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terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

ÉTICA DA FAMÍLIA
Inez Lemos

Que relação que podemos estabelecer entre família, ética, tempo e modernidade? Em que ética as crianças são educadas quando a lógica é do tempo-benefício? A pressa que aflige a vida moderna contribui para a solidão e depressão, nos esvaziando de sonhos, esperança e beleza.

Tempo! Quem é esse poderoso que comanda nossas vidas? A relação com ele se modificou ao longo da história. Antes, o relógio ordenador da vida social era o da torre da Igreja, depois migrou para a torre da fábrica, agora se disseminou entre valores e prioridades que comandam nossos passos. Quem é esse que tem a chave dos minutos e que, embora não o conhecemos, o obedecemos? Um “Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos...Por seres tão inventivo e pareceres contínuo...Que sejas ainda mais vivo no som do meu estribilho” - e que mereceu de Caetano uma oração.

A família contemporânea vive imersa na temporalidade urgente dos compromissos inadiáveis, uma prioridade regulamentada por um terceiro invisível, um grande outro que sutilmente decide qual o tempo que ela deve despender com os filhos. Convencionou-se que gastar parte do dia com os filhos é “perder tempo”. Tempo que foge à esfera econômica é tempo inútil. A tecnologia criou o tempo do computador, do celular, da TV. Parafernálias com representação social de valor, seriedade - gente ocupada que pensa e age com responsabilidade.

A sociedade pós-industrial expropria o sujeito de tudo que lhe é próprio – experiência, desejo, escolha. Na condição de consumidores de imagens e modelos, acabamos confundindo o sentido da vida com os interesses do mercado, pois é o fetiche da mercadoria que atribui aos objetos poder e erotismo. Hoje, vamos ao shopping com a mesma ânsia que íamos ao cabaré. Em busca de ilusão nós nos submetemos ao poder de sedução das mercadorias. Preocupante não é quando desejamos objetos de consumo, mas quando o laço social é organizado pelo consumo.
Walter Benjamin, filósofo e crítico da modernidade, confessa: “para viver a modernidade, é preciso uma constituição heróica”. Se a modernidade exige coragem na recusa às seduções e no enfrentamento dos desafios, como nos preparar para resistir ao lixo moderno - televisivo, midiático, cibernético?

A razão moderna vincula tempo à obrigação, dinheiro. Contudo, há um tempo que nos acompanha - ora nos angustiando, ora nos alegrando. Qual existência queremos tecer ao longo da vida? Um tapete que bordamos exige tempo e entrega. Em cada ponto fincamos sonhos e esperança e tecemos a metáfora da vida - quando viver é desfazer pontos, desatar nós. Esse tempo nós podemos e devemos comandar, pois se foge ao nosso controle e é dirigido por um terceiro alheio ao nosso desejo, é devastação na alma.

A família moderna vive oprimida entre o desejo e os comandos do mundo do trabalho, da aparência e da ostentação. Se ceder em seu desejo, sente-se culpada por estar em desacordo com o que a sociedade estabeleceu como bem. Como apossar do tempo como algo próprio, decidindo quanto devemos despender com filhos, amores, livros e amigos? Como enfrentar esse déspota que nos tortura exigindo que façamos algo que detestamos ou em que não acreditamos? É preciso coragem moral para discordar das convicções estabilizadoras dos laços sociais. A tragédia do homem moderno é conciliar desejo, autonomia e liberdade. Conquistar uma temporalidade própria sem ser derrotado pela culpa - transcender padrões e instituir outra lógica temporal.
Vivemos premidos por uma culpa neurótica que nos impede de usar o tempo como desejamos. Orientar-nos pelo que definimos como bem exige longa caminhada. Seguir pegadas alheias é mais fácil que inaugurar trajeto próprio. Muitas vezes criamos meios de fugir dos fantasmas que nos atormentam. Sem tempo justificamos tudo. Fugimos para não nos envolver com os demônios que urram, para não decifrar enigmas que nos cutucam. Corremos das oportunidades de nos questionar, nos investigar. Fugimos dos objetos perdidos, das marcas mnêmicas que nos afetaram. É confortante não ter que construir um sentido próprio para a existência. Se fomos programados para desejar o que não desejamos, pra comprar o que não necessitamos e para viver como não escolhemos, como garantir que gastaremos o tempo executando realmente o que acreditamos?

