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quinta-feira, 14 de julho de 2016

RIVALIDADE FEMININA

Inez Lemos1



 O mundo todo já escreveu e cantou sobre a especificidade da sexualidade feminina e como ela repercute no dia a dia das mulheres, promovendo rivalidades, olhares tortos, mal-estares. A psicanálise entrou no debate. Freud contribuiu quando se debruçou sobre esse continente negro e deduziu que, por não portar o significante fálico, a mulher se recente da falta e internaliza o lugar de inferioridade. O pênis é apenas o representante do falo, o que não significa que os homens, por portá-lo, ocupem o lugar do poderoso. Contudo, grande parte do mundo masculino assimilou que, por possuir a vara da virilidade, merece prevalência, afinal, foi eleito por Deus. E, por trazerem o significante do poder, pertencem ao gênero merecedor de privilégios e regalias. O machismo provoca o preconceito contra a mulher. É quando a cultura reforça que o homem vale mais que a mulher, insistindo em posturas e práticas sociais, que potencializam a desqualificação do feminino e a valorização do masculino. 

A maioria das mulheres é vítima dessa praga que infesta o mundo garantindo aos homens direitos absurdos que revoltam e geram violência, injustiça e crime. Essa historia começa quando o bebê nasce. Se for menino o tratamento será um, se for menina, outro. As mães dedicam olhares e cuidados diferenciados - ao filho, a rua, os amigos de bola, menos deveres e mais direitos. Às filhas, a corda justa - o espaço privado. A casa é o palco das brincadeiras de bonecas e casinhas. Assim ela cresce e compara - o irmão pode mais; de pequeno já ganha foro privilegiado. E ela, para conquistar um lugar melhor na família e na sociedade, tem que se desdobrar. As mães, ao absorverem a cultura machista, reforçam nos filhos o lugar de superioridade, e nas filhas, de inferioridade. 

Se o corpo da mulher é marcado pela ausência, é de se esperar que essa insignia irá acompanhá-la pela vida afora. Ele tem, eu não tenho. Ele já nasceu com tudo, eu preciso conquistar. Assim cresce a menina, marcada pela falta, se sentindo inferior, insegura e se ressentindo do lugar de menos valia que o mundo lhe reservou. Cenário propício para a rivalidade feminina, uma vez que somente quem não possui é que precisa lutar para adquirir. E quando se depara com uma outra que possa lhe parecer poderosa e provocar ciúmes, estabelece-se a disputa. Quem é essa que soube melhor que eu conquistar o falo? 

“O que ela tem que eu não tenho”? “O que quer uma mulher”? “Uma mulher se veste para uma outra mulher”. “A mulher não existe”. Todas as frases se referem a aspectos da sexualidade feminina. E foram citadas por Freud e Lacan que, em seus estudos, tentaram explicar esse continente obscuro, complexo e movediço. Nesse breve ensaio, tento esclarecer às amigas e 1 Psicanalista. Email:inezlemoss@gmail.com mulheres por que, apesar de todo avanço da humanidade, ainda somos vítimas das maledicências femininas. Por que somos alvo de comentários ferinos de irmãs, cunhadas, sogras, enteadas e colegas de trabalho? Por que as mulheres odeiam tanto as mulheres? Por que os homens se sentem no direito de agredi-las, violentá-las ou estuprá-las? Se a questão não é objetiva, só pode ser subjetiva.

 O senso comum despreza e subestima a dimensão do simbólico. O corpo incompleto da mulher, quando comparado ao homem, deixa marcas no inconsciente feminino que dificilmente será desvencilhado, sem um tratamento analítico. A mitologia elegeu o macho e seu órgão genital como símbolo de virilidade, poder, competência e inteligência. A cultura é construída por mitos, que por sua vez, formulam os discursos que permeiam na sociedade. O machismo é a narrativa que apregoa a supremacia do macho sobre a fêmea. A prática social reforça a cultura e vice-versa. E as sociedades de mercado, pautadas pelo consumismo, geralmente reforçam posturas conservadoras. O individualismo burguês cresceu apregoando a monogamia, o poder do homem sobre a mulher, e a exploração do capital sobre o trabalho. A grande maioria é individualista, machista e patrimonialista. 

