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segunda-feira, 5 de abril de 2010

A POÉTICA DO SAMBA

Inez Lemos

Tornou-se lugar comum nos estarrecermos diante de notícias como: “estudo inédito da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) revela que a família brasileira oferece alimentos ricos em gordura, açúcar, sal, corantes e outros aditivos alimentares para bebês com quatro meses de idade”. “Magreza excessiva domina passarelas”. “Para as muito vaidosas que ainda não completaram 12 anos, a ida semanal ao salão é só o básico. Elas também mudam o formato dos dentes, fazem drenagem linfática e até se internam em spa para perder peso”. “No limite do consumo: adolescentes das classes C, D, e E têm obsessão por roupas de marca e celulares. Pais se endividam e de desdobram para atender os filhos, que fazem de tudo pelo objeto de desejo”. “Anabolizantes põem vida dos jovens em risco”.

O movimento histórico que radicaliza na tendência de transformar o ser humano em objeto, nos assusta. O declínio da perspectiva subjetiva e filosófica da condição humana nos conduz a buscar abrigo nos objetos fetiches – modismos, consumo, medicação, estética. O “homem novo” evita paixões. Desencantado, comemora o triunfo da vida artificial. Alienado no espírito científico que orienta sua vida, esquece de questionar seu tempo e suas narrativas. O triunfo do banal e do pensamento único engendra novas alienações e novas formas de opressão, atrofiando iniciativas revolucionárias. O retrocesso das matrizes teóricas, como filosofia e psicanálise, reforça a crença de que toda revolta, toda voz discordante seria impossível. Contudo, como não aderir aos fetiches que triunfam – grande senhor que nos cega e emburrece?

Como explicar posturas insanas como as de mães que alimentam seus bebês com lasanha congelada, miojo, refrigerante, batata chips e chocolate? Outras que se submetem aos rompantes de vaidade das filhas, vestindo-as como mulheres e concordando que freqüentem salões de beleza? É comum ouvir mães, diante de filhos sem limites e indisciplinados: “eu não sei mais o que fazer com ele, me esforço e dou tudo que ele pede e nem assim ele me obedece”.
Como repensar essa pletora consumista que nos encurrala e nos afasta da essência da vida? Onde estão os corações puros habitados pelo gosto das coisas simples e espontâneas? Almas poéticas que brotam das conversas despretensiosas? Há um enredo da vida que surge do trivial - puro prazer de cantar a emoção do mundo. Aonde se esconderam os filósofos das madrugadas, sem diploma e cheios de sabedoria? Esse ano, Adoniran Barbosa e Noel Rosa completariam 100 anos. Adoniram foi um sambista fundamental na formação da identidade musical de São Paulo e do Brasil. Fez poesia com a pobreza - interpretava a miséria com o coração. Suas músicas revelam, numa melancolia disfarçada, a realidade e os sintomas da vida humana - o amor materno pelo filho único “que não pode perder o trem das onze, pois a mãe não dorme enquanto ele não chegar”. Comicidade e tragédia, juntas, enfrentavam ressentimentos e decepções. Éramos conduzidos, junto aos poetas das madrugadas, pela filosofia do samba - verdade que se escondia na alma de gente comum interpretando o sentimento do mundo. Hoje, a juventude é comandada por falsos profetas, fetiches e feitiços devastadores, os Big Brothers que cantam o silicone, a barriga tanquinho e a bundinha rígida. Adoniran musicou a vida do Brás e do Bexiga e que não seduz mais ninguém. Quem se interessa pela saudade da maloca, pelo torresmo à milanesa ou pelo viaduto Santa Ifigênia?

Ao desprezarmos a simplicidade e sua riqueza simbólica, esquecemos que não se aprende samba na escola. Noel Rosa cantou o feitiço da vida - rivalidades, ciúmes, solidão e saudade. Mergulhou nas entrelinhas do dia a dia de Vila Izabel. Lamento ou saudosismo? O que nos faz escrever sobre eles, poetas do acaso? Pesar por ver a vida se escorrendo como enxurrada, banalizada e mercadorizada? O mundo que desconsidera a magia dos poetas da noite se perde na ausência de emoção. Noel, ao ver o sucesso de Festa no Céu, atesta: “Havia emoção – havia originalidade. Fiquei alegre, sentindo um feliz alvoroço dentro de mim”. Noel reverenciou a poética das ruas, o lirismo e a alma da cidade. Queria que seus ritmos eletrizassem os músculos e influíssem decisivamente no movimento das multidões.

