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e entusiasma a alma.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

RAÍZES PSÍQUICAS E SOCIAIS DA CORRUPÇÃO

Inez Lemos [1]

            Qual a conexão que podemos estabelecer entre a família brasileira e a cultura de corrupção que se implantou no Brasil desde que a Coroa portuguesa aqui se instalou? O modelo de colonização português foi de exploração e não de povoamento, como o que ocorreu nos Estados Unidos, pelos ingleses. Explorar o máximo de riquezas de forma predatória, por meio de mão de obra africana e escrava. Desrespeitando índios, culturas, rios e florestas. Na casa-grande, vão se instalar os donos das terras, os coronéis e nas senzalas, os escravos. Assim nasce a cultura brasileira, marcada pela segregação e exclusão. A desigualdade social, que sempre fez parte do projeto civilizatório, nunca foi empecilho ou alvo de críticas pelos defensores do desenvolvimento econômico brasileiro.
            Como repensar a corrupção que sempre dominou as grandes empresas nacionais? Furnas, Petrobrás, Vale do Rio Doce (antes da privatização), sempre foram alvos de políticos e empresários ensandecidos pela cultura de propinas. Ao que hoje assistimos é parte de um modelo corrupto que aqui chegou, se expandiu e que, além de não o erradicarmos, o alimentamos. Sem repensar qual cultura que queremos educar os filhos, sem definir o modelo filosófico e político que escolhemos viver não saberemos como contribuir com a mudança de paradigma.
            Pais culpados por trabalhar em excesso e se ausentar da educação dos filhos - tensos e pressionados em atender às demandas de consumo -, acabam perdendo autoridade. Pais subservientes aos modismos, ou por comodismo, aderem às posturas antiéticas. Muitos justificam os atos insanos alegando que, se não submeterem, os filhos se sentirão excluídos. A subserviência dos pais nos remete à do país - que nasce submisso a outro com a missão de fornecer ouro, prata, terras e mulheres. E que, tardiamente, inicia os primeiros passos rumo à distribuição de renda, fator que garante a autonomia e a resistência do cidadão aos mandos e desmandos do poder econômico.             Ao se aproximar da opção ética de vida, devemos intensificar a participação social. Incentivar, entre as crianças, a convivência positiva, não predatória. Se respeitamos o espaço público, se jogamos o lixo na lixeira e não na rua, se evitamos fila dupla, reafirmamos a opção pela ética, pela não corrupção, uma vez que estamos subvertendo os impulsos perversos. Corrupção e perversão, dois conceitos que se entrelaçam. Qual a política social que defendemos? Exclusão ou inclusão? Há uma diretriz ético-política que nos obriga a repensar os rumos que traçamos para os filhos. Enriquecer a qualquer custo? Educá-los para a submissão ao mercado, ou encorajá-los nas escolhas que priorizam a realização pessoal?
            O conceito de ética coloca o outro no centro da questão. Uma escolha ética exige consciência social, propostas que implicam o outro e ultrapassam o mero prazer. O princípio é o bem comum, convivência que garante qualidade de vida à maioria. Não há desenvolvimento econômico sem preservação do espaço público. Sem os mananciais não teremos água, bem sagrado que não pode ser privatizado. A Amazônia é uma dádiva dos deuses, e, no entanto, o homem está destruindo-a. Como ensinar a reverenciar a natureza mais que shoppings, livros mais que sapatos? O respeito a si e ao outro requer alfabetização na linguagem do coração - exige que demos ouvidos aos ruídos que brotam das entranhas e das montanhas.
            Se a ordem colonial e que muitas famílias conservaram era a de acumulação a qualquer custo, manipulando e acobertando atos ilícitos, a novidade que defendemos é a resistência à cultura da omissão. Omissão e submissão rezam na mesma cartilha. É quando ao filho não foi ensinado a assumir, tampouco a se responsabilizar pelos erros.  Ou quando nos assujeitamos às manipulações de mercado, às propagandas que nos influenciam com produtos não saudáveis. Toda escolha é um ato político e exige coragem moral. Cabe aos pais e educadores formar, na criança, o olhar crítico que a defenderá do lixo televisivo e de outras promiscuidades - questionar posturas machistas e preconceituosas. Como os casos de estrupos às estudantes do curso de medicina da USP (Universidade de São Paulo) pelos colegas. A prevenção contra a violência e a corrupção nos remete à castração – como os pais interditam as pulsões perversas dos filhos.  
Como eliminar os mecanismos que viabilizam a corrupção? Como criar as condições culturais para que o desejo de ética se estabeleça? Educar para que brote nas crianças as razões que as levarão a defender a honestidade - seja por escolha ou constrangimento. O declínio da função paterna deflagra o declínio da ética quando sentimentos como constrangimento e vergonha são substituídos por arrogância e cinismo. A cultura da ostentação é uma forma velada de favorecer a corrupção, uma vez que ela prega o culto à aparência e ao espetáculo. O show narcísico dos políticos é caro e exige segurança. O culto ao poder seduz e induz à corrupção - forma tentadora de enriquecimento rápido e vultoso. O perverso gosta de se sentir protegido para agir, roubar. E a política é palco que garante prestígio, fóruns privilegiados.  
Chamar os políticos de ladrões, corruptos, sem-vergonha, é simplificar a questão. Tudo isso faz parte da sexualidade humana, são atos perversos. A perversão significa “versão em direção ao pai”: ela provoca e escarnece a lei para melhor a desfrutar. A velha política exige liderança, aquele que pode tudo - lugar do pai primevo, o que tinha todas as mulheres da horda, o único que gozava. É muito difícil ocupar o poder de forma ética, democrática, pois o poder traz em sua essência a père-version - a versão do pai, o que detem o poder! Contudo, os que não foram educados para respeitar as regras que regem o espaço público são seduzidos pelo poder. Lá eles fazem e acontecem à revelia dos poucos neuróticos que tentam manter a moral, a ética e a lei.
Famílias interessadas em contribuir com a seriedade das instituições, como na defesa e no fortalecimento da democracia, deve se ocupar com a educação sexual e psíquica dos filhos. Quanto mais exemplos dos pais no campo da cidadania e da ética, menor as chances de condutas perversas e corruptas se alastrarem. Ninguém nasce corrupto, perverso e criminoso. O cidadão se torna assim em função da educação que recebe. Não se nasce corrupto, torna-se corrupto. O Brasil sempre cultuou condutas perversas e de desrespeito à coisa pública. Atos antirrepublicanos.
O momento político que vivemos é propício na reafirmação do mundo que sonhamos, como também na qualidade do ser humano que desejamos deixar neste mundo. Ou contribuímos para a transformação ética do país, exigindo da sociedade  reflexão nos valores e posturas que alimentam o ódio à igualdade e à democracia, ou sucumbiremos à barbárie. Pais que não inserem os filhos nas leis civilizatórias acabam compactuando com a cultura da corrupção. Ao se submeterem aos caprichos e mimos dos rebentos, deixam de prepará-los para as interdições, conflitos e frustrações que a vida lhes imporá.
Jacques Rancière, em Ódio à democracia, coloca em xeque políticas liberais que, embora defendam esta forma de governo, deturpam o ideal democrático, seguindo as determinações de uma classe dominante que não aceita perder espaço entre as forças capitalistas. No Brasil pós-eleições, assistimos a uma parcela da população que foi à rua explicitar a obsessão pelo individualismo democrático. Para Rancière, esse conceito é parte do chamado ódio à democracia. Uma classe de abastados que não concorda em contribuir com políticas que visam diminuir as desigualdades sociais, tampouco perder o lugar e as condições de privilegiados. Muitos chegam a surtos e delírios e, sem nenhum pudor, lançam palavras de ordem a favor da intervenção militar. Convocam a ditadura em defesa dos abusos patrimoniais - modelo apropriado pelas oligarquias.
O ódio à expansão de oportunidades aos excluídos deve ser combatido nas salas de aulas e nas famílias. Vida feliz inclui ensino à cidadania. A democratização do Estado é antídoto à delinqüência. A desfaçatez dos políticos e o enriquecimento ilícito são um convite à corrupção. Além de injusto, gera violência e revolta. Ao defendermos direitos, promovemos autonomia e ética.
Neste Natal, recomendamos de presente aos filhos, ética. Interditar a criança em seus atos descabidos e perversos. Reprimir e frustrar é não submissão aos impulsos narcísicos. É prevenção contra a perversão, à violência e ao crime.               