Assim sendo, se as mulheres não procurarem um divã para nele se livrarem do lixo simbólico que as marcaram, se elas não destilarem o ressentimento no qual estão mergulhadas, dificilmente vão se livrar das insatisfações e rivalidades femininas. A mulher precisa fazer as pazes com a sua falta, com o buraco que a move. Enquanto ela circular revoltada com a sua incompletude, angustiada com o lugar de gata borralheira que contaminou seu inconsciente, representará perigo a uma outra mulher. Sempre iremos destilar o ódio dessa herança maldita a uma outra esburacada. Quem é essa que me ameaça? O que ela tem que eu não tenho? Já dizia o dito popular: “Quem desdenha quer comprar.” Ou seja, só irá nos incomodar quem nos é ameaça. Será por que Marina odiava Dilma? Ou a maioria dos políticos, por que não a suportaram no comando do país? 

Portanto, mulheres, mesmo que uma outra esburacada se diz sua amiga, mesmo que ela finja que não se incomoda com o tipo diferente de vida que você escolheu viver, e que por acaso é mais interessante e emocionante que o dela, aguarde, pois um olhar de desprezo poderá lhe ser direcionado. Quando uma mulher, em suas fantasias, julgar que você desfruta da vida mais que ela, é provável que, mesmo sem saber, você está alimentando a competição – o gozo da histérica. Aquela que ainda não conquistou o falo e ainda se recente de sua ausência em seu corpo. O que irá colocá-la na posição de vítima do ciúme maldito que a fantasia de faltosa lhe provoca. 

Ressentidas, ciumentas, esburacadas e incompletas, por favor, procurem um bom divã e operem a travessia, se livrem dos fantasmas edípicos, façam as pazes com os atavismos que nos tentaram impor. Livremos da falácia da supremacia do masculino que insiste em desqualificar o feminino. Enquanto os homens vivem a fantasia de ter o falo, confundindo o pênis com o significante do desejo e do poder, nós, mulheres, crescemos sabendo que não o temos. Todavia, por não o tê-lo, nos resta lutar para conquistá-lo. E quando o conquistamos, nos tornamos alvo de olhares maldosos e comentários perversos. Desprezadas pela outra que se fixou no gozo, petrificouse no ressentimento e se paralisou na vingança. O importante é saber nomear todos esses sinais, é tentar evitar brigas, barracos e inimizades. O melhor é nos prevenir da rivalidade feminina.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

NISE – LOUCURA QUE SE TRANSFORMA EM ARTE


INEZ LEMOS[1]

            O filme, Nise – o coração da loucura, trata do trabalho que a psiquiatra Nise da Silveira desenvolveu no hospital - o manicômio Engenho de dentro, no Rio de Janeiro, nos anos de 1940. Nise, ao chegar no hospital, provoca um conflito - sua postura, seu olhar para a loucura entra em desacordo com a psiquiatria tradicional que ali se praticava. Por trás das grades e cadeados, se escondiam sonhos, talentos, sentimentos. Onde só se via loucura descabida, atos insanos, passou-se a desvendar seres carentes e sensíveis. Onde havia gente se lambuzando em excrementos e urina, descobre-se ternura e desejo de ser tratado como humano. Assim Nise inicia a transformação do hospício em ateliê de arte.
            Tratava-se o doente mental como objeto - um toco que se chuta, ou que se domina com choques, ou que se amansa com lobotomia. Deixar o ser humano se rastejar como rato, mal trapilho e sem banho, é covardia moral. É não respeitar a condição humana, é desapropriar o sujeito de sua aventura existencial, transformando-o em resto, sucata que a sociedade funcional encosta, lixo improdutivo. Bastou um olhar carinhoso sobre aqueles andarilhos desamparados para tudo tomar outro rumo. O cenário fétido e mortífero deu lugar a um galpão de gente pintando, brincando e se descobrindo. Os internos, por meio da coordenação de Nise, se deixaram levar pelo inconsciente. E começaram a derramar sobre telas os traumas recalcados - sonhos traídos, destinos ingratos, sortes roubadas.
            Nise chegou ao hospital e a porta estava trancada. Bateu e esperou, nada de abrir. Depois de muito tempo aparece alguém para recebê-la. É sempre assim, quando surge um conhecimento ou postura inovadora que rompa com a mesmice, quando um olhar revolucionário chega para desestabilizar as práticas equivocadas, as portas se trancam. Nise metaforiza o amor que denuncia a violência no tratamento psiquiátrico. Questiona o choque elétrico (terapia eletroconvulsiva) e rejeita a lobotomia. Recusa a agressão e introduz o carinho, a ternura. Prioriza o corpo erótico e despreza o corpo biológico. Eros, deus do amor que simboliza pulsão de vida, pulsão que produz forças ao trabalhar, amar ou chorar - de emoção, dor ou paixão. 
            O filme deve ser divulgado, pois a onda conservadora, essa nuvem obscurantista que se abate sobre o Brasil nesse momento anseia pelo retorno dos manicômios. A luta contra os empresários da saúde mental não pode parar. Hoje o saber/poder confina o sujeito em casa, medicalizando sem rigor, patologizando sintomas corriqueiros. A geração tarja preta banaliza o sofrimento. Do rivotril à ritalina, o ditame é portar transtornos. Criança ou adulto, o pathos está na moda. Poucos se interessam em investigar, decifrar o sofrimento psíquico. O divã está em baixa.



