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quinta-feira, 11 de março de 2010

MODERNIDADE E ESTRANHAMENTO

Inez Lemos

O filme Hanami - Cerejeiras em flor nos fala de saudade, modernidade, estranhamento, tempo e morte. Um casal vive sozinho numa pequena cidade na Alemanha. Trudi, a esposa, descobre que Rudi, o marido, está com uma doença terminal e lhe propõe viajar. Visitar os filhos em Berlim e no Japão. Seu sonho era conhecer o Monte Fuji e apreciar as cerejeiras em flor. É o momento de aproveitar o tempo que ainda lhes restava para realizar os desejos adiados. O Japão despertava curiosidade em Trudi. Agressivo no progresso tecnológico e delicado em seus rituais e tradições. Da comida às danças, músicas e vestuário, tudo é cercado de detalhes e pequenos gestos. O ato de comer, o momento do alimento, para eles, é sagrado. Não combina com a pressa das metrópoles. Contudo, a modernidade os atravessa e rompe a cultura da leveza e da sutileza. Hábitos ocidentais convivem com orientais - ambos se adaptaram ao tempo que urge. O filme surpreende pela sabedoria de Trudi, que não se deixava contaminar pelo discurso da pressa - frieza e secura da vida in chips. Sempre encontrava uma forma de tocar a essência. Conquistar o carinho da neta que a olhava distante e interessada em seus bichinhos eletrônicos, suportar o mal-estar dos filhos causado pela visita inesperada dos pais.

Visitante inoportuno é o que chega e desequilibra o cotidiano de trabalho e obrigações. Sempre carregamos a agenda com afazeres prementes. Geralmente, essencializamos o banal e relegamos o essencial. No filme, o desconforto causado pela presença dos pais, nos filhos, nora e netos, é visível. Tudo incomoda - a cama cedida, as reivindicações aos passeios. Estranhamento e distanciamento se instalam. Pais que não conhecem os filhos e filhos que desconhecem os pais. Quem somos nesse mar de tarefas e cobranças? O mundo que nos cobra excelência e resultado é o mesmo que nos desconserta e atordoa. Já não sabemos mais como nos comportar diante de sentimentos e desejos íntimos. Como conciliar demandas tão desencontradas? Na tela vemos as contradições que cercam a existência humana. A impotência do homem pós - moderno, industrial, iluminista, capitalista. Que momento é esse que temos que ser bons em tudo - informática, dinheiro, cultura, corpo, sexo?

Trudi e Rudi representam a última geração de pais que souberam priorizar o tempo do amor, da ternura e da comida. Trudi preparava, todo dia, o sanduíche que Rudi levava ao trabalho – pão e maça, alimentos bíblicos. O amor entre eles era profundo, havia conexão entre sentimentos e gestos. Os conflitos eram vivenciados com sabedoria e paciência. Companheiros no amor, nas alegrias e decepções. É quando sentimos que a união faz a força - um realmente se apoiava no outro. Lembrando-nos que a existência, quando compartilhada, se torna leve e gostosa.

Ao ver os filhos distantes e inseridos no frenesi de um outro mundo, um tempo que eles desconheciam, com demandas que lhes eram estranhas, o casal se desconcerta. Uma frustração escapa da tela e nos bate fundo. Momento duro da interação: cinematografia e espectador, arte e realidade, sentimento e progresso. O mal-estar dos pais atravessa a dimensão artística e toca o real, o inominável. A morte nos espreita todo o tempo e nem assim desistimos de correr, fugir ou desprezar o essencial. Será que valorizamos o que, no fundo, não concordamos ou desejamos? Estamos todos no mesmo barco que se afunda. Somos todos passageiros de um só Titanic. Calados e resignados, assujeitamo-nos à tragédia que preparam para nós. Cúmplices aceitamos os minutos, as migalhas de tempo que nos é permitido no lazer e na vida em família.

Trudi, diante de um marido irredutível, desiste de conhecer o Japão, mas o convence de ir à praia e matar a saudade do mar. E lá o jogo da vida se inverte. Trudi morre repentinamente. O destino e suas ironias sempre nos surpreendendo, sempre furando a fila e levando as pessoas trocadas. O filho que morre antes dos pais, o saudável que vai primeiro que o enfermo. Ainda assim não abandonamos a arrogância e a ilusão de que somos senhores do futuro. Desprezamos a superioridade do acaso, do indeterminado. Definitivamente, não somos donos do nosso tempo de vida, ele sempre nos escapará – faltará ou excederá!

