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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

EMBRIAGADOS PELA BELEZA[1]

Inez Lemos 

            A celebrada sociedade do espetáculo, orientada no mercado, no individualismo e  no avanço tecnológico, multiplica seus efeitos sobre o corpo, colocando em cena personagens cunhados no estilo publicitário. Como explicar o investimento na perfectibilidade, via ciência estética e biológica? Corpos manipulados por bisturis, corpos simulados, falsificados. A mídia nos testemunha que o Brasil ultrapassou os EUA e se tornou campeão em cirurgias plásticas. Na tradição clássica, o humanismo questiona os fundamentos da razão moderna, as narrativas que nos afastam de Deus, divindade metaforizando transcendência, o lócus onde depositamos a fé no ser humano enquanto potencia criativa. Sem criação não há paixão, tampouco humanismo. Qual a relação entre plástica, transcendência e humanismo?  
            O corpo ganha primazia, torna-se o lugar de materialização do desejo, revelando a esperança de um futuro melhor - possibilidade de reconhecimento e sucesso. É onde o homem da era tecnológica produz a si mesmo. A trajetória do pensamento encurtou. O percurso da fantasia e da utopia simplificou. Hoje o endereço dos jovens que seguem a cartilha da vida espetáculo se resume numa clínica de cirurgia plástica. As noticias apontam para uma reificação do humano. Fashion é escolher um boneco como ater ego. O meu duplo é um ser midiático, industrial. É nele que vou me espelhar. Os humanos não me interessam. O que eles têm para me oferecer? Prefiro o homem de borracha, que não me frustra, tampouco me decepciona.
            Entre as reportagens que apontam mutações nas escolhas entre jovens e adolescentes, regulamentadas pelo espetáculo, via mídia, destaco: “Celso Santebanes, 20, quer ser uma celebridade de verdade. Se diz obcecado por beleza, sempre quis ser reconhecido, aparecer na mídia. Fez quatro cirurgias plásticas para ficar parecido com Ken, o companheiro da Barbie”. A imprensa confirma o deslocamento entre ciência, cultura e corpo. Mundo interno e externo, desejo e política, eu e o outro. Quem está agenciando o desejo humano? Por que a ciência segue os paradigmas da moda atual, produzida por uma indústria truculenta e perversa? Transformar o corpo humano em mercadoria é mais rentável, uma vez que o insere numa rede de consumo de produtos de beleza. Dermatologistas, plásticas, cosméticos, salões de beleza, spas do corpo.
            A beleza hoje é normativa, produzida pelos empresários da moda, que ditam os rumos da estética. Eles definem o bonito e o feio. Contudo, importa investigar o que subjaz à busca desenfreada pelo corpo perfeito, à intolerância com a imperfeição e a incompletude. A tentativa de instaurar uma superfície brilhante revela a necessidade de fugir do real. Como suportar o abismo sombrio de uma existência sem sentido? Como enfrentar o feio, significante que nos remete à finitude? A velhice nos coloca lado a lado com o efêmero, estética trágica imposta pelo tempo. O medo da velhice, expresso na corrida incessante à beleza, expõe uma interioridade precária e moldada na superfície da existência humana. Além de deflagrar pobreza simbólica, aponta para um vazio de transcendência - empobrecimento afetivo e laços sociais inconsistentes.  
            O feio em nossa cultura torna-se insuportável quando revela uma conexão com o dentro, o sentir. Na verdade, o que não suportamos é a dimensão do humano. Ao eleger a aparência, o externo como campo privilegiado do brilho e do belo, estamos interessados em afastar as perturbações, os ruídos que a existência nos coloca. Ser humano é ser apaixonado, é se atormentar pela positividade da ilusão. Quão difícil seria atender as demandas internas, os urros da alma que não cessam de nos incomodar, exigir? Mais fácil é eleger falsos brilhantes, falsas esculturas, falsas idéias de felicidade, representações simuladas de hedonismo. A hedoné moderna trilha na tecnocultura. 
            A rejeição do feio é um dos sintomas das sociedades midiáticas, que cultuam a imagem e a colocam acima de outros valores. O feio provoca conexão intensa com o sensível, por expor a vida como ela é. O belo convoca o brilho externo - luz, imagem, aparência, show, espetáculo. O feio convoca o dentro, por fora, ele não produz sedução alguma, apenas repulsa. Talvez o apaziguamento esteja na aceitação do feio, uma vez que ele nos ajuda a enfrentar a frustração, a fazer as pazes com a falta. A feiura nos humaniza ao desvelar nossa condição de mortal e avisar que o tempo não é benevolente. A morte é esse outro que nos invade e confunde os sentidos. Ela exige que sejamos realistas, que cultivemos mais os sentimentos, nos ocupemos com a intimidade, as vozes do coração. Para que trabalhar tanto, acumular riquezas, se amanhã morreremos?  