[1] Artigo publicado em 20/11/14 no caderno Pensar do jornal EM. Psicanalista – email:inezlemoss@gmail.com

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

ALMAS DESERTAS

Inez Lemos[1]
  
            “A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como “um deserto de almas”. O outro concordou, sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinho no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra – talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou”.
Esse fragmento do conto Aqueles dois, de Caio Fernando Abreu, adaptado para o teatro pela Cia. Luna Lunera, espalha, de forma poética e contundente, questões de aparente mediocridade e repressão que estão na ordem do dia.
            A história se passa em uma repartição. O ambiente de trabalho é retratado como o palco das fofocas e dos olhares repressores, recheados de moralismo e hipocrisia. Dois rapazes se conhecem na empresa e logo sentem uma afinidade que os une para além da cama. O foco se amplia nos papos sobre filmes, músicas, mulheres, interesses. Discretos, selam uma amizade reforçada pela solidão – ambos viviam sós. “No deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade – de certa forma, também em nenhuma outra -, a não ser a si próprios”.
            Os papos nos almoços de domingo eram regados a boleros: El Dia Que Me Quieras, Perfídia, La Barca. O encontro dos dois metaforiza descanso na loucura - as veredas dos sertões, o oásis no deserto. A solidão é marcada pela ausência de desejo, de algo capaz de inundar a alma de alegria. Era isso que Raul representava para Saul, a possibilidade de transcender o cimento, o barulho dos ônibus, as cabeças mesquinhas da repartição. Um encontro que permitia mergulho nas entranhas. Ambos abusavam do cinema e da música para se salvar. A arte é condutora de vitalidade, além de hidratar, planta entusiasmo onde impera desalento. O conto denuncia a mediocridade que subjaz a homofobia, o preconceito. O que leva pessoas a se ocupar com a cama alheia, a se interessar em investigar se entre duas pessoas do mesmo sexo há algo além de amizade?
            “Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares...Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas”. O fato se alastrou pelos corredores. Logo, foram surpreendidos pelo chefe de seção, que lhes comunica que, em função de umas cartas anônimas denunciando “relação anormal, ostensiva e desavergonhada” entre os dois, era obrigado a demiti-los.  
            Preconceito, moralismo, fofocas, maledicência - significantes que se alastram como erva daninha nas instituições. Caio responsabiliza: infelicidade, tédio, vazio cultural, vida interior empobrecida. “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”. A alegria diante das afinidades que envolvem uma relação entre pessoas do mesmo sexo pode provocar incômodo, inveja. Contudo, presenciamos um outro fator que vem incentivando a ira aos homossexuais – o uso político da homofobia para defender interesses econômicos.         
Ao longo da história, o preconceito foi usado pelo Estado em defesa de interesses financeiros. Durante a colonização do Brasil, Portugal escravizou africanos em nome de uma suposta inferioridade do negro – homens fortes, bons para o trabalho braçal, porém incapazes para o trabalho intelectual. Hitler, ao criar o nazismo e em nome de uma eugenia, promoveu o genocídio dos judeus, uma vez que ser judeu era pertencer a uma raça impura. Sempre teremos justificativas para exercer dominação, sempre descobriremos aspectos que operam como desculpas para excluir, perseguir e exterminar uma parcela da população.
            No caso da homofobia, presenciamos uma narrativa que tenta se apoiar na religião e explorar a importância da família ‘hierárquica’ de outrora. Na verdade, as igrejas neopentecostais estão tentando criar um fator que justifique a importância de fortalecer a bancada evangélica. Destacam passagens do Antigo Testamento e proclamam que Deus não abençoou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na defesa da família abençoada por Jesus, é fundamental a inserção na política. A isca é jogada de forma truculenta - estratégias fascistas e terroristas são usadas sem pudor. As notícias são estarrecedoras.
“Vereador de Dourados, Sergio Nogueira (PSB), sugere enviar homossexuais para uma ilha por 50 anos”. Contudo, há pastores convocando a nação masculina a resistir à onda de boiolas que assola o país: “Está tendo uma deficiência nacional de homens, esta geração não produz homens, esse governo está efeminando os homens, os homens tem se vestido como gays, e para ser pai, rei, profeta, você precisa ter porte varonil, Deus fez macho e fêmea, fez o homem para ter macheza, virilidade, ser líder...o vetor que guia você não é a ciência, as artes, o cinema.... isso é coisa do diabo”.  
A família nuclear, geralmente centrada no pai provedor, autoritário e machista, não é lembrada com carinho por filhos e esposas. Muitos saudosistas lamentam a mobilidade das novas configurações familiares: monoparental, casal homossexual, entre outros. A casa se democratizou, o poder circula entre muitos. A idéia do homem como único detentor do falo não cola mais. Será que devemos ter saudade do pai coronel - patriarca que, com mão de ferro, comandava a família como comandava a propriedade rural? Desde que alguém cumpra com a função paterna e materna adequadamente, as crianças estarão salvas.
Apropriar-se da beleza poética da peça, ao denunciar aspectos do momento político que vivemos e que mais nos remetem à Idade Média, é uma forma de resistir ao medo das trevas. A ameaça chega prometendo noites escuras, uma vez que o capeta do fundamentalismo odeia poesia, cinema, teatro. Tudo que Raul e Saul amavam. Como combater o pensamento retrógrado, alienado - jogo político sujo, desavergonhado e perverso? Pastores evangélicos, em sua maioria, convencem os fiéis com táticas de guerra, pregam com gritos, chutes e palavras de ordem: ‘vamos derrotar Satanás’. Não se pregam mais solidariedade, tolerância, perdão, respeito.  
Ao tratar questões da sexualidade humana com religião, deslocamos o foco e enfraquecemos o debate. A homossexualidade é efeito dos amores edípicos, diz da forma como a criança foi marcada pelos pais – identificação maior com a mãe, negação do pai. Em meio à complexidade da questão, o sujeito orienta a sexualidade que, por sua vez, não resulta de uma escolha consciente, deliberada. É algo maior que a ele se impõe.    
Ninguém nasce racista, nazista, homofóbico, violento. Ao rechaçar o diferente, desdenhando, fofocando e humilhando-o, há esperança dele se retrair e perder a força para lutar. Raul e Saul enfrentaram o moralismo insano dos colegas com altivez. A rotina mortífera do trabalho não perdoa ninguém. E a fofoca é o raio de luz que rompe a solidão e a mesmice, movimentando o tédio. A alma empobrecida e solitária padece no deserto e convoca inveja, maledicência.
Caio denunciou o preconceito com paixão e entusiasmo, nada de jogar pedra no senso comum que perambulava pelas esquinas frias e sujas de São Paulo. A moçada da Cia. Luna Lunera entendeu o recado. Entra no palco esbanjando talento, simpatia e convicção na arte - espada ideal para combater o obscurantismo dos reacionários.
Os atores se entregam ao texto lembrando a importância do teatro como arte engajada, munição contra a crueldade do mundo. Reprimir, culpar, introjetar pecado e criar demônios - quantas não são as formas desumanas de conquistar o poder e ganhar uma eleição? Quão emocionante é ver jovens dedicando a vida ao teatro - apostar no belo é a forma ideal de denunciar a maldade humana. Pobreza que cochila nas almas desertas - mendigas de amor e poesia.                    
           
       
               



[1] Artigo publicado em 27/09/2014, no caderno Pensar do jornal E.M. Inez Lemos é psicanalista e consultora em educação. 

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

DIFERENÇAS ACIRRADAS

Inez Lemos[1]