A dor de se saber só, de apalpar a precariedade e os limites da condição humana. Ao enfrentarmos os desafios que o mundo nos impõe, é natural ansiarmos por rotas de fuga. O tempo ocupado não pensa no futuro incerto, na velhice solitária. O tempo alienado não nos atormenta com questões íntimas. Indigentes de sentimentos, mendigos de nós mesmos, como ter tudo não nos tendo? Eis o paradoxo do mundo moderno: ao mesmo tempo em que ele controla tudo, não nos quer decifrando nossos incômodos, angústias. Quando o encontro entre as pulsões eróticas e o objeto que orienta as buscas afetivas fracassa, o sujeito vaga desvitalizado, deserotizado. Dos amores que orienta o filho, amores edípicos, restam apenas traços desbotados e imagens esmaecidas.

O indivíduo moderno vive a individualidade como metáfora de progresso e avanço. Mergulha numa pletora de tarefas e prescinde do outro. Com agenda carregada não se deixa afetar pelos apelos do coração - filhos, família, amor. O indivíduo bem sucedido que a atualidade cultua não tem tempo para coisas miúdas, desconcertos internos. Sentimentos oscilam e contradizem a lógica de perfeição. Sem tempo para os chamados íntimos, a vida fica chata. Como superar o amor perdido? O tempo de luto implica a reconstrução de um novo ritmo - agora sem o objeto amado. Necessitamos, diante de uma perda afetiva, de tempo para nos reorganizar psiquicamente. Há o tempo do choro, da tristeza. Virou moda querer sanar as perdas somente com remédios, cobrando pressa no trato da dor. Hoje, é proibido curtir o que antes chamávamos de fossa - temos logo que partir para outra.

Choro adiado, tristeza tamponada. Sentimento sufocado produz ressentimento. Adiar raiva e agressividade faz mal. A paz sonhada não chega meio à fuga aos incômodos e desconfortos. Não podemos passar a vida apenas fotografando a felicidade, os momentos de alegria. O prazer de viver deve atravessar as entranhas e se instalar no cotidiano. Ao captarmos a alegria apenas por flashes, nos posicionamos como demissionários de nossa própria causa. O afã em registrar fragmentos que testemunham o bem viver deflagra nossa miséria existencial, nossa mendicância afetiva. A vida que queremos agarrar se esconde nas frestas da intimidade.

Renascer, rever, vivenciar, saborear. Sabor e sabedoria andam juntos, diz do desejo de querer saber mais de si. Segurança interna advém de saber fazer, saber sofrer, saber esperar. O renascimento de sentimentos novos exige apaziguamento na alma. Felicidade combina com morosidade.

O belo tem o estatuto de algo perdido e que escapa à lógica do tempo mercadoria. Em O tempo e o cão, Maria Rita Kehl busca em Baudelaire elementos que confirmam a conexão entre modernidade e depressão: “A modernidade se apresenta a Baudelaire como um tempo disforme, em função da velocidade com que supera a si mesma e a tudo que a antecedeu a fim de se perpetuar”. Obsolescência das mercadorias, desvalorização da experiência e memória, cultura do efêmero. Tudo provoca antecipação do futuro e banalização do passado e do presente.
O tempo homogêneo que todos usam de forma igual se apresenta num eterno presente, confundindo passado com futuro, como ilustrou R, jovem em análise: “Até há pouco tempo viver para mim era tudo igual, não tinha passado nem futuro, era só presente”. O que marca a duração é o tempo afetivo - as intermitências do coração que nos surpreendem e embelezam. O que executamos sem sentir é outra coisa.

Baudelaire faz uma relação entre melancolia e estética. E Maria Rita Kehl completa: “a beleza das velhas mulheres, das velhas coisas, das coisas perdidas, associa-se nessa passagem não apenas aos valores morais que elas preservam, mas à dor que elas evocam”.
Na ditadura militar era proibido contrapor o autoritarismo. Muitos viviam na clandestinidade. Hoje, proibido é não seguir tendências, modismos. Muitos se envergonham por não aderir à permissividade ou não exibir uma bela plástica. São os clandestinos do desejo. Aos pais cabe decidir uma ética e estética para os filhos, ensinar o que é belo e relevante. A humanidade sem rosto e sem vigilância ética convida à desordem, à anomia.

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