            O feio na era tecnológica, dos sorrisos espalhados no Facebook, é o espontâneo, o que escapa à produção, o que não foi elaborado, maquiado. Quase tudo merece intervenção: o rosto limpo, natural e imperfeito expõe o fantasma da falta – angústia ao enfrentar o real. O corpo como tributo de um novo tempo é o corpo-mercadoria, o corpo-máquina. As inovações tecnológicas trouxeram grandes transformações no campo das subjetividades. Entre elas, destaco a percepção humana e o novo estatuto imaginário corporal. Entram em cena novos personagens, corpos portando objetos estranhos, desenhos, marcas simbólicas: aparelho nos dentes, unhas e cabelos postiços, fios de ouro nas rugas, silicone nos quadris, dentes encapados. A ciranda dos objetos sobrepõe ao sujeito, que se apaga entre dietas e salões de beleza. O registro identitário é cunhado pela estética da transformação. Corpos mutantes, sujeitos opacos, desejos suspensos.
            “A junta comercial do Rio de Janeiro revela que os salões de beleza cresceram 142% entre 2000 e 2013. Enquanto cresce a procura por tratamentos de beleza, diminui a demanda por livrarias, que recuaram 57%”. O corpo é o sintoma do homem. O que equivale dizer que a nossa sociedade prioriza o culto à estética e à aparência, em detrimento da essência, do conhecimento e do saber. Os holofotes estão direcionados para o externo, as luzes do Olimpo miram os belos penteados. As belas palavras definham no obscurantismo, nos templos de Salomão, entre dourados imitando ouro. Simulacro de beleza oca. Vivemos a derrocada do pensamento, e se o pensamento é uma forma de resistência, significa que estamos condenados ao fundamentalismo midiático, na estética ou nas religiões.
            “A mãe jogou o filho de 2 anos na parede, matando-o. Alegou que a criança estava brincando com o seu celular, sem sua permissão”. O celular, nesse caso, corresponde ao objeto de desejo do filho, é ele que foi internalizado como parte do corpo da mãe. Desejá-lo é desejar uma parte da mãe que lhe faltou – mãe abandônica, ausente. Mães envolvidas entre tablets e smartphones, os novos objetos que fascinam. Brilhantes, sedutores, cobiçados. A internet é o ópio contemporâneo, age como substância tóxica, deixando a humanidade embriagada, viciada. Delírios provocados por uma caixinha, nada de fantasias ao vivo, o prazer é on line. Precisa mais?
            O eu não existe sem a alteridade. O Outro da pós-modernidade é um objeto. Na nova dimensão psíquica, a criança, ao ser marcada nas relações parentais - mais por objetos que por carinho, contato corporal -, segue uma orientação funcional, operacional. As relações são pautadas por agendas previamente estabelecidas. Os sentimentos devem seguir um plano de metas, que se traduz pelo imperativo de viver todas as formas de prazer em um só tempo. Se somos regulamentados por uma organização externa, é de se esperar que os desejos próprios sejam desviados. Se não fomos marcados por referências familiares sólidas, se não construímos laços sociais consistentes, sequer adquirimos uma mínima proteção afetiva e emocional. Um estofo básico que sustenta o sujeito diante das agonias da vida.
            Ao privilegiar o externo, perdemos a conexão com o subterrâneo, lugar onde cochilam as perturbações humanas. Ser humano é se debater entre o trágico, o cômico, o belo e o feio. Todos são elementos fundantes da loucura humana. E não há nada mais sedutor que uma doze de loucura. É ela que introduz a paixão nas relações. Ao intervirmos no corpo em função de um modelo, retiramos dele as insígnias, os traços familiares. Desprovido do simbólico, o corpo-expressão se apaga. Abandona a memória viva, desejante, para encarnar a imagem fria de um cadáver. Corpo sem persona. O mundo do pastiche é desumano. Beleza confinada em corpo morto.
            O filósofo Sócrates, exemplo de feiura, conduzia os discípulos ao paraíso, ao reino do saber, a sabedoria metaforizando o divino exercício do pensamento. A percepção da beleza que rege a existência exige tocar entranhas, desvendar os mistérios da aventura humana. O feio, ao mesmo tempo que provoca repulsa, fascina. Sedução, uma multidão de sentimentos, muito mais que obra de arte - escultura em praça vazia.    
   