Adoniran e Noel morreram pobres, não construíram fortuna, mas deixaram um legado cultural digno de ser comemorado 100 anos depois. Quais as conseqüências de afastarmos os filhos dos sentimentos que regem a vida? Qual a implicação em desprezar a lógica do coração em função da lógica da mídia e do mercado - tratar sofrimento e tristeza apenas com remédios, desprezando o desejo de seguir um roteiro próprio? Adoniran, um andarilho que percorria a cidade com seu violão. Sua espada era a música e com ela venceria a batalha da sobrevivência. Não se envergonhava da infância pobre, das dificuldades enfrentadas para impor sua música e estilo e conquistar autonomia sobre seu percurso. Viver era bem mais que pagar contas e ter o que comer. Era se lambuzar de versos e metáforas - significantes que contornavam emoções e frustrações. Nada se compara ao prazer de poder forjar a vida com a própria mente.

Como investigar a depressão e o tédio dos que se atolam nas drogas ou buscam na ilusão do corpo perfeito saídas para suas vidas? Atribuir a compreensão do mundo à lógica racional, recusar o trabalho de desvendar misterios e desatar nós, acreditar apenas na lógica químico-biológica, é mergulho no desespero e na insatisfação. Reduzir as tragédias da vida numa simples molécula, desconsiderar os trabalhos dos sociólogos, antropólogos e historiadores, é perpetuar no obscurantismo. Consideramos retrógrados os que mergulham nos incômodos e investiga o fracasso, aquilo que não vai bem. A gênese do comportamento humano é analisada numa perspectiva positivista e neurocientífica. Reduzimos tudo à genética e à biologia: depressão, bipolaridade, homossexualidade. O legado de Freud, junto à filosofia kantiana, é descartado – ambos oriundos do pensamento crítico e libertário.

Qual a importância de visitarmos teorias que inauguraram o primado do sujeito habitado pelo saber de seu inconsciente, pela consciência dos sintomas – medos, fracassos, inibições e angústias? Os sucessos da farmacologia enterram o homem freudiano em sua dimensão intersubjetiva e histórica. O boêmio transformou-se no drogadito. O repertório do sujeito social, o inconsciente do poeta, sambista que cantava os sintomas circundantes reduziu-se à “genéticabiofisiológica”. Sabemos que não se aprende samba nas drogarias e nos shoppings - tampouco assistindo Big Brother e se extasiando com o gozo dos medíocres.

Qual o sentido de evocar Noel e Adoniram 100 anos depois? Talvez busquemos na densidade emocional da poética do samba um sinal de esperança, algo que nos entusiasme e restitua a crença no amanhã. E nos aponte luz, possibilidades de saídas do túnel - noite de trevas que nos espreita e amedronta. O terror é filho do desconhecido – descrença e desesperança. Vivemos aterrorizados quando, sem perspectivas, desacreditamos de nossa capacidade de resistir, de contrapor. Tragédia é se submeter por falta de opção e proposta. Opressão é aceitar as ordens impostas por um estranho poderoso que chega e nos sufoca - ilude e cega. Cegueira é quando vemos o que não existe e acreditamos na inconsistência. A vida forjada na razão moderna prefere robô à gente - qualquer máscara lhe cai bem. Quem somos nessa noite de mascarados? Qual face nos representa? Qual roupa nos veste?

“Fiz de mim o que não soube/E o que podia fazer de mim não o fiz/ O dominó que vesti era errado/ Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me./Quando quis tirar a máscara/Estava pegada à cara/Quando a tirei e me vi no espelho/Já tinha envelhecido”. Fernando Pessoa escancara a hipocrisia dos tempos modernos, que, ao fazer das tripas seduções, nos enoda de ilusão. A máscara da moda são os escapes pelo corpo. Subterfúgios que nos aprisionam em castelos virtuais. Importa o gozo da imagem eternizada no vídeo, longe do espírito que perfumava os instantes de poesia, que para Noel, constituía numa verdadeira fonte de beleza.

Com que corpo eu vou, se tudo em mim me desagrada? Nada irá nos agradar quando circulamos no discurso da perfeição. Nunca vislumbraremos saídas se não enfrentarmos o próprio corpo. Sem os poetas, nos resta vasculharmos entranhas e descobrir verdades que religião nenhuma nos ensina. Tampouco as encontraremos nas drogarias. E olha que boemia revela mais que academias. Samba é epifania, fantasia que acolhe e cumplicidade que consola. Revisitar os velhos sambistas é resistir ao feitiço banal. Perversão é usar a competência para desiludir almas famintas - existência desprovida de sentido. Ilusão vazia.

Artigo publicado em 3/04/2010 no caderno Pensar do jornal Estado de Minas