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e entusiasma a alma.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

DEVASTAÇÃO NA WEB

Inez Lemos

O Brasil exibe imaginário social de país idílico onde aportaram Baco e Dionísio, expondo fragilidade e ineficácia na interdição paterna. Nesta terra, samba, mulata e sexo soam como palavras de ordem. Cenário que promete gozo para os que aqui aterrisam. Concordando ou não com os significantes que definem o Brasil pelo mundo afora, resta-nos investigar a nossa participação na construção de tal imaginário - e como, ao longo de nossa história, ele foi se solidificando.

A nossa herança de país onde tudo é permitido – paraíso do turismo sexual, terra sem interditos paternos para barrar os excessos – merece reflexão. Ao analisar a falta de interdição capaz de regulamentar o apetite pelo gozo, os excessos pulsionais, deparamos com atavismos e fantasias que fundam nossa mitologia. A tradição das mulheres, no carnaval ou fora dele, em escancararem o corpo, expondo intimidades, associa-nos à “abertura dos portos às nações amigas”.

Permissividade, corrupção, usurpação, exploração, desrespeito e servidão. Revisitando determinações históricas dos processos de subjetivação, deparamo-nos com o descaso pelo outro, pela res-pública (coisa pública). A subjetividade do brasileiro nos remete à era colonial, cuja construção se realizou com a função precípua de servir à metrópole - atender a desejos e pulsões sexuais da corte que aqui desembarcava. O ethos que nos funda é o da submissão escravocrata. Como explicar a disponibilidade feminina, a falta de escrúpulos em atender aos desejos e caprichos masculinos? Ou a loja de lingerie que lança sua liquidação com a frase: “Abaixamos as calças”? Como nos desculpar pelas mães que incentivam as filhas, ainda muito jovens, a fazerem intervenções no corpo como cirurgias plástica e lipoaspirações?

O papel que a sedução do corpo perfeito exerce em nossa sociedade revela traços de filiação e submissão aos imperativos do gozo. Filhos bastardos do colonizador - o explorador que aqui aportou e fez fortuna, engravidando índias e africanas. Frutos da relação falaciosa, pérfida - vítimas da própria sedução, beleza e charme. Agimos como mulher fácil que entrega o ouro para o primeiro bandido. Como num dos hits de carnaval - “Quem vai querer minha piriquita/ que há muito tempo estou doida para dar?” Promiscuidade, leviandade, autodesvalorização - significantes que atravessaram nossa história. Não é por outro motivo que os americanos estão de olho na Amazônia - floresta, ouro, sexo. Como explicar a dificuldade em interditar o desejo do outro? A recusa em mudar de posição e abandonar a senzala revela gozo em servir – relação senhor e escravo.

As campanhas de carnaval veiculadas pelo Ministério da Saúde gostam de espalhar pelo país outdoors com mensagem recomendando o uso de camisinhas: “Quem é bom de cama usa camisinha. Qual é a sua atitude na luta contra a Aids”? Será essa a melhor forma de prevenção da Aids? Incentivar o sexo, precocemente, tornou-se palavra de ordem. O que esperar de um país que convoca jovens e adolescentes à cama? O carnaval não deveria ser divulgado mais como festa nacional - apoteose ao samba e à nossa identidade musical - e menos como incentivo a vivências sexuais, antecipando impulsos e desejos?

Um trabalho sério de prevenção ocupa, durante todo o ano, agenda familiar, escolar e governamental, e não bombardeia cabeças apenas em época de festa. Ou o Brasil prefere se eternizar na posição de bordel do mundo - prostíbulo tropical que esbanja, além de violência, noitadas e orgias.

Além da música que oferece a “piriquita”, assistimos a meninas dançando coreografias eróticas em que jogam a virilha para frente, a bunda para trás, abrem as coxas e cantam: “créééu! créééu!” E seguem se oferecendo. Como esperar que o mundo tenha outro olhar sobre o país, com país aplaudindo a filha em danças sexualizadas e fantasiando os filhos de Bope – com direito coletes à prova de balas e caveira cruzada nas costas, símbolos do Batalhão de Operações Policiais Especiais?

A sexualidade humana é suporte e opera como escudo - pano de fundo para emoções e decepções afetivas. Ela expressa a nossa singularidade. Se a antecipamos e vulgarizamos, abrimos caminho para a devastação. Viver sobre o imperativo do gozo é disponibilizar a alma para o demônio – tentação sem freio. A vida humana não pode ser conduzida e influenciada por frases, músicas e fantasias descabidas. As palavras, como as imagens, contaminam o inconsciente e produzem efeito. Provocar a mente de crianças com mensagens e coreografias que banalizam o sexo, expô-las a questões inadequadas à idade são atos que trazem conseqüências negativas, desencadeando estímulos e provocando erotização precoce. Isso culmina em distúrbios hormonais e favorece a gravidez precoce.