[1]Psicanalista. Email: inezlemoss@gmail.com

terça-feira, 5 de abril de 2016

ÉTICA, RESSENTIMENTO E FUNÇÃO PATERNA


Inez Lemos[1]

            Ao debater a tendência do brasileiro em querer levar vantagem em tudo, ser condescendente com atos antiéticos como: jogar lixo na rua, sonegar impostos, parar em filha dupla, destruir monumentos históricos, lembro que o descobrimento do Brasil fez parte do projeto de modernidade. No século 15, os europeus estavam à busca de riquezas e preciosidades, do luxo e do supérfluo. Contudo, somos filhos de uma relação de interesses (o português engravidava a índia para se aproximar dos que aqui viviam e detinham informações). Se moderno é substituir o ser pelo ter, cumprimos a profecia mercantilista da acumulação primitiva do capital. O luxo, o supérfluo, cada vez mais integram o cotidiano do homem moderno. Ser rico é poder exibir preciosidades. O que move a economia do mundo é o desejo insatisfeito. A formação do capitalismo revela em sua estrutura uma eterna insatisfação. A ambição que lançou Ulisses ao mar, Colombo à América, era diferente da que encontramos na farra dos políticos com o dinheiro público. Descobrir, querer construir um novo mundo é diferente de apropriar, dominar para explorar. Será sempre o Brasil terra de ninguém, onde leis como a de fixa limpa, jamais será cumprida? Seria o Brasil um convite à corrupção?
            A sociedade brasileira guarda em sua estrutura uma carga de ressentimento. Cada sociedade produz seus sintomas, e os nossos são estes: somos uma nação que se comporta como filho rejeitado, abandonado; o sentimento de inferioridade do brasileiro é traço relevante de nossa história. A corrupção, que no Brasil era vista como algo natural dos cargos de poder, como um direito dos que dela se beneficiam, só agora começa a ser investigada e punida, e ainda de forma seletiva. A política é o palco privilegiado da corrupção - e nossa história revela um passado coronelista, patrimonial, no qual os donos do poder sempre se utilizaram do espaço público como se fosse privado. Todo sintoma aponta para uma tentativa frustrada de cura, pois, embora denuncie o que não vai bem, ele revela um gozo, o que explica a compulsão à repetição.
            Interessa debater a falta de rigor do brasileiro com a coisa pública a partir da interface entre sociologia e psicanálise. Ao analisar a tendência à corrupção do brasileiro, penso na palavra ressentimento. Res-sentir - sentir duas vezes, não perdoar, guardar mágoas e alimentar o desejo de vingança, adiar conflitos.  Ressentimento não é um sentimento edificante, que leva o sujeito a produzir, crescer - pelo contrário, ele fixa o sujeito na neurose. O ressentimento do brasileiro - tema que Maria Rita Kehl, em seu livro, Ressentimento, aborda com propriedade - explica por que o Brasil é um país que goza da condição de nação explorada, ludibriada, trapaceada. Como se a forma de resolvermos isso é tentar descontar no erário, apresentar a conta para o Estado pagar na esperança de livrarmos do sentimento de injustiçados. O contato com a mídia que expõe um cotidiano promíscuo e corrupto, políticos, funcionários públicos e cidadãos, todos envolvidos em atos ilícitos, provoca na cultura brasileira desejo de desforra, de querer participar da festa. É a revolta do filho excluído, rejeitado. A corrupção metaforiza a atuação do filho ressentido com o pai perverso, que o lesa - passando-se ao ato, em vez de contestar e cobrar seus direitos.
            O psicanalista Contardo Calligaris, em Hello Brasil, ressalta a falta de um interdito paterno capaz de regulamentar o apetite pelo gozo e organizar um quadro social que outorgue a cidadania. O romance familiar brasileiro, nossa mitologia, produziu a fantasia do suborno e da usurpação. Revisitando as determinações histórico-sociais dos processos de subjetivação, deparamos com o descaso pela res-pública (coisa pública). Nosso processo civilizatório sofreu um deslocamento. O ethos que nos funda é o do prazer e não o da felicidade. Todo brasileiro sonha com o paraíso. O Brasil é imagem idílica. Nossa frivolidade revela a ineficácia de nossa interdição paterna. A volúpia e a sedução que o corpo exerce em nossa sociedade condenam nossa filiação. Somos um povo submetido ao imperativo do gozo. Somos os filhos bastardos do encontro entre o colonizador interesseiro e a índia exuberante. Somos filhos de um amor mentiroso, falacioso, pérfido. Nossa sedução é nossa traição. Atuamos como a filha delinqüente que recusa a lei e adora se prostituir. A promiscuidade atravessa nossa história e nos joga na sarjeta dos perdidos e vagabundos. A recusa de sair da senzala, a dificuldade em dizer não aos mandos e desmandos do Senhor, a submissão aos interesses estrangeiros nos condenam ao lugar de gozo – vida o caso Petrobrás, interesses em vende-la a preço de banana, como aconteceu com a Vale, alimenta a crise política que vivemos.