                   



[1] Artigo publicado no caderno Pensar do jornal EM em 9/08/2014.

domingo, 10 de agosto de 2014

O APAGAMENTO DO SUJEITO

Inez Lemos[1]

Muito se escreveu sobre o desempenho da seleção brasileira na Copa. Neste particular, importa explorar os aspectos que escapam a toda família e que não foi diferente com a Scolari. A Copa é um evento esportivo apropriado por patrocinadores, articulados numa engrenagem midiática que fabrica astros, mitos, craques. A narrativa que envolvia os nossos jogadores era a do sucesso, como se o hexa estivesse escrito nas estrelas. Uma Copa não se ganha apenas com holofotes, torcida, selfies, glamour, mas com planejamento, trabalho e equilíbrio interno.
Talvez o maior pecado de Scolari foi ter subestimado o campo “psi”. O técnico esqueceu-se de trabalhar a parte interna dos jogadores, ao longo dos anos. Um trabalho que envolve aspectos emocionais, psíquicos, não se faz em apenas dois encontros, como confirmou a psicóloga Regina Brandão. Controle interno é capina árdua, constante.  Scolari não avaliou bem o desgaste emocional, a sobrecarga de pressão quando se disputa uma copa no próprio país. No jogo com a forte Alemanha, os jogadores,  fragilizados pelo infortúnio com Neymar, e sob os olhos do mundo, foram jogados como carne aos leões. Faltosos, inseguros e temerosos, não resistiram. A emoção solta voou balançando o que não estava muito firme, estruturado. O lado subjetivo sobrepôs ao objetivo.
Na sociedade de mercado, quando um jogador entra para um time poderoso, ele deixa de ser gente e passa a ser um produto. Não se interessa pelos aspectos psíquicos,  logo contrata um empresário. Ainda garoto, parte em busca de um sonho de infância, se consagrar ídolo. Ali não havia sujeito do inconsciente, seres humanos dotados de coração, alma, sentimentos, emoção. Havia produtos da Sadia, Itaú, Coca-cola, Hyundai.
Uma das características da cultura do espetáculo é o apagamento do sujeito. Significa que a orientação passa a ser comandada pela mídia. É quando ocorre a dessubstancialização do sujeito. Ele sofre uma intervenção subjetiva. Apropria-se de sua essência, instrumentalizando-a. O mercado insiste em descaracterizar o lado humano, focando apenas no resultado. O Futebol business se transformou em jogatina. Las Vegas comandada pela CBF e Fifa - corporações com cifras no celebro e dólares na retina.
A falta é que orienta a nossa relação com o mundo. A criança, desde cedo, convive com a falta de um objeto. Na configuração edipiana, trata-se da mãe. A maturidade psíquica exige experiência com a perda. É ela que orienta o desejo e ajuda a estruturar o sujeito. Significa que o desejo é organizado por uma falta simbólica, que  ensina a suportar a frustração, a entender os limites da vida e a desconfiar da capacidade de infalível. E assumir, sem muita dor, fracassos, responsabilidades, erros. Ao aprender a conviver com os tropeços que a vida nos impõe, estamos adquirindo estofo interno. Cabe aos pais prepararem os filhos para as adversidades do mundo.
Nossos jogadores não tiveram um bom pai. Esse, além de fracassar na formação dos filhos, não assumiu a responsabilidade pelos equívocos que resultaram na tragédia de 8 de julho. Contudo, algo escapa, rompe o traçado e espalha humanidade pelo gramado. Os garotos resolvem assumir sentimentos primários. Vergonha, humilhação. Consternados, não disfarçam mais a frustração de terem enterrado o sonho juvenil. Frustração não é sinônimo de vergonha e humilhação. Vergonha implica covardia, hipocrisia. E assumir erros é grandeza, coragem moral. Isso não faltou aos filhos, apenas ao pai.
Todo sintoma é alerta, sinal de que algo não vai bem. É quando desconfiamos de nós mesmos e assumimos a fragilidade interna. Os jogadores, ao longo das disputas, deram vários sinais de uma singularidade comprometida. Contudo, a máquina não podia parar. Após a derrota, quando não havia mais como sustentar a máscara, ouvimos deles pedidos de desculpas. Banhados em lágrimas, tentaram se redimir. No apagar das luzes, o que se via era um grito de pesar no ar. Tragédia épica encenada sob a memória de Tiradentes. O eterno retorno dantesco. Do riso fez-se o planto. Do céu fomos ao inferno.