O preconceito em relação ao pobre, gordo, feio, idoso, negro, homossexual, deficiente físico e à mulher, entre tantas outras formas de discriminação, merece debate. A exclusão é um traço da estrutura histórica que permeia as sociedades que cresceram sob a égide da acumulação de capital. Em diferentes períodos do processo histórico, a moralidade e os códigos éticos funcionaram em nome de uma razão, de uma lógica construída em nome de interesses ocultos. A maioria dos discursos morais esconde aspectos extremamente imorais. Contudo, a nossa era revive ondas de preconceito e intolerância assustadoras.
Muitos são os exemplos que apontam para o recrudescimento da violência, exemplos de intolerância que hoje se manifestam nas redes sociais. Interessa investigar a tendência em detonar as pessoas. Que ódio é esse? A intolerância que assusta é a do campo pessoal, é um ódio ao indivíduo. Qualquer atitude é uma justificativa para se jogar sobre o outro a insatisfação e a frustração. Em tempo de eleições, o debate é permeado por várias formas de preconceito. Partidos se digladiando nas redes sociais, onde o ódio é destilado numa demonstração de que, quando se trata de interesses políticos envolvidos, avançamos pouco.
Os códigos morais são inventados pelos homens, embora fundamentalistas de várias religiões se esforcem em afirmar que o discurso da intolerância resulta de decretos divinos. Hoje, o cenário político no Brasil é disputado entre pastores - muitos são os candidatos das Igrejas evangélicas. Nos anos de 1960 a 1980, uma parte do debate político, na Igreja Católica, contava com a presença das Comunidades Eclesiais de Base, que, incentivadas pela teologia da libertação, lutavam pela promoção da inclusão. Hoje, predomina uma guerra suja com a presença de pastores homofóbicos e retrógrados. O pensamento obscurantista, em nome da moral e da manutenção da família, tenta se estabelecer de forma truculenta. Trata-se de regras elaboradas em torno de interesses de um grupo que discursa em nome de Deus.
Defender uma religião ou um partido. Como diferenciar o certo do errado? Valores, interesses, posturas, crenças. Importa desvendar o que subjaz ao discurso da intolerância, ao acirramento do preconceito. Quais são as pressões, ambições e motivações que levam à defesa de um partido ou de uma crença? Geralmente, o debate sem manipulações e jogos perversos é o melhor caminho. Contudo, num país comandado, quase sempre, por um jornalismo comprometido, uma mídia tendenciosa e pouco transparente, torna-se impossível. O método da persuasão funciona quando a maioria dos cidadãos não cultiva o hábito da leitura, não pesquisa e não gosta de raciocinar a respeito de temas que envolvem a vida do cidadão. Toda eleição requer reflexão sobre propostas que atendam melhor aos interesses da maioria. Com a presença maciça da tecnologia, da internet e da televisão, as escolhas precisam ser elaboradas, debatidas, analisadas.
Qual a participação da mídia, das famílias e das escolas ao investigar o rancor que tem pautado as relações humanas? Como debater propostas, condutas e formas de convivência, respeitando o diferente? Historicamente as circunstâncias econômicas são as que mais influenciaram o discurso político e social. Conceitos de certo e errado variam conforme os interesses de cada época, eles não são naturais ou intuitivos, mas implantados por meio de pressões – via mídia, partidos ou religiões. Destaco o rancor, a violência simbólica contra determinadas classes sociais. Agressão aos médicos cubanos, a moradores de rua, mendigos, jogadores de futebol negros. Comentários preconceituosos contra cidadãos de baixa renda que, devido a uma pequena ascensão social, hoje freqüentam ambientes antes exclusivos de uma elite bem nascida e bem empregada. Vivenciamos uma crescente onda de violência social contra determinadas etnias e classes econômicas.
Exemplos recentes de preconceito contra negros, nordestinos e homossexuais colocaram em xeque o mito do brasileiro cordial, elaborado pelo historiador Sergio Buarque de Holanda, como também a falácia de uma democracia racial. Para o antropólogo Roberto da Matta, o preconceito sempre existiu. Agora ele apenas está mais acirrado pelo fato de as “classes subalternas” estarem se movimentando. Nunca fomos uma sociedade miscigenada e harmoniosa. Enquanto o morro estava sob controle, cumprindo a função de reserva de mão de obra barata, as diferenças não incomodavam. A desigualdade operava como sustentação de uma estrutura social que beneficiava as classes economicamente dominantes.
A manifestação da violência na esfera pública desvela a face de um país ressentido e rancoroso diante das perdas, lugar de privilégios. Os programas de  transferência de renda e de cotas para negros, indígenas e alunos de escolas públicas promoveram a redução da desigualdade social, causando desconforto às classes abastadas. Na verdade, o brasileiro sempre cultivou o gosto pela hierarquia social, o que coloca a igualdade de direitos na ordem do insuportável. A desigualdade, em nossa cultura, sempre foi vista como natural, e a forma injusta e violenta com que as classes dominantes tratavam os pobres, um direito. Aos filhos das domésticas e dos porteiros restava um lugar social já definido, enquanto aos filhos de médicos, herdeiros de uma posição social privilegiada, eram reservados os melhores cargos no mercado de trabalho.
Para os fragilizados pela estrutura social injusta, a esperança de mobilidade social era vista como uma loteria, poucos conquistavam reconhecimento e boas condições de trabalho. O ódio se deve, muitas vezes, às mudanças operadas por programas de distribuição de renda que rompem com o gueto social a que o país estava condenado. Havia uma situação confortável, a concorrência desleal garantia, em terra, o paraíso sonhado. Mais vagas nos vestibulares e nos empregos. Em casa, boas empregadas por baixos salários. Com o aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores de baixa renda, uma nova estruturação social surge, o que não é bem visto pelos conservadores - revoltados com a perda do lugar de distinção social. Com isso, a inclusão social como fator de luta é hoje uma realidade na agenda do brasileiro.     
Como não aplaudir os avanços sociais que nos aproximam do Primeiro Mundo? Contudo, o que temos é um movimento descabido, insano e inconseqüente por parte de uma parcela da população. Muitos, numa postura obscurantista, destilam o ódio diante das mudanças que rompem a separação geográfica entre negros e brancos, ricos e pobres. Sem debates nas escolas ou outros fóruns de discussões que possibilitam aprofundar as questões envolvidas, dificilmente iremos abandonar o reducionismo dicotômico - forma banal de analisar o momento histórico em que vivemos.
Como reconhecer o outro que sempre esteve distante, o diferente, como igual? E como aceitá-lo como um concorrente em pé de igualdade? Enquanto o país vivia a segregação social, a ira estava contida. Na verdade, poucos reconhecem a importância de se corrigir as injustiças sociais causadas pelas classes economicamente privilegiadas. Oliver Thomson em A assustadora história da maldade, adverte: “A segunda maior área de ilusão cumulativa tem sido a justificativa da desigualdade econômica, resumida no dístico medieval “O rico em seu castelo/O pobre no portão”. O que começa com uma ética que recompensa diferentes membros de uma sociedade em diferentes níveis, dependendo do valor de sua contribuição, em geral evolui para uma indefensável justificação de desigualdades permanentes”.
Muitas famílias, escolas e faculdades abandonaram o discurso da ética e da cidadania. Preferiram, de forma obsessiva, se ocupar com a preparação para o mercado de trabalho. Trocaram a lógica dialética pela lógica formal, operacional. O debate de idéias não ocupa mais as agendas universitárias. Aderiram às pressões do mundo técnico. Com isso, a educação está abrindo mão do espaço de formadora de cidadãos, aquela que prepara para uma convivência saudável entre valores contraditórias e discordantes. A polêmica e o conflito são formas de expansão do pensamento. O caráter negativo de focarmos apenas as matérias técnicas é o distanciamento dos jovens em relação à essência humana.
              A maldade não brota do nada. O rancor expõe insegurança, infantilismo, inveja. Ele é lançado sobre o outro que nos incomoda, provoca. A fúria tenta impedir que  desfrute da posição que conquistou. Mais que ódio, rancor é sentimento que se guarda e,  ao ressurgir, volta a atacar. Educar implica ensinar a ganhar e a perder. O fracasso é parte da condição humana. No deserto, longe dos bons sentimentos, a moçada solta o leões exigindo privilégios historicamente petrificados.            [1] Artigo publicado em 6/09/2014 no caderno Pensar do jornal EM. Inez Lemos é psicanalista.               

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

EMBRIAGADOS PELA BELEZA[1]

Inez Lemos 

            A celebrada sociedade do espetáculo, orientada no mercado, no individualismo e  no avanço tecnológico, multiplica seus efeitos sobre o corpo, colocando em cena personagens cunhados no estilo publicitário. Como explicar o investimento na perfectibilidade, via ciência estética e biológica? Corpos manipulados por bisturis, corpos simulados, falsificados. A mídia nos testemunha que o Brasil ultrapassou os EUA e se tornou campeão em cirurgias plásticas. Na tradição clássica, o humanismo questiona os fundamentos da razão moderna, as narrativas que nos afastam de Deus, divindade metaforizando transcendência, o lócus onde depositamos a fé no ser humano enquanto potencia criativa. Sem criação não há paixão, tampouco humanismo. Qual a relação entre plástica, transcendência e humanismo?  
            O corpo ganha primazia, torna-se o lugar de materialização do desejo, revelando a esperança de um futuro melhor - possibilidade de reconhecimento e sucesso. É onde o homem da era tecnológica produz a si mesmo. A trajetória do pensamento encurtou. O percurso da fantasia e da utopia simplificou. Hoje o endereço dos jovens que seguem a cartilha da vida espetáculo se resume numa clínica de cirurgia plástica. As noticias apontam para uma reificação do humano. Fashion é escolher um boneco como ater ego. O meu duplo é um ser midiático, industrial. É nele que vou me espelhar. Os humanos não me interessam. O que eles têm para me oferecer? Prefiro o homem de borracha, que não me frustra, tampouco me decepciona.
            Entre as reportagens que apontam mutações nas escolhas entre jovens e adolescentes, regulamentadas pelo espetáculo, via mídia, destaco: “Celso Santebanes, 20, quer ser uma celebridade de verdade. Se diz obcecado por beleza, sempre quis ser reconhecido, aparecer na mídia. Fez quatro cirurgias plásticas para ficar parecido com Ken, o companheiro da Barbie”. A imprensa confirma o deslocamento entre ciência, cultura e corpo. Mundo interno e externo, desejo e política, eu e o outro. Quem está agenciando o desejo humano? Por que a ciência segue os paradigmas da moda atual, produzida por uma indústria truculenta e perversa? Transformar o corpo humano em mercadoria é mais rentável, uma vez que o insere numa rede de consumo de produtos de beleza. Dermatologistas, plásticas, cosméticos, salões de beleza, spas do corpo.
            A beleza hoje é normativa, produzida pelos empresários da moda, que ditam os rumos da estética. Eles definem o bonito e o feio. Contudo, importa investigar o que subjaz à busca desenfreada pelo corpo perfeito, à intolerância com a imperfeição e a incompletude. A tentativa de instaurar uma superfície brilhante revela a necessidade de fugir do real. Como suportar o abismo sombrio de uma existência sem sentido? Como enfrentar o feio, significante que nos remete à finitude? A velhice nos coloca lado a lado com o efêmero, estética trágica imposta pelo tempo. O medo da velhice, expresso na corrida incessante à beleza, expõe uma interioridade precária e moldada na superfície da existência humana. Além de deflagrar pobreza simbólica, aponta para um vazio de transcendência - empobrecimento afetivo e laços sociais inconsistentes.  
            O feio em nossa cultura torna-se insuportável quando revela uma conexão com o dentro, o sentir. Na verdade, o que não suportamos é a dimensão do humano. Ao eleger a aparência, o externo como campo privilegiado do brilho e do belo, estamos interessados em afastar as perturbações, os ruídos que a existência nos coloca. Ser humano é ser apaixonado, é se atormentar pela positividade da ilusão. Quão difícil seria atender as demandas internas, os urros da alma que não cessam de nos incomodar, exigir? Mais fácil é eleger falsos brilhantes, falsas esculturas, falsas idéias de felicidade, representações simuladas de hedonismo. A hedoné moderna trilha na tecnocultura. 
            A rejeição do feio é um dos sintomas das sociedades midiáticas, que cultuam a imagem e a colocam acima de outros valores. O feio provoca conexão intensa com o sensível, por expor a vida como ela é. O belo convoca o brilho externo - luz, imagem, aparência, show, espetáculo. O feio convoca o dentro, por fora, ele não produz sedução alguma, apenas repulsa. Talvez o apaziguamento esteja na aceitação do feio, uma vez que ele nos ajuda a enfrentar a frustração, a fazer as pazes com a falta. A feiura nos humaniza ao desvelar nossa condição de mortal e avisar que o tempo não é benevolente. A morte é esse outro que nos invade e confunde os sentidos. Ela exige que sejamos realistas, que cultivemos mais os sentimentos, nos ocupemos com a intimidade, as vozes do coração. Para que trabalhar tanto, acumular riquezas, se amanhã morreremos?  
            O feio na era tecnológica, dos sorrisos espalhados no Facebook, é o espontâneo, o que escapa à produção, o que não foi elaborado, maquiado. Quase tudo merece intervenção: o rosto limpo, natural e imperfeito expõe o fantasma da falta – angústia ao enfrentar o real. O corpo como tributo de um novo tempo é o corpo-mercadoria, o corpo-máquina. As inovações tecnológicas trouxeram grandes transformações no campo das subjetividades. Entre elas, destaco a percepção humana e o novo estatuto imaginário corporal. Entram em cena novos personagens, corpos portando objetos estranhos, desenhos, marcas simbólicas: aparelho nos dentes, unhas e cabelos postiços, fios de ouro nas rugas, silicone nos quadris, dentes encapados. A ciranda dos objetos sobrepõe ao sujeito, que se apaga entre dietas e salões de beleza. O registro identitário é cunhado pela estética da transformação. Corpos mutantes, sujeitos opacos, desejos suspensos.
            “A junta comercial do Rio de Janeiro revela que os salões de beleza cresceram 142% entre 2000 e 2013. Enquanto cresce a procura por tratamentos de beleza, diminui a demanda por livrarias, que recuaram 57%”. O corpo é o sintoma do homem. O que equivale dizer que a nossa sociedade prioriza o culto à estética e à aparência, em detrimento da essência, do conhecimento e do saber. Os holofotes estão direcionados para o externo, as luzes do Olimpo miram os belos penteados. As belas palavras definham no obscurantismo, nos templos de Salomão, entre dourados imitando ouro. Simulacro de beleza oca. Vivemos a derrocada do pensamento, e se o pensamento é uma forma de resistência, significa que estamos condenados ao fundamentalismo midiático, na estética ou nas religiões.
            “A mãe jogou o filho de 2 anos na parede, matando-o. Alegou que a criança estava brincando com o seu celular, sem sua permissão”. O celular, nesse caso, corresponde ao objeto de desejo do filho, é ele que foi internalizado como parte do corpo da mãe. Desejá-lo é desejar uma parte da mãe que lhe faltou – mãe abandônica, ausente. Mães envolvidas entre tablets e smartphones, os novos objetos que fascinam. Brilhantes, sedutores, cobiçados. A internet é o ópio contemporâneo, age como substância tóxica, deixando a humanidade embriagada, viciada. Delírios provocados por uma caixinha, nada de fantasias ao vivo, o prazer é on line. Precisa mais?
            O eu não existe sem a alteridade. O Outro da pós-modernidade é um objeto. Na nova dimensão psíquica, a criança, ao ser marcada nas relações parentais - mais por objetos que por carinho, contato corporal -, segue uma orientação funcional, operacional. As relações são pautadas por agendas previamente estabelecidas. Os sentimentos devem seguir um plano de metas, que se traduz pelo imperativo de viver todas as formas de prazer em um só tempo. Se somos regulamentados por uma organização externa, é de se esperar que os desejos próprios sejam desviados. Se não fomos marcados por referências familiares sólidas, se não construímos laços sociais consistentes, sequer adquirimos uma mínima proteção afetiva e emocional. Um estofo básico que sustenta o sujeito diante das agonias da vida.
            Ao privilegiar o externo, perdemos a conexão com o subterrâneo, lugar onde cochilam as perturbações humanas. Ser humano é se debater entre o trágico, o cômico, o belo e o feio. Todos são elementos fundantes da loucura humana. E não há nada mais sedutor que uma doze de loucura. É ela que introduz a paixão nas relações. Ao intervirmos no corpo em função de um modelo, retiramos dele as insígnias, os traços familiares. Desprovido do simbólico, o corpo-expressão se apaga. Abandona a memória viva, desejante, para encarnar a imagem fria de um cadáver. Corpo sem persona. O mundo do pastiche é desumano. Beleza confinada em corpo morto.
            O filósofo Sócrates, exemplo de feiura, conduzia os discípulos ao paraíso, ao reino do saber, a sabedoria metaforizando o divino exercício do pensamento. A percepção da beleza que rege a existência exige tocar entranhas, desvendar os mistérios da aventura humana. O feio, ao mesmo tempo que provoca repulsa, fascina. Sedução, uma multidão de sentimentos, muito mais que obra de arte - escultura em praça vazia.    
   