 Somos o sonho alheio do outro (o europeu), que procurava o paraíso. Lugar do permissivo. Até quando vamos repetir o pai abandônico, ganancioso e contraventor? A permissividade é o nosso sintoma. Somos volúveis, frívolos, fúteis e mascarados. Adoramos bugigangas! Somos carnaval, paetês e plumas. Aqui vale é a carne (carnevale). Vendemo-nos por espelhos e brilhos. Repetimos o destino colonial - permitimos que o estrangeiro entre e explore o melhor, seja ouro ou mulher.
            A crise atual que vivemos expõe nosso lado perverso, o recrudescimento do racismo, homofobia, preconceito de classe. Querem acabar com a consciência social e o ideal humanista? Querem o fascismo excluindo os menos favorecidos, os negros e deficientes? Viver é enfrentar contradições. Saber lidar com os paradoxos humanos. Ou será este um país que não quer dar certo? Será que todo político só quer o poder pelo poder? O niilismo, para o qual qualquer coisa é a mesma coisa, é lugar de preguiçosos. Prefiro acreditar que, embora exista uma disposição humana para a perversão, existem os que a recusam. Dominar traços maledicentes faz parte da vida. Contudo, ainda sonho com um Brasil analisado. E tenho esperanças de ver os brasileiros no divã, distante das terapias místicas. Sonho com uma sociedade política não corrupta e implicada na ética cidadã.
            O problema do Brasil é psíquico, não econômico. Vivemos sob a pulsão de morte. Antes de levantarmos a bandeira da moralização, devemos-nos perguntar: será que o Brasil quer mesmo recusar sua origem de cabaré, onde todos entram e gozam? Por que até hoje recusamos o público em favor do privado, a honestidade em favor do luxo, a memória em favor do efêmero? A corrupção brasileira é uma escolha? Faz parte de nossa identidade? Será que gostamos de viver em um país corrupto? Ou o brasileiro não quer se implicar em um outro ideal de Nação? O que queres, Brasil? Será que sofremos de um masoquismo moral? A condição de sofredor, de ressentido revela erotização. E toda neurose, todo lugar de gozo, responde por uma filiação. Ao agirmos como perversos e sem culpa, denunciamos uma função paterna inconsistente, incapaz de nos inserir na lei. Por tudo isso nos é difícil sustentar um outro lugar, uma outra filiação.
            Falta-nos reinventar um projeto de país. Qual a moral brasileira? Ao Brasil, faltou uma fundação bem-sucedida que instituísse uma ordem fálica capaz de sustentar um significante nacional. Somos ausência dos Nomes-do-Pai. Faltou-nos o significante paterno, aquele que opera como referência simbólica na estrutura do sujeito. Como pode o brasileiro obedecer às leis, se ele é a falta da lei? Quando a filiação fracassa, a contravenção e o crime se instauram como arremedo da função paterna. Colonização e criminalidade, corrupção e gozo, exploração e ressentimento. Nossa história e seus significantes nos condenam. Nosso inconsciente, humilhado e envergonhado, fixou-se no fracasso.  
    Somos promíscuos por vingança? Vingança contra a exploração e a desigualdade social? A questão não está na desigualdade em si, mas na forma como nos relacionamos com o patrimônio. O sentimento de inferioridade está no inconsciente do sujeito e não em sua condição econômica. Pobreza e riqueza podem conviver muito bem, desde que não gerem competição. A comparação leva à inveja, ao ressentimento, ao “eu também quero”! Será que somos pobres porque fomos explorados, ou usamos da condição de explorados para eternizar a posição de vitimizados, eternos desavergonhados? O patológico é, ao cutucar a ferida narcísica, deliciar-se com o machucado. O Brasil é filho rejeitado, que não teve mãe carinhosa que o amasse, tampouco um pai comprometido com o futuro da prole. Filho do estupro entre o português e a índia; o coronel-fazendeiro e a escrava. Filho ilegítimo de pirata e forasteiro. Talvez por isso gostemos da sensação de levar vantagens - ela nos garante um conforto psíquico e nos traz a ilusão de reparação das perdas. Nossas praias são belas. O Rio é uma das cidades mais lindas do mundo, mas avacalhamos tudo. Nossa exuberância nos condena. Somos belos e complexados. E a corrupção, seria mais um traço da cobiça de nosso pai? Não estariam os políticos apenas denunciando o fracasso de função paterna?