A sexualidade humana se inicia quando nascemos. É processo longo, percurso que, outrora, era cheio de rituais e magias. Os encontros se iniciavam entre olhares cobiçosos que geralmente culminavam em namoro. Namorar, demorar - deixar a alma morar no outro. Amar é se desembrulhar para o outro. No meu tempo, as moças demoravam a se desembrulhar. A cada encontro, entregavam mais um pedacinho – segredos, temores e fracassos. A pressa moderna simplifica gestos e rituais que reverenciam o encontro sexual, banalizando emoções, sentimentos, sonhos e ilusões.

Pouca coisa deve ser pior para uma adolescente do que se ver grávida. A experiência da maternidade exige preparo de mulher madura - implica dedicação e muito trabalho. Contudo, não podemos cobrar isso de uma garota. A gravidez precoce evidencia a dificuldade dos pais em orientar e impor limites a filhas e filhos. A permissividade está solta - lan House, TV, internet, web, videolocadora. Estamos deseducando quando não regulamentamos o cotidiano que cerca a criançada. De propagandas que estimulam consumos e excessos aos telejornais, que exibem práticas de violência, corrupção, criminalidade.

Julgamos naturais as práticas sexuais precoces. Poucos conseguem segurar a turminha que cresceu se erotizando em programas televisivos, conversas com bonecas que namoram e freqüentam baladas. É comum depararmos com mães indagando se devem oferecer pílulas e preservativos à filha de 13 anos.

O Brasil, ao embarcar na lógica da tirania do prazer, ao julgar que todo desejo deve ser consumado, esquece que viver implica limites, frustrações. Educar implica vigilância constante. Os pais não podem atender os filhos em tudo. Permitir tudo é convocar o inferno, instalar o caos, a barbárie. Somente poderemos aspirar a um outro imaginário social quando não mais confundirmos liberdade com permissividade, alegria com leviandade, tesão com promiscuidade e inteligência com precocidade.

Educar exige firmeza, o que é diferente de rigidez. A sociedade que nos convoca ao gozo eterno coloca desafios aos pais o tempo todo. Como inserir o filho nos limites da lei? Muitos adolescentes que se exibem nos Twitcam não sabem que estão cometendo crimes informáticos, desconhecem o que está dentro ou fora da lei e revelam a forma ingênua e despreparada em que são educados.

Pais desavisados, pouco informados, mãos à obra. A condução de uma vida é tarefa para lá de difícil, função que requer determinação, disposição e coragem. A garota que experimenta muitas emoções de uma vez, sem processá-las, esquece-se de que sexualidade é devir, fardo a ser debulhado. Devastação é pular etapas e se despir sem cerimônia, parcimônia. Como as adolescentes que se exibem diante de webcams. Despreparadas e de forma despretensiosa, as meninas oferecem os seios e outras partes do corpo. Partes que eram íntimas agora se tornaram públicas. Publicizamos o privado e privatizamos o público. O carnaval inundou o país. O ano todo tem striptease na web. Banalizar, colonizar, se deixar usar e explorar.

Educar exige renúncia. Será a sexualidade feminina igual à masculina? Liberdade sexual significa transar com qualquer um? E a igualdade entre os sexos, é factível? A sexualidade feminina, decididamente, não é igual à masculina. A modernidade é conduzida, cada vez menos, por mitos, tradições e fantasias. Difunde saber científico que transforma desejo em imposições descabidas e insanas. As novas modalidades de gozo, os exageros no vivenciar a sexualidade nivelam as formas de usufruir do corpo e estabelecer laços sociais. O mercado não pode devastar sexualidades, impor formas de expressar sentimentos, unificar linguagens e suspiros que brotam de dentro. Isso, sim, é devastação. O que temos é adolescente desiludida com a possibilidade de ser agasalhada no amor. Entristecida, despe-se entre leões e gladiadores, como no colizeu romano.

Artigo publicado em 21/08/2010 no EM.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

AMOR NO MASCULINO

Inez Lemos

O filme Vida de casado conta histórias de infidelidade. Harry, o marido, apaixona-se por Kay e procura Richard, seu melhor amigo para comunicar a decisão de se separar. Harry se considera bem casado com Pat. Supondo que Pat não suportaria a separação, e por não querer vê-la infeliz, sofrendo e solitária, resolve matá-la. Pat, por sua vez, está apaixonada por um outro. Enquanto Harry arquiteta a morte da esposa, Richard resolve cortejar Kay, traindo o amigo apaixonado. Eles iniciam um romance e Kay comunica a Harry a decisão de encerrar o caso, atribuindo ao fato dele ser casado. Harry, desesperado, sai da casa da amante e corre para sua casa. Precisava impedir que a esposa ingerisse o veneno que lhe preparara. Chegando, a encontra viva, olha-a com compaixão e diz que a ama.