                   



[1] Artigo publicado no caderno Pensar do jornal EM em 9/08/2014.

domingo, 10 de agosto de 2014

O APAGAMENTO DO SUJEITO

Inez Lemos[1]

Muito se escreveu sobre o desempenho da seleção brasileira na Copa. Neste particular, importa explorar os aspectos que escapam a toda família e que não foi diferente com a Scolari. A Copa é um evento esportivo apropriado por patrocinadores, articulados numa engrenagem midiática que fabrica astros, mitos, craques. A narrativa que envolvia os nossos jogadores era a do sucesso, como se o hexa estivesse escrito nas estrelas. Uma Copa não se ganha apenas com holofotes, torcida, selfies, glamour, mas com planejamento, trabalho e equilíbrio interno.
Talvez o maior pecado de Scolari foi ter subestimado o campo “psi”. O técnico esqueceu-se de trabalhar a parte interna dos jogadores, ao longo dos anos. Um trabalho que envolve aspectos emocionais, psíquicos, não se faz em apenas dois encontros, como confirmou a psicóloga Regina Brandão. Controle interno é capina árdua, constante.  Scolari não avaliou bem o desgaste emocional, a sobrecarga de pressão quando se disputa uma copa no próprio país. No jogo com a forte Alemanha, os jogadores,  fragilizados pelo infortúnio com Neymar, e sob os olhos do mundo, foram jogados como carne aos leões. Faltosos, inseguros e temerosos, não resistiram. A emoção solta voou balançando o que não estava muito firme, estruturado. O lado subjetivo sobrepôs ao objetivo.
Na sociedade de mercado, quando um jogador entra para um time poderoso, ele deixa de ser gente e passa a ser um produto. Não se interessa pelos aspectos psíquicos,  logo contrata um empresário. Ainda garoto, parte em busca de um sonho de infância, se consagrar ídolo. Ali não havia sujeito do inconsciente, seres humanos dotados de coração, alma, sentimentos, emoção. Havia produtos da Sadia, Itaú, Coca-cola, Hyundai.
Uma das características da cultura do espetáculo é o apagamento do sujeito. Significa que a orientação passa a ser comandada pela mídia. É quando ocorre a dessubstancialização do sujeito. Ele sofre uma intervenção subjetiva. Apropria-se de sua essência, instrumentalizando-a. O mercado insiste em descaracterizar o lado humano, focando apenas no resultado. O Futebol business se transformou em jogatina. Las Vegas comandada pela CBF e Fifa - corporações com cifras no celebro e dólares na retina.
A falta é que orienta a nossa relação com o mundo. A criança, desde cedo, convive com a falta de um objeto. Na configuração edipiana, trata-se da mãe. A maturidade psíquica exige experiência com a perda. É ela que orienta o desejo e ajuda a estruturar o sujeito. Significa que o desejo é organizado por uma falta simbólica, que  ensina a suportar a frustração, a entender os limites da vida e a desconfiar da capacidade de infalível. E assumir, sem muita dor, fracassos, responsabilidades, erros. Ao aprender a conviver com os tropeços que a vida nos impõe, estamos adquirindo estofo interno. Cabe aos pais prepararem os filhos para as adversidades do mundo.
Nossos jogadores não tiveram um bom pai. Esse, além de fracassar na formação dos filhos, não assumiu a responsabilidade pelos equívocos que resultaram na tragédia de 8 de julho. Contudo, algo escapa, rompe o traçado e espalha humanidade pelo gramado. Os garotos resolvem assumir sentimentos primários. Vergonha, humilhação. Consternados, não disfarçam mais a frustração de terem enterrado o sonho juvenil. Frustração não é sinônimo de vergonha e humilhação. Vergonha implica covardia, hipocrisia. E assumir erros é grandeza, coragem moral. Isso não faltou aos filhos, apenas ao pai.
Todo sintoma é alerta, sinal de que algo não vai bem. É quando desconfiamos de nós mesmos e assumimos a fragilidade interna. Os jogadores, ao longo das disputas, deram vários sinais de uma singularidade comprometida. Contudo, a máquina não podia parar. Após a derrota, quando não havia mais como sustentar a máscara, ouvimos deles pedidos de desculpas. Banhados em lágrimas, tentaram se redimir. No apagar das luzes, o que se via era um grito de pesar no ar. Tragédia épica encenada sob a memória de Tiradentes. O eterno retorno dantesco. Do riso fez-se o planto. Do céu fomos ao inferno.
Um pedido de desculpas acusa culpa. Ora, quem lutou até o fim, quem entra numa copa do mundo preparado e dando o maior de si, diante de uma eventual perda, resta-lhe um olhar desolado e triste, como fez Messi. Trágico não é perder, é se descobrir enganado, iludido, ludibriado. Os garotos, desavisados, se embalaram no conto de fadas do pai leviano, que não os prepararam à altura dos adversários.  Acreditaram na mídia, que os endeusaram, criando a ilusão de uma vitória que não se cumpriu. O mal é a promessa não cumprida. De deuses passaram-se a vilões.
Nenhum sentimento negativo cabe no Olimpo! E quanto mais endeusados, mais cegos e surdos para o óbvio eles se tornam. A cegueira não foi dos jogadores, eles avisaram, choraram, expuseram as fissuras. E o técnico, mesmo diante do fracasso, tentou nos convencer se valendo da matemática. Justo ela que não consegue alcançar o invisível, o que se oculta no mais íntimo dos mortais.  Estatística não toca o âmago, tampouco serve para sanar um corpo sangrando diante do flagelo humano. Frente a um país trucidado, o poderoso Felipão tenta um salvo-conduto, se defende e afirma que o time caminhava certo. O que nos faz lembrar Fernando Pessoa e seu Poema em linha reta: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos tem sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil...”
Enquanto isso, os alemães marcam a passagem esbanjando dedicação, carisma e comprometimento. Lembro-me de uma referência à seleção alemã, que não obstante seu prepara e empenho, considera o futebol uma questão de “educação e esporte”. Educação é processo que visa aprendizagem. Uma intervenção com o propósito de transformar, de inserir algo novo, modificando hábitos, vícios. A forma como a CBF lida com o esporte no Brasil é lamentável. De cima de uma estrutura poderosa, formada por um covil de coronéis, numa postura autoritária e arrogante, se coloca distante dos compromissos públicos. Esperamos que tudo isso tenha se espatifado no campo da pouco transparente Fifa.
A falta que o pai faz - tanto para a seleção como para o cidadão. Desamparados pela classe política, sofremos uma crise de representação. Como abandonar o imediatismo, o individualismo exacerbado, a urgência de ser feliz? Um país se faz com a participação de todos. Não apenas com personagens, astros, estrelas. Um sentimento coletivo, um grupo e não celebridades que pouco se interessam pelos bastidores. No campo e na rua, devemos cultuar a alteridade, o culto ao bem comum. O povo brasileiro demonstrou que leva jeito para isso. Basta convocá-lo à comunidade dos bons sentimentos.
O fracasso foi o significante fundante desta Copa. Muitos orquestraram o fiasco, julgando que seria um evento vergonhoso. Marcelo, no primeiro jogo, cumpre a profecia. Num ato falho, crava o gol contra. Seria o inconsciente atravessando a realidade? Um inconsciente de nação desacreditada, desprezada? O discurso não colou, não teve efeito de verdade, e a mídia nacional e internacional teve que desconstruir a narrativa pessimista. O sol é nosso, o céu azul também. Chega de cultuar crepúsculos.
O mundo do futebol é reduto dos machos, cartolas. Gente que não se interessa pelo mundo subjetivo - angústia que cochila no subterrâneo da alma humana. Esquecem que somos todos do mesmo barro, e quando encharca, vira lama. Ser que oscila, claudica, fraqueja. Como o sol, que ora se levanta, ora desce no horizonte e se recolhe. Nem sempre teremos céu azul. Um céu nublado ainda é céu. Assustados com os leões, os canarinhos não soltaram o canto. O que não significa que desaprenderam de cantar. Não há trauma que não possa ser superado, ultrapassado. A tragédia do fracasso serve para nos humanizar.
O sentimento que fica é de pesar. Pesar diante do sofrimento dos meninos. Doeu nas entranhas vê-los no limbo, soltos entre gorilas. Pesar por eles ter acreditados em Papai Noel. Velhinho que metaforiza o sonho de vida feliz, quando todos serão contemplados com um belo presente. Não, a Fifa não garante um lugar no pódio a todos, apenas aos mais preparados. Muitas serão as histórias que teremos a contar. O fato dos jogadores exibirem salários milionários não é suficiente para mudar a posição deles diante da complexidade humana. Ricos, porém precários como todos nós. Vale uma visita ao divã.