[1] Psicanalista, historiadora e autora do livro Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (Autêntica).

domingo, 1 de novembro de 2015

Geração Tarja Preta


Inez Lemos
            Acredito ser papel dos intelectuais anunciarem as mazelas de seu tempo, como bem fez Roseli Fishmann, professora da Universidade de São Paulo (USP), ao denunciar os perigos que a “geração Ritalina” está sujeita, tendo em vista o aumento do consumo da medicalização em substituição a processos educacionais mais plenos – uma solução aparentemente confortável para as famílias, escolas e sociedade. Todo educador deve prevenir os pais ao desconfiar que o caminho apontado como saída coloca a saúde do estudante em risco. Ao debater o uso de Ritalina e congêneres, devemos estender o olhar à cultura a que estamos submetidos, e que reforçamos quando exigimos, de forma obsessiva, que os filhos potencializem o desempenho escolar.    
Quais as conseqüências, na saúde psíquica dos filhos, de pais ansiosos por resultados, e que exigem rendimento escolar a qualquer custo? Muitas crianças estão crescendo entre adultos aflitos e estressados. Sociedade ambiciosa, competitiva, crianças inquietas, irritadas, hiperativas. Pesquisas apontam que o consumo de Ritalina e Concerta aumentou 75% entre crianças e adolescentes. O medicamento, composto de metilfenidato, tem sido indicado no tratamento de TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Crianças indisciplinadas em casa ou na escola, que manifestam algum incômodo ou desajuste, ou não correspondem às expectativas dos pais ou professores, tornam-se candidatas à “droga da obediência”. 
            A proposta é alertar pais e educadores para a necessidade de ampliar o olhar sobre o sintoma, questionando diagnósticos apressados. Antes de empurrarmos as crianças ao abismo, lembrar que os efeitos colaterais de tais medicações são tenebrosos. Qual o futuro de uma criança que, desde cedo, é submetida a drogas tarja preta que atuam no sistema nervoso central, gerando dependência física e psíquica?
            Vivemos num mundo marcado pela pressa e pelo barulho. Muitas famílias adoram levar os filhos para almoçarem, aos domingos, nas praças de alimentação dos shoppings - lugar pouco ameno e tranquilo. Muitas casas acordam com a TV ligada em alto volume. Poucos zelam pelo silêncio - cuidado em proporcionar às crianças clima sereno, propício aos estudos e à reflexão. Geralmente, não gostamos de parar o que estamos fazendo para ouvir o filho, acolhê-lo. Infância é lugar desamparado e povoado de fantasmas. Contudo, o que essas crianças estão querendo dizer com as inquietações? Hiperatividade? Que barulho é esse?
            Muitas vezes, a criança chega à escola atravessada por conflitos, angústias, pressões. Entram na vida das cobranças despreparadas, desavisadas. São empurradas, sem defesas, à lógica do custo/benefício. Logo soltam o grito de socorro: “Se com vocês o que interessa é obedecer sem questionar, cabe a nós, descontentes, manifestarmos o protesto - seja pela desobediência ou pela inquietação, importa avisar que assim não rola”. Qual a forma exata que uma criança, insatisfeita e incomodada com a sua vida, deve se comportar? Onde que elas estão aprendendo a serem ansiosas e estressadas? A quem interessa a homogeneização, o silenciamento dos incômodos? Será que a mordaça, que antes era imposta pelos governos autoritários, deslocou-se para os lares e escolas?
            Além das controvérsias sobre a medicalização, muitos especialistas questionam a veracidade dos diagnósticos, denunciando a banalização com que são realizados. Será que estamos sofrendo os efeitos de um saber científico que, motivado por interesses econômicos, conspira contra a saúde da humanidade? Uma rede de serviços, orquestrada por um conjunto de iniciativas, apostam, cada vez mais, na produção de diagnósticos que, outrora, eram desconhecidos. Panicados e transtornados, devemos todos exibir a carterinha, a senha de dependentes de drogas lícitas - candidatos a um futuro morto.
