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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

EXPANSÃO DO AMOR

por Inez Lemos

Artigo publicado no caderno Pensar em 11/07/2009.

O filme De repente, Califórnia nos ensina a viver. Zach tem muito a nos dizer. Jovem artista que abandona o sonho de estudar e construir carreira para se ocupar de problemas familiares. Dedicar ao pai doente e ao sobrinho, Cody, abandonado pelo pai e por uma mãe omissa e ausente. Zach retrata o jovem de classe média subempregado e oprimido por práticas sociais obscurantistas, preconceituosas. Sem saída, angustiado, perde o entusiasmo pela namorada.

De repente, eis que reencontra Shaun, um ex-conhecido que volta à cidade e, juntos, passam a surfar - nas ondas do mar e da vida. Aos poucos Shaun vai conquistando o coração de Zach, oferecendo-lhe esperança e coragem para assumir os sonhos e, sobretudo, o amor. O filme aponta a face perversa e maléfica do preconceito. Questiona as relações afetivas interrompidas por olhares maldosos. Expõe o ser humano como pouco evoluído em relação às dimensões da vida ao acreditar em um só modelo de realização amorosa. Está para além da homossexualidade. Ao ampliar o debate sobre homofobia, joga na tela questões como maternidade, paternidade, solidão, cumplicidade, virilidade.

O que é ser homem? Falo do ser que, por portar o pênis (significante fálico), dele cobramos virilidade - posturas de macho. É comum pais reclamarem do filho que reluta em assumir posturas socialmente representativas do mundo masculino - ser forte, durão, às vezes violento, mulherengo. O modelo de homem que a sociedade conservadora cultua é o poderoso, que sabe ganhar dinheiro e esbanja esperteza ao manipular esposas, filhos, amantes. A questão ultrapassa aspectos morais. O filme, em sua sutileza metaforiza “o que é ser homem”. Se homem é não ser frouxo, Zach e Shaun pertencem ao mundo dos homens. Coragem não lhes faltou ao enfrentarem preconceitos e discordâncias familiares, sociais. Ambos, sensíveis às contingências da vida, ao perceberem o desamparo de Cody, acabam por acolhê-lo - não mediram esforços em assumir as funções paternas e maternas do menino. Cody encontra em Zach e Shaun, a família que nunca teve - mesmo tendo pai e mãe vivos. O que coloca em questão o que é ser pai e ser mãe.

O filme, ao questionar a eficácia dos modelos rígidos das sociedades patriarcais e patrimoniais, calcada em casamentos heterossexuais, aponta outras dimensões da existência humana. Até que ponto não assumimos outras formas de viver e amar por falta de coragem? Quão diferente seria a vida se rompêssemos com a rigidez socialmente estabelecida de felicidade? Freud atribuiu ao desamparo do homem sua maior tragédia. Zach descobre nesse amor generoso e despreconceituoso uma perspectiva. Um amor sem as cobranças usuais das relações heterossexuais - quando a mulher entra no casamento portando um rol de exigências. Que metáfora podemos estabelecer quando um jovem troca a namorada por um namorado? Zach tinha em mente que, para ser merecedor do amor de uma mulher, era necessário ter muito que oferecê-la – sobretudo bens materiais. Sufocado e premido pela vida ordinária, vida que convencionamos julgar normal, Zach acaba optando por uma vida extraordinária. Vida que está fora da ordem vigente, para além do senso-comum.

Na verdade o que o ser humano quer é se sentir acolhido pelo outro – parceiro afetivo. Pouco importa a natureza da relação, importa sua qualidade e intensidade. Relação satisfatória é a que nos permite transitar com liberdade pelos sentimentos - surfar nas ondas do desejo sem culpa. Muitos casais se separam não por que o amor acabou, mas por não deixá-lo crescer, expandir. Muitos sonham com um encontro amoroso que os enleva proporcionando maravilhamento, esperança. Um parceiro para enfrentar as ondas da vida - nos proteger da crueldade do mundo. Shaun seduziu Zach não pela sua beleza física, mas pela sua grandeza - disponibilidade interior em acolher seu sobrinho de cinco anos. Postura que falta em muitos pais heterossexuais. A grandeza do filme está em questionar modelos petrificados de famílias e relações, denunciando crenças obscurantistas, maldosas, rancorosas. Geralmente os pais apresentam a vida aos filhos dentro de um rol de preconceitos. Assim posto, concluímos que uma das funções da hipocrisia social é, ao colocar pecado onde não existe, manter o status quo. Mesmo que isso acarrete ao outro sofrimento, desesperança.