Um pedido de desculpas acusa culpa. Ora, quem lutou até o fim, quem entra numa copa do mundo preparado e dando o maior de si, diante de uma eventual perda, resta-lhe um olhar desolado e triste, como fez Messi. Trágico não é perder, é se descobrir enganado, iludido, ludibriado. Os garotos, desavisados, se embalaram no conto de fadas do pai leviano, que não os prepararam à altura dos adversários.  Acreditaram na mídia, que os endeusaram, criando a ilusão de uma vitória que não se cumpriu. O mal é a promessa não cumprida. De deuses passaram-se a vilões.
Nenhum sentimento negativo cabe no Olimpo! E quanto mais endeusados, mais cegos e surdos para o óbvio eles se tornam. A cegueira não foi dos jogadores, eles avisaram, choraram, expuseram as fissuras. E o técnico, mesmo diante do fracasso, tentou nos convencer se valendo da matemática. Justo ela que não consegue alcançar o invisível, o que se oculta no mais íntimo dos mortais.  Estatística não toca o âmago, tampouco serve para sanar um corpo sangrando diante do flagelo humano. Frente a um país trucidado, o poderoso Felipão tenta um salvo-conduto, se defende e afirma que o time caminhava certo. O que nos faz lembrar Fernando Pessoa e seu Poema em linha reta: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos tem sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil...”
Enquanto isso, os alemães marcam a passagem esbanjando dedicação, carisma e comprometimento. Lembro-me de uma referência à seleção alemã, que não obstante seu prepara e empenho, considera o futebol uma questão de “educação e esporte”. Educação é processo que visa aprendizagem. Uma intervenção com o propósito de transformar, de inserir algo novo, modificando hábitos, vícios. A forma como a CBF lida com o esporte no Brasil é lamentável. De cima de uma estrutura poderosa, formada por um covil de coronéis, numa postura autoritária e arrogante, se coloca distante dos compromissos públicos. Esperamos que tudo isso tenha se espatifado no campo da pouco transparente Fifa.
A falta que o pai faz - tanto para a seleção como para o cidadão. Desamparados pela classe política, sofremos uma crise de representação. Como abandonar o imediatismo, o individualismo exacerbado, a urgência de ser feliz? Um país se faz com a participação de todos. Não apenas com personagens, astros, estrelas. Um sentimento coletivo, um grupo e não celebridades que pouco se interessam pelos bastidores. No campo e na rua, devemos cultuar a alteridade, o culto ao bem comum. O povo brasileiro demonstrou que leva jeito para isso. Basta convocá-lo à comunidade dos bons sentimentos.
O fracasso foi o significante fundante desta Copa. Muitos orquestraram o fiasco, julgando que seria um evento vergonhoso. Marcelo, no primeiro jogo, cumpre a profecia. Num ato falho, crava o gol contra. Seria o inconsciente atravessando a realidade? Um inconsciente de nação desacreditada, desprezada? O discurso não colou, não teve efeito de verdade, e a mídia nacional e internacional teve que desconstruir a narrativa pessimista. O sol é nosso, o céu azul também. Chega de cultuar crepúsculos.
O mundo do futebol é reduto dos machos, cartolas. Gente que não se interessa pelo mundo subjetivo - angústia que cochila no subterrâneo da alma humana. Esquecem que somos todos do mesmo barro, e quando encharca, vira lama. Ser que oscila, claudica, fraqueja. Como o sol, que ora se levanta, ora desce no horizonte e se recolhe. Nem sempre teremos céu azul. Um céu nublado ainda é céu. Assustados com os leões, os canarinhos não soltaram o canto. O que não significa que desaprenderam de cantar. Não há trauma que não possa ser superado, ultrapassado. A tragédia do fracasso serve para nos humanizar.
O sentimento que fica é de pesar. Pesar diante do sofrimento dos meninos. Doeu nas entranhas vê-los no limbo, soltos entre gorilas. Pesar por eles ter acreditados em Papai Noel. Velhinho que metaforiza o sonho de vida feliz, quando todos serão contemplados com um belo presente. Não, a Fifa não garante um lugar no pódio a todos, apenas aos mais preparados. Muitas serão as histórias que teremos a contar. O fato dos jogadores exibirem salários milionários não é suficiente para mudar a posição deles diante da complexidade humana. Ricos, porém precários como todos nós. Vale uma visita ao divã.












[1] Psicanalista. Email: inezlemoss@gmail.com