A questão central do filme é nos chamar a atenção para a sutileza da vida, um alerta aos que definem a agenda priorizando apenas negócios – não “negam o ócio”. Sempre sacrificando a convivência entre pais ou filhos, crianças ou idosos. Um alerta aos casais que, com o aval da modernidade, julgam comum desconsiderar o desejo do outro. Rudi, devastado com a morte de Trudi, descobre saídas honrosas para o seu luto. Sabedoria ao enfrentar a morte da pessoa amada. Viúvo, uma nova trajetória se inicia. Estratégias ao confrontar o real da morte, a dor de uma ausência imprescindível. Reinventar saídas para a solidão, para o tempo que ainda lhe restava. Conviver com a impermanência - lembranças ternas e eternas. O que fazer com a saudade, os resíduos do outro? De onde extrair forças para realizar, sem a pessoa amada, o que, com ela, se recusou a viver? Rudi se mune de coragem e não se acovarda. Peregrino do desejo do outro. Parte em busca de Trudi, do pouco que dela restava nos jardins, nas cerejeiras, na dança japonesa e no Monte Fuji. Articula uma companhia, alguém que, com ele, encarnaria os sonhos da esposa. Ao se cercar de Trudi, suas roupas e preferências, Rudi encontra paz e alívio. É a vida nos apontando infinitude e grandeza diante do abismo. Sempre nos reservando surpresas, saídas dignas quando não nos apequenamos. Rudi abriu a alma e aceitou os desígnios de vida - visitas inoportunas e indesejadas. Sempre desprezamos os indícios da morte. Sempre nos julgamos eternos - nossa permanência na terra sempre foi dada como certa e garantida.

A vida que nos escapa das agendas e dos compromissos de trabalho nos cobra sabedoria. Como conciliar morte e eternidade, impermanência e memória, saudade e ternura, ausência e presença? Rudi, ao transformar fragmentos, ao debruçar sobre os vestígios de uma vida a dois, teceu uma parceria entre vida e morte. Parceiras fiéis, silenciosas e traiçoeiras. A esposa precisou morrer para que ele descobrisse uma outra vida. A que se escondia nas floradas das cerejeiras e no Monte Fuji. A montanha que, com sua cadência, nos ensina a conter a pressa, a aguardar os sinais visíveis - a luz só surge depois da neve e da neblina.

Há algo escondido na morte que clama por nós, que requer de nosso olhar atenção e cuidado. A vida, por meio da morte, nos cobra grandeza de alma e serenidade no existir. Quão de sutileza nos espreita? Quão de beleza há submerso na natureza e nas pessoas? Sempre olhamos a vida com olhos contaminados por uma falsa pressa. Geralmente, fazemos ouvidos moucos aos desejos alheios. Arrogantes, aderimos às escolhas convencionais, aos modismos infundados e esvaziados de sentido. Qual o sentido de conhecer Veneza sem antes conhecer os filhos, sem antes saber mais da pessoa amada? Desejo é manifestação interna, anseio inconsciente. É desordem, bicho que escapa furioso, sem rumo. Não há desejo comedido – visitar o Japão é descomunal, é loucura sábia.

O rumo é a civilização, é ela quem norteia nossos passos, nossas pulsões. Nosso inconsciente é ganancioso, consumista e midiático. Contudo, como enfrentar os excessos, a forma descabida e insana com que os homens de negócios se apropriam do nosso desejo? Determinar o tempo do amor, das cerejeiras e das montanhas. Pouco sobra para apreciar a vida que brota das árvores e das pessoas. Até que ponto somos contaminados pela verdade do Outro - empresário que nos influencia com suas ofertas inúteis, suas quinquilharias desnecessárias e efêmeras. Muitos são os pecados cometidos em nome de um grande outro que nos comanda com seu discurso científico e tecnológico. Reverenciamos os senhores da mídia, dos laboratórios, os homens de ternos e pastas pretas - donos do dinheiro e da infelicidade. A vida submetida aos ditames do mercado é vida murcha, pobre e desvitalizada.

Rudi se rejuvenesce quando abre os olhos para a natureza, essa senhora que aprendemos a desprezar e emporcalhar. E que acolhe Rudi sem cobranças e ressentimentos. A vida que ele desprezava e que, por fim, o salvou e lhe devolveu a alegria que Trudi levou. Beleza permanente é a que se esconde na natureza, eterniza a existência e recobre de dignidade a frágil experiência humana. Passagem faltosa que realizamos na terra. O filme nos ensina a respeitar a condição de finitos, a enfrentar estranhamentos. Desvelar a beleza dessa senhora grisalha, companheira crepuscular, visita indesejada.

Artigo publicado no caderno Pensar em 6/3/2010

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