O filme é ode ao amor e ao casamento. Ele não perdoa, joga na tela toda a dificuldade que envolve sentimentos e tomada de decisões – assumir-se frente ao outro que o amor acabou. Numa análise simplista julgamos que o mote é a infidelidade. Fidelidade é conceito dialético. A quem devemos ser fiéis, ao nosso sentimento ou ao sentimento do outro? Contrariar o outro, deixar de corresponder aos sentimentos que ele nos dedica, não significa que estamos traindo, mas deixando de amá-lo. Não há nenhuma vantagem em mantermos um casamento infeliz. Compaixão é sentimento ambíguo e nos conduz a encruzilhadas. Ninguém permanece numa relação que não garante retorno, algum ganho. Muitas vezes, esse ganho é secundário, mantemos uma situação de compromisso com as neuroses. Uma forma de permanecer na mesmice, nos poupando de assumir escolhas, arcar com decisões e responsabilidades. A repetição revela parceria com a morte, um fundo de culpa. A culpa cristã de não “fazer o mal ao outro”. Se agirmos em desacordo com nossa dignidade, fazendo concessões, ficamos mal conosco e infligimos a ética do desejo.

Embora o filme coloque ambos os gêneros na mesma situação, a experiência clínica revela que, quando se trata de assumir posições, os homens apresentam maior dificuldade. Geralmente, quando um casal se separa, é a mulher que pede a separação. Historicamente, a infidelidade conjugal é maior do lado masculino, o que reforça a ‘cultura do escape’ ao qual o masculino está submetido. O imaginário masculino do amor é mais sexo e menos carinho. Muitos buscam no casamento mais que sexo, eles também querem aconchego e proteção - casa organizada, funcionando a todo vapor. Acredito que a maioria das mães, no Brasil, educa os filhos homens para dependerem da mulher. Primeiro, dependem das mães, depois, muitos contam com a boa vontade e paciência das esposas. É comum ver homens inteligentes, grandes profissionais em enrascadas, se atrapalhando quando necessitam desempenhar trabalhos domésticos.

Se recorrermos à história do Brasil, ao passado colonial, escravista e patriarcal, encontramos explicações para a cultura antropocêntrica. É o Brasil arcaico que insiste em não crescer, evoluir. Nos países avançados, quando o profissional de serviços domésticos são raros e caros, os homens assumem participação nos afazeres domésticos. Que vantagem há em educar os filhos totalmente dependentes? Não se trata de convocar homens e mulheres ao tanque e à cozinha, mas debater o quanto equivocamos ao não inseri-los na vida de dentro, intimidades e especificidades - sentido de parceria e companheirismo. O ambiente doméstico é um bom espaço para iniciar a criança no respeito pelo trabalho alheio, desalienando-o. Fora da cama, em casa, muitos homens agem como analfabetos. “Analfabetos funcionais do lar”. Gostam de permanecer na posição do “eterno filho da mamãe”. Nesse particular, Freud nos confirma: “não há amor mais intenso que o de uma mãe pelo filho homem”. Grosso modo, sem entrar em questões edipianas, constatamos que muitas mães não educam o filho para a vida amorosa. Pelo contrário, ela não vê com bons olhos a intrusa, essa ladra que roubará o filho querido – rivalidade feminina.

Numa separação, o que mais dói é a sensação de perda - sentimento difuso. Não temos consciência do que perdemos no “objeto perdido”. Entristecemos por nos ver privados da sensação de protegidos - ungidos pela promessa de amor que tanto nos confortava. Sofremos por perder a afeição pela pessoa amada, por ela não mais ocupar o lugar de prevalência em nosso coração. Por não sentirmos desejados, tampouco desejantes. Constatar que o amor acabou é se ver no deserto, jogado à própria sorte. Gostamos de nos iludir, criando justificativas para conservar algo que já se foi. Preferimos adoecer a abandonar o mesmo. O filme se debruça diante da recusa de nos destrincharmos para o outro. Muitos fogem, partem sem elaborar e acumulam repertórios de relações abortadas. Vão e carregam o mal-estar de se sentir órfão de um amor “que tanto amava”. Poucos, à vontade, deslizam na esteira de sentimentos. O que fracassa não é a relação, mas nós ao deixarmos de olhar para não nos ver lá, onde, junto ao amor, deixamos de fluir. Interrompemos uma história de amor, mas não interrompemos velhas neuroses - a obsessão da boa imagem, o gozo em escapar de críticas e restrições. Amar é desatar nós.