[1] Psicanalista. Email: inezlemoss@gmail.com

segunda-feira, 2 de junho de 2014

SELEÇÃO DOS RESSENTIDOS

Inez Lemos [1]


Como explicar a gênese da violência que assola o país? Depredação de ônibus, bancos, linchamentos aos supostos bandidos, execuções a pedradas, vasos sanitários e pauladas. Crueldade, vingança, ira e ressentimento. O caldo da maldade é engrossado dia a dia. Ao analisar os sinais de descontentamento e vandalismo, esbarramos em questões políticas e psíquicas. O inconsciente, ao ser contaminado pela realidade social, sofre os efeitos da vida política.
O descobrimento do Brasil fez parte do projeto de modernidade, em sua corrida pela acumulação de riquezas. Somos filhos da pirataria, da contravenção e da corrupção. Filhos de uma relação de interesses - o português que engravidou a índia como forma de obter informação de quem aqui vivia. Estratégias de dominação. A arte de manipular para melhor reinar. Alienar, impedir que o outro participe, interaja. Quanto mais alienado, mais fácil de controlar. Contudo, o brasileiro, cansado de desrespeito e descaso, resolve se rebelar contra o poder público e privado. Não sobrou ninguém. A espada está no pescoço de todos nós.
O que move o mundo é o desejo insatisfeito. O capitalismo manipula, os políticos fingem que não escutam, mas a verdade é que não se controla um país oferecendo apenas  pão e circo, celulares, tablets, lipoaspiração. O trabalhador, além de cartão de crédito, exige transporte, saúde e educação de qualidade. Anseia por dignidade, direitos, justiça. A desigualdade provoca revolta e ressentimento. O sonho agora é por igualdade de oportunidades. Punição aos ladrões de baixo e de cima. Quando o crime é uma prática da classe política, rebelar é a palavra de ordem entre os que sofrem as conseqüências.
 O Brasil é terra de ninguém, onde as leis dificilmente são cumpridas, onde viceja o racismo, a homofobia e a intolerância. A onda fascista é um efeito da anomia, da farra e desfaçatez dos poderosos. Como circular idéias de ética, honestidade e honradez, se grande parte dos governadores, prefeitos e deputados direciona o olhar para suas contas bancárias?  Educar e governar são tarefas intermináveis. Aprendemos a amar, respeitar e governar com os pais. Pai é aquele que, ao exercer a função paterna, simboliza a lei: interdita o desejo descabido. Cobrar doçura de um povo injustiçado é despautério. Sem o bom exemplo, os filhos continuarão no vandalismo. Seria o Brasil um convite ao banditismo?
            Por que somos tão condescendentes com os políticos corruptos? Se a corrupção sempre foi um direito dos que dela se beneficiam, privilégios e injustiças sempre fizeram parte dos que detém o poder econômico e político. Educar é barrar os filhos em seus impulsos destrutivos, inserindo-os nos limites da lei. Sem interditar, frustrar, a chance da criança tornar-se perversa é grande. A política é o palco privilegiado dos perversos, é onde eles são amparados em seus atos ilícitos e soltam as garras da ambição.    
O passado coronelista e patrimonialista nos ensinou a utilizar o espaço público como se fosse privado. Ao mesmo tempo que o criticamos, repetimos posturas que condenamos. Como ultrapassar o atavismo moral que parece nos definir? Mudar uma cultura, fundar outra idéia de nação, quão difícil! É trabalho profundo, há de se tocar entranhas e rever o lixo recalcado. Todo sintoma aponta para uma tentativa de cura. Ao mesmo tempo que denuncia o que não vai bem, revela um gozo – prazer e desprazer na compulsão à repetição. Reclamamos dos corruptos, mas somos tolerantes quando eles defendem nossos privilégios.   
            Ao analisar a violência, penso na palavra ressentimento. Res-sentir - sentir duas vezes, não perdoar, guardar mágoas, alimentar vingança, não se implicar nos conflitos.  Ressentimento é sentimento que fixa o sujeito na neurose. A neurose paralisa o sujeito no sintoma, impedindo-o de avançar nos bons sentimentos. O ressentido é um infeliz, pois se cristaliza na amargura. O brasileiro, que sempre gozou da condição de ressentido e  trapaceado, agora quer, nas ruas, exigir políticas públicas de qualidade. Melhor que reclamar em mesa de bar ou descontar no erário, engrossando o caldo dos corruptos.
A exposição de um cotidiano promíscuo provoca no brasileiro o desejo de desforra, de botar para quebrar. Se para o político a demanda da população é o que menos conta, se poucos se ocupam com suas necessidades, é de se esperar que o muro se rompa. No filme Getúlio, quando não havia mais o que esconder, o presidente Vargas confessa “Nunca me pediram nada para o país (ou para povo), sempre me pediram algo para alguém”. A violência das ruas metaforiza o filho lesado contra o pai perverso. Passa-se ao ato de forma impulsiva, impensável. É sangue fervendo na veia.
            Nossa história ressalta a ausência de interdição capaz de regulamentar o apetite pelo gozo e organizar um quadro social que outorgue a cidadania. O romance familiar brasileiro, nossa mitologia, produziu a fantasia do privilégio e da violação de direitos. Revisitando as determinações histórico-sociais dos processos de subjetivação, identificamos o descaso pela res-pública (coisa pública). O ethos que nos funda é o do prazer e não o da felicidade. A imagem que vendemos é do paraíso sexual. Mulheres gostosas e de fácil acesso.
País idílico, frívolo, que não soube se fazer respeitar. A Copa promete jogos e orgia. Goleada no campo e na cama. A volúpia e o fascínio que exercermos no imaginário dos estrangeiros condena nossa filiação. Submetidos ao imperativo do gozo, deixamos de cobrar o ouro que o mundo nos deve. Filhos de um amor pérfido. Sedução e traição.
A filha pobre e de pouca escolaridade, diante do dinheiro, se corrompe e se prostitui. Promiscuidade que lhe atravessa a alma e a lança na sarjeta das perdidas. Menina de um futuro morto. O que não nos faltam são motivos para subverter a ordem, romper com a imagem do negativo social. Chega de manipulação. Mídias e governantes nos alienam e dominam. Submissos aos interesses do mercado, nos fixamos no gozo.
            A herança escravocrata explica a sujeição ao grande outro e a vocação à dependência. Consumista, imediatista e permissivo. Reserva libidinal do mundo. Aos olhos dos estrangeiros, a imagem será de eterno prostíbulo? Como explicar a tendência da mulher brasileira à nudez? Nossa condescendência com os sedutores revela o fracasso da função paterna. Adoramos nos exibir. Do carnaval ao Facebook, não perdoamos os flashes. Repetiremos na Copa o destino colonial? Permitiremos que o estrangeiro entre e explore o melhor, seja açaí ou adolescentes?
            Sem Marx e Freud, sem pudor e ética, vencerá a violência. O niilismo quer acabar com a consciência social - utopia por maior distribuição de renda e oportunidades. O fantasma fundamentalista, aliado ao obscurantismo que se esconde nas religiões de esquina, prega a ignorância e a insanidade. Viver é enfrentar contradições. Saber lidar com os paradoxos humanos.
A anomia revela a desorganização social, a ausência de leis. Para que o tecido social se articule, é necessário mais que renúncia pulsional. Não se constrói uma nação apenas com repressão. O respeito aos pais se deve ao amor – o temor apenas é insuficiente para que a criança internalize a lei. Para que o brasileiro se anime e torça pelo Brasil, é preciso haver paixão. É preciso motivo para que o filho torça pelo pai. Contudo, a questão da violência no Brasil, antes de ser política, é psíquica.
            Se a Copa servir para deflagrar a consciência de cidadania, que aponta que a responsabilidade na construção de um país é de todos, valeram os investimentos. Se servir para estancar o masoquismo e investigar a condição de vítima, melhor ainda. Toda neurose, todo lugar de gozo, responde por uma filiação. A violência tanto pode ser efeito de uma metáfora paterna inconsistente, como do desamor do pai pelo filho. Como respeitar a casa se nela somos violentados, desprezados? Por tudo isso é difícil para o brasileiro sair às ruas com bandeiras e apitos. No lugar da torcida, prepara-se a revolta. Como sustentar um outro lugar, uma outra filiação?
            O significante que operou como referência simbólica foi o da permissividade – riqueza e sexo em terras tropicais: praias, borracha e minério. Quando a filiação fracassa, a maledicência ganha espaço e se instaura como arremedo da função paterna. Colonização e exploração, corrupção e impunidade, permissividade e leviandade. A história e os significantes nos condenam. A onda de ações predatórias revela a condição de rebotalho, ela está no inconsciente do sujeito e não em sua condição econômica. Traço de filho rejeitado, com mãe omissa e pai ambicioso. Filho do português com a índia, do coronel com a escrava. Como reparar as perdas? Não estaria os black blocs denunciando o fracasso da função paterna?