O proibido, o que ameaça a sociedade não é a homossexualidade, o sexo extraconjugal, mas a possibilidade do sujeito circular livremente no desejo – toda coragem ofende. O verdadeiro homem (seja do sexo masculino ou feminino) sabe identificar o que lhe faz bem - como gostaria de viver, amar. E assume as escolhas com responsabilidade. O psicanalista Contardo Calligaris em entrevista recente, debate a angústia do homem contemporâneo e conclama as mulheres que lhes deem carinho, compreensão. Julgo que isso todo ser humano deseja e necessita. Contudo, o desamparo atual não é prerrogativa dos homens, tampouco não são apenas as mulheres que estão aptas a acolher o outro em sua solidão - desejo de amar e ser amado. A solidão é conseqüência da falta de coragem dos homens em enfrentar os sentimentos que os dificultam circular no desejo – culpa, compaixão, constrangimento em desagradar os outros. Calligaris reforça: “Eles se relacionam muito mal com essa vida cotidiana. Uma grande parte de sua existência é sempre vivida como se não fosse o que eles deveriam estar fazendo”.

Está na hora de os homens redefinirem seus papéis investigando padrões culturais. Muitos ainda agem premidos por modelos ultrapassados fazendo das tripas coração para não decepcionar pais, esposas, namoradas. Poucos recusam os papeis impostos pela cultura androcêntrica. O homem não veio ao mundo para atender às expectativas femininas (que geralmente são infinitas), tampouco para cumprir com o modelo falacioso de ‘verdadeiro homem’. A questão ultrapassa sexo, gênero. Pertence à humanidade que ainda acredita que felicidade é um produto empacotado, lacrado, com instruções de uso. Talvez falte ao ser humano se libertar da culpa, se imbuir de coragem ao assumir a condução de sua vida. O sujeito que pretende acertar precisa saber qual é a sua onda. Preparar-se e nela se jogar com sabedoria, segurança. Bom mesmo é surfar em águas próprias - saber enfrentar as ondas inimigas e se deliciar com as amigas.

Importa questionar a narrativa de que os homens, com a perda dos papéis tradicionais, não estão sabendo mais como ‘ser homem’, portanto, estão perdidos, angustiados. A angústia não é dos homens, mas da condição humana. Talvez o que deixa os homens perdidos, meio sem rumo, não é o fato de as mulheres assumirem hoje papéis novos, mas a dificuldade de abandonar o lugar de poder e prestígio que antes lhes eram reservados. Contudo, eles só podem se alegrar com as mudanças. Nada mais equivocado do que calcar a identidade apenas na posição social, profissional. O lugar de provedor que a sociedade conferiu ao homem é desumano, opressor. Liberdade é um bem que todos deveriam aspirar - requer coragem na recusa à vida que os outros escolheram para nós.

O preconceito é uma justificativa criada para defender interesses de uma classe ou etnia. Assim foi com o racismo, que surgiu para justificar a escravidão. Hoje, como analisar a homofobia? O que leva os políticos a não aprovarem projetos de leis que regulamentam o casamento entre gays? A manutenção de um conceito preestabelecido que convenha a um segmento da sociedade nos lembra os regimes totalitários. Melhor não seria se as mães educassem os filhos a não se submeterem, sem questionar, às imposições sócio-políticas? Sem culpa, lutariam pelas suas escolhas com responsabilidade e dignidade. O que falta, seja ao homem seja à mulher, é coragem para enfrentar preconceitos e discordâncias no momento de busca de si mesmo.

O avanço técnico deveria vir acompanhado de progresso na ética e na compreensão. Nietzsche, em sua parábola sobre a “morte de Deus”, não se reporta à necessidade de uma crença convencional em Deus. Procura nos alertar da tragédia quando uma sociedade perde seu eixo. Desorientada, mergulha numa eterna noite de barbárie. Ao reavaliarmos o certo e o errado, ao nos colocar humildemente na posição de querer saber, questionando mais que afirmando numa perspectiva de análise - vislumbramos caminhos menos injustos e dolorosos. Sonhar é doença que não tem cura. Preconceito e submissão sim. O vigor da vida cochila em nossos subterrâneos - não é coisa que emerge da noite para o dia. Ele surge, de repente, depois de atravessarmos alguns desertos. Aventurar-se no sentido mais elevado é dar ouvidos aos gritos da alma, ter coragem para se reinventar.