Fidelidade, medo de ficar só, culpa ou dificuldade de elaborar o que nos bole por dentro? Como escapar da miserabilidade humana que banaliza os sentimentos e prega o amor mercenário? Por que poucos se empenham na manutenção do encantamento? Atribuir apenas ao outro a responsabilidade pela felicidade é injusto. É muita pretensão julgar que, sozinhos, somos capazes de fazer o outro feliz. Antigamente, diante do altar, um prometia ao outro fazê-lo feliz. A melhor forma de acabar com o encanto é entrar numa relação e aceitar tamanha carga. A chance da felicidade a dois é tramada na cumplicidade. Sem disputas e competições, podemos até tocar um pedacinho do céu.

Saramago, escritor português e prêmio Nobel, viveu amor intenso com Pilar del Rio, jornalista espanhola. Na época, Saramago vivia só. Embora atormentado com os rumos do mundo atual, exemplificava “o homem bem em sua própria pele”. Expressão que ilustra o sujeito apaziguado, em harmonia com seus demônios. Geralmente, os escritores são pessoas inquietas com o jogo do poder, a lama oculta nos subterrâneos das instituições. Fedor sufocado em frascos dourados. Saramago escancarou feridas - sacras e profanas. Contudo, soube realizar a conexão entre vida de fora e vida de dentro. Debruçado sobre o mundo, reverenciou o amor. Não estabeleceu dicotomia, construiu a ponte da felicidade enlaçando escrita e vida íntima.

Saramago registrou nos relógios da casa a hora em que conheceu Pilar. Todos paralisados na “hora do amor” - quatro da tarde! Artifício que eternizou a emoção do primeiro encontro - instante mágico, misterioso, delicioso! Inscrever a sensação de felicidade, prolongar, ao máximo, a condição de feliz. É quando, sob o sentimento de grandeza, potenciamos o belo, o contentamento por gostar. “Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter; ter deve ser a pior maneira de gostar”. Em linguagem poética, nos lembra o quão ridículo é confundir “gostar” com “possuir”.

Lamentar pela relação e pelo tempo em que, juntos, poderiam promover coisas valiosas. A sensação de que “algo se esvai sem justa causa” nos arrasa. Quando cada qual caminha díspares nas fantasias, é sofrimento que se espera. Saramago encontra em Pilar um lugar em que pudesse “ser”. A carne sente forte impulso em ser penetrada quando tocada fundo - algo cutuca o coração, mexe com as entranhas e desequilibra a libido. É a danação do desejo que chega e bota tudo de perna pro ar. O amor é a única tirania aceitável. Uma mulher de 35 anos se apaixona por um senhor de 63 anos. O que representa 28 anos de diferença quando os interesses são da mesma idade? Não existe amor desencontrado pela idade, existe amor que não se descobriu nas afinidades. Todos deveriam percorrer o caminho de dentro, ele oculta fiordes. Amor gestado no cimento das cidades, articulado e consumido no imediatismo do mercado, é amor frouxo e pouco suporta os trancos do coração.

Saramago metaforiza o homem que, embora idoso, não se envergonhou de continuar perseguindo o amor. Não se contentou com as migalhas de afeto que a vida lhe reservava. Lutou por muito mais. A grandiosidade do amor exige humildade e sabedoria. Como entrelaçar palavras e conjugar verbos de uma outra boca? Penetrar em sentimentos estrangeiros, diferentes concepções de vida e prazer? É o jogo do decifrar - debulhar o rosário da existência. Contentamento e alegria encontram um lugar no desejo. Saramago fez valer o desejo de felicidade, abandonou a arrogância e pediu ajuda a Pilar. Queria pular, com ela, os tocos da caminhada. Desvelar entraves, traumas e neuroses é preparar o caminho para o amor. Encontro sonhado e, muitas vezes, mal tratado.
Ocupamo-nos com os cabelos, o celular e o futebol, mas poucos se dedicam à aprendizagem. Como transitar melhor na vida intima e manejar as intermitências do coração? Amar, verbo intransitivo. Com Mário de Andrade descobrimos que “o amor deve nascer de correspondências, de excelências interiores. Espirituais, pensava...De noite uma ópera de Wagner, Brahms”. Quão profundo e sério é convidar uma pessoa para o amor! Compartilhar uma trajetória, tecer um tempo, destilar emoções. Se nos bastamos e não queremos dividir o pão da vida com o outro, evitemos o verbo amar. Amor mísero é o que nos espera quando mergulhamos na cultura do escape. Quando o parceiro, desencantado, escolhe o benefício da morte ao desimpedir-se para outro amor. Forma pouco sábia de se iniciar um novo romance.

Artigo publicado no C. Pensar em 7/8/2010