[1] Artigo publicado no caderno Pensar do jornal EM em 31/05/2014. Inez Lemos é psicanalista.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A VIDA NO SIMULACRO

Inez Lemos

O capitalismo sobrevivi das neuroses humanas. Cada época produz sintomas que definem seu tempo. Sem as patologias, o lucro dos empresários seria infinitamente menor. As histéricas não passariam as tardes nos shoppings adquirindo quinquilharias que não necessitam, os homens não teriam tanta fissura por carrões e os jovens tanta obsessão pelo mundo virtual. Os objetos deixariam de cumprir o papel de objeto fálico, e a humanidade não seria tão insatisfeita. Ou depositaria menos na aparência e no consumo a solução para as angústias e frustrações. Outros tampouco ocupariam o lugar de submissão e exploração, se entregariam menos ao sacrifício e masoquismo. Ao tratar as neuroses, procurariam saber de suas faltas - onde fracassam, derrapam. No processo analítico, mudariam de posição diante da vida.
Os objetos de ostentação servem para suprimir uma falta, uma ausência. Se nos sentimos frágeis, inseguros ou infelizes, se a vida não está como desejamos, a tendência é buscar fora de nós algo para nos completar. Aditivo narcísico: adicionar algo com o intuito de melhorar a imagem. Há a ilusão de que, ao portar um objeto valioso, ele nos colocará numa posição de prevalência, superioridade. Ao consumir, seja objeto ou imagem, a ordem é nos distrairmos e nos desviarmos do verdadeiro desejo.
O desejo que interfere nas escolhas é inconsciente e resulta das idéias que circulam na linguagem, portanto, o inconsciente é contaminado pela linguagem. Se na era digital as crianças estão sendo estruturadas na linguagem virtual, on-line, significa que a matriz psíquica está se realizando de outra forma. E a função paterna e materna está se processando mais na internet do que nas mesas de refeição.
Qual a educação sexual que os adolescentes estão recebendo via internet? Por que a garotada não desgruda os olhos das telinhas? O que elas oferecem de tão interessante que muitos nem comem direito, tamanha a fissura pelas imagens? Que magia é essa capaz de cooptar full time corpo, mente e coração? A maioria só existe se estiver acoplada ao seu aparelho, sem ele torna-se órfã de si mesma.
O tablet, além de aditivo narcísico, é o cabaré da vez. Num mundo repleto de imagens, onde há muito que ver e pouco que ler, o prazer deslocou-se do corpo real para o corpo imagem. Tocar, olhar nos olhos, sentir a pele do outro se tornaram emoções ultrapassadas, em desuso. Não estaria, essa nova forma de viver a sexualidade, aprofundando o desamparo, hiância inerente ao ser humano, sensação de que algo está faltando? E como fica a vida afetiva quando a máquina passa a ocupar o lugar do outro - o corpo no real não é mais objeto de desejo?
A mídia nos avisa: “Pornografia on-line influencia relações entre jovens, tornando-as estereotipadas e, às vezes, perigosas”. Filmes de conteúdo explícito inundam tablets e smarphones. Neles, jovens e adolescentes iniciam a vida sexual. O corpo é apenas uma imagem usada para garantir o orgasmo. Nada de fantasias sexuais, erotismo, preliminares. As imagens são nuas e cruas - um festival de genitálias garante o prazer rápido. Tudo acabado, é só iniciar novamente, sem trabalho de esperar pelo outro ou ouvi-lo em suas questões íntimas. Quais as conseqüências de crescer acreditando que o que se vê nos vídeos é a forma adequada de se iniciar sexualmente? Onde estão os pais e educadores? As famílias e as escolas não se ocuparam em construír argumentos  eficazes ao contrapor os conteúdos pornográficos que circulam na internet?
Não, a questão não é progresso, tampouco moralismo, mas sonhos. Avançamos em tecnologia, mas a concepção sobre a existência humana continua precária, imediatista, objetiva. Como encetar mudanças estruturais, práticas sociais e culturais, sem que a condição humana seja desrespeitada? Como ansiar por práticas sexuais menos violentas, menos estrupos, quando os jovens que educamos não são inseridos nos limites da lei? Como afirmou o psicanalista Hélio Pellegrino, sem pacto edípico não há pacto social. Sem que a criança internalize a lei, os limites da convivência humana é impossível a experiência harmônica e civilizada. Toda relação sexual implica um outro, que, por sua vez, esbarra em questões éticas, de respeito e cumplicidade.
A literatura clássica trata o sexo com erotismo. Eros – deus do amor, personagem mitológico. Mito, magia, fantasia. A arte é a forma poética de expressar aspectos da vida. Por meio dela, comunicamos o cruel, o feio e o encantador. O sexo, se tratado sem poesia e arte, além de grosseiro, é broxante. A questão está no desinteresse pelo outro, vivemos a falência da alteridade, do prazer compartilhado. A vida sexual dos internautas, robótica, solitária e operacional, é um arremedo do prazer conquistado pelos amantes.
O orgasmo na era digital é cópia imperfeita do que muitos casais, no real do sexo, já conquistaram. O capitalismo falsificou natureza, objetos, verdades. Não satisfeito, passou a falsificar o amor, o prazer e o orgasmo. Desinteresse é quando não interagimos, não participamos do banquete. É quando entramos apenas como consumidores, não nos julgamos autores da obra, apenas espectadores. Os jovens, ao tocarem apenas uma tela e dela extrairem prazer sexual, perdem a oportunidade de construir uma grande história de amor.  
O progresso tecno-ilógico dizimou a esperança do encontro amoroso, esperança de vida feliz. Não falo de sonhos impossíveis, mas de felicidade cunhada na prosa, no cotidiano das almas carentes de transcendência. Amor é fantasia pra ser fantasiada, ilusão pra ser iludida. Sem isso, o sexo é osso duro de roer. A violência entre os jovens revela a face maldita do mundo pós-industrial. O romantismo perdeu sentido. Coisificaram o amor, reificaram o sexo e objetivaram as relações. De coisa em coisa, cavamos o abismo ôntico. Como recuperar a crença nos encontros, como torná-los “eternos enquanto durem”?  No antigo imaginário feminino, prazer é picar couve, cantar e esperar o coração se descortinar, desvendando descampados, superando erosões. O amor exige tempo, há de se descongelar os sentimentos e decifrar as intermitências do coração.
O melhor do encontro é o que escapa, o que foge ao roteiro e nos envolve em enredos inusitados. O elemento surpresa garante a intensidade do êxtase. A literatura erótica conduz o leitor ao mundo fantasmagórico, enquanto nos vídeos o usuário entra em contato direto com a imagem, limitando o campo da fantasia. Erotismo é colocar poesia na pulsão, desviá-la do real. Sexo ao pé da letra. Coisa gostosa é sentir arrepios quando somos invadidos, assaltados por um olhar inesperado. Mas isso é outra coisa, é viagem feminina. E das antigas. Papo de outrora, quando as mulheres iam para a cozinha embalar lembranças de uma noite de amor. É quando elas descobrem que para gostar de panelas e fogão, primeiro precisam ser feliz na cama.
Mulher sonha, sonha alto. E de repente acorda, coloca os chinelos e vai colher girassóis. Ser mulher é profanar pecados. Maldição boa. Aquecer a alma nas panelas - desejo iluminado que transcende. Arrepiar, chorar e lamber lágrimas - quem não chora não sabe ser feliz. O choro prepara o rosto para o riso. Chorar levanta a alma e desperta emoções que cochilam, cura tristeza, mau olhado e desesperança. Na cozinha, enquanto se pica cebola, faz angu ... pulam-se cercas e currais. Sedução é metáfora, é encantar o mundo com a linguagem de dentro. Como nos lembra Adélia Prado: “Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento”.  
O amor no feminino é busca eterna. Busca-se algo que transcenda o cotidiano, o tempo ordinário que nos consome em sacolões, bancos, trânsito. Ela quer olhar para o mundo e enxergar beijos, afagos, bossa nova, jantares a luz de velas, viagens. Homens, isso é a mulher - ela não esquece o desejo de subir montanhas, serras. É no topo do mundo que ela quer depositar o seu orgasmo, é lá que o seu corpo anseia testemunhar prazer, o prazer de sentir o feminino vasculhado pelo masculino. É nas alturas que ela quer reverenciar o êxtase de tocar um pedacinho do céu.
Isso, invadam a sua alma, arrebentem as entranhas e acariciem as ilusões de que, pelo menos naquele momento ela é única. Contudo, muitas garotas de hoje, ávidas consumidoras de pornografia on-line, assistem às perversões mais doentias. E isoladas, mergulham no simulacro de uma relação sexual, arremedo de vida feliz. E, desacreditadas de que alguém possa levá-las ao orgasmo, se viciam no prazer solitário. Vitimas do excesso de filmes de conteúdo explícito que distorcem, estereotipam e espetacularizam o que deveria, com recato e na penumbra, ser realizado em tempo real.      


