoso? Há muito as mulheres abandonaram o lugar de arautos da moralidade, tornando-se cúmplices dos homens nos prazeres sexuais. Por eles lutaram, queimaram soutiens. Juntos, se jogam nas águas tirânicas do gozo - mar devorador da discrição e da privacidade. Bouiller não se pautou por uma conduta ética, agiu contaminado pela ética do cyberespaço em que tudo se tornou normal, natural, permitido.

Bouiller pecou ao privar Sophie de ouvir os motivos que o levaram a encerrar o namoro, ao não torná-la testemunha de sua decisão - parceira no sentimento de recusa e rejeição. Tudo que uma mulher quer é ouvir, arrancar de seu amado confissões. O sintoma feminino diz da necessidade das mulheres em ouvir do parceiro afetivo juras de amor. A mulher, para obter gozo, demanda que seu amado fale. O erotismo feminino inicia nos sussurros ao pé do ouvido, quando ela espera que ele revele a importância que ela tem para ele. Nessa relação, o homem entra como o sujeito de desejo e ela o objeto que vai completar esse desejo. Uma mulher quer ser o objeto de desejo no desejo de um homem. Que sua existência seja metáfora de desejo de um outro.

Se a feminilidade se funda na confissão de um homem, significa que a investidura de sua condição de desejada não reside em nenhum símbolo visível, objetivo (beleza, inteligência), mas na chancela do ‘eu te amo’. Ela quer ouvir o que é da ordem do indizível - algo que lhe confere reconhecimento e definição. Quando a mulher não se certifica do amor de um homem, um abismo se abre. Quando o namorado não a convoca para participar da decisão de interromper o namoro, ele a destitui do lugar sacralizado. Quando ela e sua palavra são excluídas, dispensadas, uma cratera se abre sobre seus pés. Sophie, ferida no narcisismo feminino, se sentindo rebotalho, declara guerra àquele que a destituiu de seu lugar de objeto fálico: ‘ele não me pertence, não tenho mais nenhum poder sobre ele’. Ressentida e magoada, prepara uma vingança para aquele que dispensou seu amor via on-line. Ironia pós-moderna - amor sólido também se encerra na tecnologia e se desmancha na internet.

Em Madame Freud a psicanalista Nicolle Rosen metaforiza, em forma de romance, o desabafo de Marta Bernays (esposa de Freud). O livro retrata de forma ficcional a vida íntima do casal, denunciando a falta de sensibilidade de Freud com a insatisfação de Marta. Em tom confessional, temos o retrato de uma mulher solitária que soterrou sua inteligência, sonhos e desejos para se dedicar ao marido e sua obra. Marta, ao fazer um balanço de sua vida conjugal, reconhece sua submissão - lugar secundário que a anulou como sujeito desejante: “Eu era suficientemente sensata para saber que a paixão é um sentimento efêmero. O que mais me fazia falta era a comunicação incessante que havíamos tido durante os quatro anos que precederam nosso casamento, aquelas cartas nas quais, dia após dia, nos contávamos tudo”. Marta prossegue em sua queixa, se recriminando por ter fingido ser uma dona de casa encantada com a função de velar pela felicidade do marido e dos filhos. Contudo, guardado as devidas proporções e os séculos que separam Madame Freud de Sophie Calle, temos um cenário de insatisfação feminina em relação ao comportamento de seus homens. Estariam as duas tentando se libertar do lugar de desejadas – dependentes do desejo de um homem para se sentirem realizadas?

A harmonia, a paz interior sonhada, a mulher vai encontrar quando fizer um acordo com o lugar de faltosa. Para tanto, ela precisa construir outras instâncias fálicas, outros nichos de interesse e se libertar do amor como única paixão. O amor deve operar como mais uma das instâncias que dão sustentação ao feminino. Como amar mais coisas além do amor? Muitas mulheres vivem bem tanto sozinhas ou quando estão amando. Outras ainda se atormentam com a falta do amor. Torturam-se com a idéia de não conseguirem uma forma de aplacar a tragédia do desamparo, se sentindo desamparadas, abandonadas, rejeitadas. O tormento feminino é a dificuldade de fazer as pazes com o falo – o representante da falta no ser humano. A parceria com um homem oferece à mulher a possibilidade de suplência à sua falta de definição. A definição de feminino depende da mediação de um homem. É sempre para um outro que a mulher quer ser o falo – conquistar um lugar de poder, ser admirada. A mulher procura suscitar olhares de reconhecimento. Querer ser desejada por um homem é querer que ele, sem ela, se sinta incompleto, na falta. Assim a mulher se oferece para obturar a falta daquele que ela lançou na posição de dividido, frágil.

Entre o homem e a mulher há o falo - um mundo a ser desvendado, um muro a ser implodido. Ridículo não é desejar o amor, mas fingir que ele não nos faz falta. Objeto ultrapassado ou sentimento resistente que tampouco a internet conseguiu destruir? Amor serviçal, amor que sacrifica o outro e sua essência, amor vegetal, que não brilha. Amor informatizado, virtualizado e mercenário vira peça de museu, obra de exposição e merece ser deletado. Sophie e Marta nos ensinam que amar é experiência generosa que possibilita nos tornar melhores. Tanto a mulher como o homem precisam enfrentar a falta. Melhor seria que fosse de forma menos enganosa, dissimulada - o que exige humildade para reconhecer limitações, despreparos. Sem isso iremos sempre demonizar o outro que nos abandonou - atribuindo apenas a ele a responsabilidade pelas frustrações, insatisfações.

Artigo publicado em 26/12/09 no caderno Pensar do E.M.

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