quinta-feira, 6 de março de 2014

EDUCAÇÃO OU BARBÁRIE


Inez Lemos[1]

            O Brasil colonial era movido pela força dos negros africanos, tratados como animais de carga e transporte. Cabia aos escravos a função de transportar a realeza. Quando chega o automóvel, esse desponta no cenário como símbolo aristocrático, se distanciando da população, que contava apenas com o bonde e o trem. O carro segue como símbolo de superioridade social. Eis o imaginário que define a rotina do motorista que se julga superior por ostentar carro importado, reiterando a lógica da hierarquia social. É o cidadão que tem certeza de seu direito de curtir a noite, se embriagar, correr e matar.
Dificilmente nas rodas familiares os chamados “cidadãos de bem” discutem a postura do mais rico e poderoso em relação ao uso do espaço público. Qual o imaginário que permeia entre eles? Como construímos a hierarquia do rico sobre o pobre? Embora presenciemos demanda por intervenção e correção aos abusos cometidos no trânsito, sabemos que há um discurso direcionado ao outro (infrator) e um diferente quando somos nós, de melhor poder aquisitivo, a bola da vez. Situamos fora de nós o processo de conscientização que possa garantir melhoria da convivência no espaço urbano. A guerra  só se intensificará se não repensarmos posturas elitistas e racistas que reforçam o viés hierárquico. A dança é nossa, embora poucos se ocupem em lutar pela igualdade de todos perante as leis que regem a cidade.
Na moderna dinâmica social convivemos com o cinismo, a desfaçatez. Características do jeitinho brasileiro, hipócrita e obsceno - o mesmo que permite ao motorista responsável por mortes no trânsito se esquivar da penalidade. Seja comprando o policial de trânsito, a justiça ou os familiares da vítima, quando essa é pobre, negra e inferior. Como lutar e exigir punição aos criminosos, realidade que ameaça todos nós, vítimas de jovens que crescem acreditando na superioridade dos ricos sobre os pobres, do carro sobre o pedestre, do aeroporto sobre a rodoviária? Os nostálgicos do glamour imperial e escravocrata, no fundo, defendem a impunidade dos crimes cometidos por um de seus pares – brancos e bem nascidos. Lembramos que no Império fazendeiros que se opunham à escravidão eram também donos de escravos.
A mídia expõe as contradições de uma sociedade dividida. De um lado há os que se viciaram em julgar bandido apenas o menor infrator que nasceu na favela, cresceu entre traficantes, não teve oportunidade de estudar em boas escolas e, consequentemente, está na rua cobrando o que a vida lhe deve. Para ele não há outra saída senão os cárceres de Pedrinhas – amontoados de gente, ratos e torturas. O clamor por justiça e punição é ferrenho quando o réu vem do lado de lá. O grito por segurança ecoa nos jornais. Contudo, sabemos que a violência deve ser tratada como sintoma, como um aviso de que as coisas andam fora do lugar. É mais uma questão política, social e cultural do que de polícia. Nenhuma criança nasce bandida, criminosa. Ela assim se torna em função da forma como foi educada e inserida na cultura. 
Bandido é significante vazio. Uma criança não escolhe o mundo do crime por deleite, por ser raça ruim, gente imprestável, negativo social. Dificilmente, vamos à rua exigir punição para o vizinho da Zona Sul - filho de um amigo empresário. A criança que vive sob a cultura dos milicianos, que controlam a região onde vive, cresce sob a lógica da vingança e da corrupção. A lei dos milicianos, um Estado dentro de uma comunidade vítima da falência do poder público, é ferrenha. Não há segunda chance. O bom educador sempre aposta na recuperação do ser humano, quando a ele é dada oportunidade de repensar atos e conhecer o outro lado da vida. Na rua ele aprende a se defender apenas com armas, o poder dos excluídos. Enquanto que nós aprendemos o poder da palavra, da teoria, dos estudos e de uma boa profissão. O que revela que os bandidos que julgamos irrecuperáveis no fundo são humanos e carentes como nós. A diferença é que a vida é mais generosa com uns que com outros.
A vingança aos infratores, recomendada por gangues que operam à margem da lei, faz apologia à barbárie, justiça com as próprias mãos. Culpam a ação dos direitos humanos e das ONGs que defendem o direito à infância com lazer e escolas bem equipadas. Com cinismo e ironia, não vamos enfrentar essa tragédia social. No Brasil às avessas, o bandido é vítima de si mesmo. A delinqüência é efeito de uma autogestão burra e perversa. Revolta, vingança e violência. Eis o caldo que cozinhamos quando julgamos a manifestação do problema como se fosse o problema. Os fatos de forma simplista, com argumentos obscurantistas e pouco consistentes. A vida não se resume em culpar, punir e condenar. Seria fácil se a questão fosse apenas o rojão que matou o cinegrafista Santiago Andrade. Ou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o estatuto da Impunidade, como muitos julgam.
Seja rica ou pobre, se a criança não foi bem acolhida, ou se não foi interditada em suas pulsões destrutivas, as chances de cair na delinqüência são grandes. Falta ou excesso de amor? Educar é simbolizar sobre o certo e o errado. Não adianta pressa, o ser humano demanda tempo para entender as contradições da vida e dos sentimentos. Ódio, frustração, humilhação. Sentimentos que atravessam o corpo e bate fundo o coração. Talvez esse percurso nos ajude a questionar o que tem levado adolescentes a mergulhar na violência e no crime. Uma leitura ampliada sobre o sujeito e a sociedade em que estão inseridos. Uma comunidade implicada no sofrimento dos que vive a desesperança. Diante da condenação, tão somente, o futuro já nasce morto. Interessados em investigar os atos antissociais, e sem medo de rever posturas petrificadas, é hora de nos unirmos diante do caos. Ou escolhemos educar as crianças com rigor, carinho e oportunidades, ou mergulhamos na barbárie.   
Ao atacar a epidemia da violência, deveríamos traçar linhas de condutas preventivas (longo prazo) e curativas (curto prazo). Pouco se debatem propostas preventivas que dificultam que a criança se refugie na delinqüência - propostas que abordem aspectos sociais e subjetivos. Em vez de deixar o caos se estabelecer para, então, agir de forma truculenta, melhor seria pesquisar ações efetivas que atuam na raiz da questão. A cobiça que gera violência e crime é mais a forma como o desamparado, que vive a privação afetiva, simbólica e material, enfrenta os conflitos que um mal em si. A peste que recai sobre as almas miseráveis, que cresceram cultuando a vingança (quando se é pobre), sem chance de descobrir outros motivos para se viver, senão roubar do outro algo que lhe provoca inveja e revolta. 
Outro exemplo de leviandade no trato de questões profundas é como estamos debatendo a questão da maioridade penal. Agimos como adolescentes afoitos em assegurar os anseios a qualquer custo. “Quero por que quero uma sociedade segura, onde os filhos possam circular livres dos drogados, delinqüentes e criminosos”. O rebotalho social que atrapalha o gozo dos abastados. O discurso pró-redução da maioridade penal deflagra a desfaçatez com que julgamos o fracassado, o excluído. A vida é percurso abissal, descida fecunda aos abismos da alma humana. Pouco se pode falar sobre o drama do vulnerável, sujo e fedorento, que nasceu quando não deveria, e cresceu como animal - sem noção dos códigos que regulam a vida social. Contudo, mesmo sem ser promovido a sujeito, deverá responder pelos seus atos.
Esses menores são filhos do descaso dos pais e governantes - efeito da desigualdade social, da impunidade aos corruptos que, sem pudor, lesam o erário. Dinheiro que deveria garantir uma juventude com emprego e perspectivas, além de políticas públicas eficazes como planejamento familiar, inserção em atividades culturais e esportivas. A cultura do extermínio, que apregoa a exclusão aos que incomodam, é absoluta. A solução deve ser engendrada de forma ampla, investigando os motivos que levam uma criança, desde cedo, a “escolher” o caminho do crime. Punir por punir mais revolta que recupera. A forca é o último recurso. O criminoso habita todos nós, basta deixá-lo livre, não inseri-lo nos limites da lei - metáfora paterna.  
A maldade não escolhe conta bancária, é da condição humana. Inútil querermos aplacá-la apenas com prisões, quando sua origem deve ser simbolizada. Questão  complexa e que esbarra no outro - essa relação que determina e regula o desejo. Mais   eficaz seria criarmos um movimento exigindo mudança na forma como o Brasil educa as crianças. Expandir o olhar diante do outro – estupor e vergonha que produzimos.




[1] Inez Lemos é psicanalista

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

VINGANÇA NAS REDES SOCIAIS


Inez Lemos[1]

            Ao escrever sobre relações afetivas contemporâneas, quando a tendência é   expressar os sentimentos via ondas eletromagnéticas, o que está em questão é uma profunda mudança na produção da subjetividade – um novo sujeito e uma nova forma de vivenciar as pulsões: amor, ódio, vingança, inveja, ressentimentos. Outrora, ao falarmos de sentimentos, transportávamos o pensamento para um outro lugar - arrastávamos as entranhas para o mundo íntimo. Um mundo que, ao ser acessado, requer um pouco de silêncio e concentração, centrar no que nos causa estranhamento. O silêncio, por sua vez, requer tempo - tempo é a mediação que viabiliza contato com a vida interior. Sem ele dificilmente questionamos o modo de ser e estar no mundo.
            Vivemos a mania dos smartphones e tablets. Tornou-se comum entre a moçada   agendar as relações afetivas e sexuais on line. O tempo é o tempo virtual, é nele que se vive, se ama e se tenta resolver os incômodos. A vida íntima, os conflitos, logo é registrada em redes sociais. A questão que destacamos é a qualidade das relações, como os jovens estão elaborando a sexualidade, algo maior que envolve perdas, pernas e corações. Nem todos conseguem desvincular o ato sexual dos sentimentos. Relação implica duas pessoas se envolvendo, trocando profundezas. Intimidade não se resume em tirar a roupa e ir para a cama, mas desnudar, aos poucos, as camadas internas. É quando escolhemos quais as páginas da alma que queremos mostrar ao outro. A vida afetiva exige mergulho nas entranhas. Amar é entranhar, revisitar poços, cavernas e grutas.
            Como resistir à efemeridade nas relações, a não adesão à banalidade dos sentimentos? Como expressar o descontentamento com o rumo do mundo, quando tudo se transforma em espetáculo, circo midiático? Uma transa vira notícia no facebook, a viagem e o carro novo têm que ser postados. Exibimos a fartura, a abundância, a beleza e o sucesso. E como fica a vida quando tudo é precário, fracasso e pobreza? Não seria a violência, a criminalidade e os rolezinhos - o urro que destoa da manada, a boiada que sofre a exclusão? A obsessão em priorizar o consumo - a arrogância fascista de se impor pelo dinheiro define os traços de uma sociedade desigual e injusta. A maioria dos pais está ocupada em tamponar a falta do filho com objetos, máquinas e mimos. Poucos pensam em uma formação humanista, uma outra concepção de mundo. Qual o lugar que queremos que o nosso filho ocupe? O de bem sucedido, rico, estúpido e machista? Os monstrinhos de hoje serão os bandidos de amanhã. Ou será que julgamos monstros apenas os excluídos, que crescem sendo humilhados, destruídos pela desfaçatez daqueles que se julgam melhores por transitarem em carros importados?
O debate questiona o tempo e seu papel na educação das crianças. A forma como os jovens amam, pensam e circulam pela vida remete à postura dos pais. Família, cidadania, ética. Palavras desgastadas diante da fissura em locupletar. O pai não tem tempo para conversar com o filho, a mãe julga mais importante a academia e o salão de beleza. Tudo é prioritário quando se trata de cumprir com as funções paternas e maternas. Tempo, esse desconhecido quando o assunto é educação de filhos. Contudo, ele é o elemento que possibilita aos pais imprimirem nos filhos a marca, o diferencial de cada família. Como educá-los priorizando experiências em que viceja intimidade, interioridade? Relações sem viço são frouxas e expõem a descrença dos envolvidos na potência dos sentimentos. A qualidade da convivência confere sentido à vida, o fio que une brota de dentro. Dificilmente estabeleceremos relações douradoras apenas por satélites.
Nas redes sociais a comunicação é mecânica, a máquina mediando um espaço coletivo, espaço de pouca elaboração onde o tempo é fruição sem maturação. Tempo imediato e não mediato. A internet é um recurso excelente para se trocar visões de mundo, encontro de idéias e debates. A obsessão em registrar intimidades em rede atesta a superficialidade da nova ordem amorosa. O mundo virtual em que os afetos e desafetos são postados lembra o Coliseu romano. No Império Romano, a diversão da plebe era torcer pelos gladiadores. Hoje, a juventude se diverte digladiando uns aos outros na arena virtual. As feras soltam o veneno da inveja, ciúme e ressentimento. O palco cibernético é o escolhido pela moçada – muitas garotas se despem e oferecem aos namorados materiais para possíveis vinganças. 
O Brasil é um dos campeões em usuários de celulares e redes sociais, contudo, os índices não são suficientes em garantir qualidade nos conteúdos das mensagens. Não avançamos na forma de trabalhar os sentimentos danificados. O ressentimento não elaborado transforma-se em vingança – sentimento que nasce do retorno dos desejos vingativos sobre o eu. Ao querer se livrar dos incômodos, agimos sem pensar, sem tentar saídas honrosas. Logo, lançamos sobre o outro a fúria, caldo fermentado na crueldade. Sentimento tóxico que adoece a alma indigente e impiedosa. Destacamos a importância daquele que deseja lançar a espada sobre o seu algoz, de se implicar e analisar o teor da vingança - dívida adiada, acumulada. A vingança é a tentativa de reparar o sentimento de ter sido lesado. Uma reparação fajuta, uma vez que o alívio incide apenas em privar o outro de algo – se eu não a tenho ele também não a terá.
O sofrimento, sensação de perda e necessidade de se sentir superior expõe a frustração de não ser o que gostaríamos de ser – o eu idealizado confrontando com o eu real. Ser amado e aceito é um mecanismo de defesa, idealização de proteção. Fantasia que ameniza a sensação de desamparo e abandono. Dependência garantida. O que está em questão não é o amor que sinto pelo outro, mas a dor que sentirei ao perdê-lo. A propriedade é fantasia de proteção, defesa contra a tragédia do desamparo. Sentir amado  é deparar com a necessidade de escapar da angústia, do medo e da loucura. A traição é uma forma de fuga, de escapar do que realmente importa – a não consciência de si. É o ato de se excluir de uma determinada situação, um acordo que fazemos com a incapacidade de explorar os conflitos afetivos. Todo desejo é conflitante.
O ato de tentar escapar ileso, de não se implicar, demanda pouco esforço. Atravessar os incômodos é mais difícil que suplantá-los. O desejo de punição exposto na web, a chamada pornografia de vingança, é a versão atualizada da violência de gênero. E deveria contribuir para o debate sobre a forma como os jovens estão sendo educados. Machismo, homofobia e racismo apontam rejeição ao diferente e deflagra uma educação elitista, patrimonialista. Talvez falte às famílias introduzirem o dabate sobre temas e conceitos sociológicos e antropológicos. Saber perder, saber lutar, questão necessária quando o assunto é um mundo menos violento. A violência é efeito da frustração. Sem refletir sobre perdas, exclusão e humilhação, pouco podemos esperar dos jovens. Geração que aprendeu a exigir e pouco sabe sobre trabalho e conquistas.
            Deixar frustrar, suportar que o filho entre em contato com a dor pela perda da ilusão da superioridade. Saber do fracasso é se preparar para a satisfação, é dar conta de assumir o lado obscuro, a lama que habita cada um de nós. Cultivar a frustração é manter a ilusão sobre nós mesmos. Quanto mais frustrados, mais ressentidos e vingativos. Se o desejo advém da falta, negá-la é manter-se na repetição, na mesmice. Enfrentar as próprias mazelas, se implicando e se responsabilizando pelo fracasso, é transformação, ação sobre o sentimento.
Como enfrentar a dor se não paramos o caminhão? É na boleia, no ir e vir da vida, que a compreensão se processa. Ao nos proteger da raiva de se saber pior, mais feio ou menos poderoso, algo tem que se romper e abrir espaço para bons sentimentos. Perdão, tolerância, compreensão. A vingança, o desejo de fazer o mal é a incapacidade de estabelecer contato consigo e com os outros. Quando vivemos afastados de nosso âmago - lugar onde jorra emoção -, nos privamos de esperança. Como lutar por sentido e se extasiar pela alegria da conquista? Viver a secura do mundo, desidratado e pouco  recompensado por práticas afetivas consistentes, é cunhar loucura. Devastação. No deserto, as almas indigentes de sentido denunciam a descrença no futuro. Atos descabidos e enlouquecidos. O excesso ou a falta de esperança os condenam ao tédio, enfado - pouco há a desejar. Violência e vingança são apelos ao limite, o grito de socorro pela irrelevância da vida, quando tudo é permitido. Seres deformados pela promessa de prazer eterno. Covardia é pecado difícil de ser perdoado, uma vez que não há vida humana sem passar pela experiência da dor. Saber viver é saber conviver com a falta. Ser onde não tenho, eis a questão.    



[1] Psicanalista. Artigo publicado no Pensar em 25/01/2014 – Email: inezlemoss@gmail.com