            Domar a lucidez em troca de uma falsa felicidade, triunfo diabólico dos psicofármacos. Um elogio à loucura, um retorno à nau dos loucos, pintada por Bosch, ao ilustrar os desajustados encarcerados em navios. Recurso medieval no tratamento dos que extrapolavam, fugiam às regras. Tratar todos sob um mesmo diagnóstico, uma mesma química, sem dar ouvidos à “locura” que cada um de nós carrega, é no mínimo perverso.
Quem nos diferencia, nos singulariza, é o sintoma. Ele diz do sujeito - seus anseios, fantasias, frustrações. Sinal, alerta que o corpo emite tentando dizer daquilo que não vai bem. Ele é salvação quando enfrentado com sabedoria e investigadas as razões - diferente de tamponá-lo com medicamentos. “A loucura não está mais a espreita do homem pelos quatro cantos do mundo. Ela se insinua nele, ou melhor, é ela um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo”. Assim, Foucault, em História da loucura, rompe o mistério, o obscurantismo que rondava a loucura, tratando-a como manifestação subjetiva. O importante é que investiguemos as doenças e suas metáforas, o que elas representam no mundo atual.
            O verdadeiro espetáculo advém dos delírios, quando deitamos e deixamos o pensamento voar, fantasiar. O renascimento rompe com as leis, os dogmas irracionais do teocentrismo. Hoje, contudo, quando o homem é tratado como coisa, não estão nos garantindo grandes vantagens. O poder de manipulação se apresenta em nova roupagem, nova nosografia.  O mal não é o fracasso da criança diante do que se espera dela, mas impedir que ela participe do tratamento, entenda o processo, apreenda as fases da vida. Tratar – falar, desvelar a verdade sobre si mesmo. O saber científico produz discursos com efeito de verdade, drogas com promessas de cura. Delegamos à medicina a saúde das crianças - a ela cabe normatizar nossas vidas. Estamos governando os afetos e as emoções como se fossem um fígado, um rim.  O olhar técnico impõe sua lógica.  Desterritorializados dos sentimentos, ingressamos numa existência artificial.  
            Será que existe uma ordem maldita na qual devemos nos espelhar ao educar os filhos? Ao incorporar o discurso médico sem questioná-lo, validamos as práticas  irresponsáveis do mercado. Zelar pela saúde dos filhos é trabalhoso - demanda dedicação, paciência e esforço. É estender o olhar sobre a família e a sociedade. Desresponsabilizar a cultura - pais, escola, práticas sociais, é, no mínimo, leviandade. Onde há grito e sofrimento, devem-se levar atenção e cuidado. Educar exige implicação na dor do outro, senão transformaremos sintomas em transtornos, doenças crônicas.
            Interessa chamar a atenção dos pais e educadores para o fenômeno. Propor que, antes de optar pela medicalização, que esgotem outros caminhos. Oferecer às crianças oportunidades, espaços onde possam entrar em contato consigo mesmas. Apostar nas múltiplas facetas do ser humano – carregamos uma multidão de interesses e habilidades a serem exploradas. No lugar de posturas desumanas, vivências intensas, consistentes e que honram a aventura humana. O contato com as entranhas, com o âmago, propicia êxtase. Vontade de gostar da vida. Ao acariciar o temor que espreita a infância, aplacamos a insegurança e promovemos apaziguamento. Interpretar os berros com ternura silencia a alma inquieta. Convoca as divindades necessárias, diante do desafio de educar uma criança. Já o barulho promove estresse, inquietação, agressão.
            Estamos nos pautando pelo discurso de uma ciência erigida na rentabilidade e que reduz o homem num ser biológico. Fugimos do mal-estar, optamos por tratamentos em que não somos convocados, não participamos do processo de cura. Transferimos aos filhos a mesma postura irresponsável diante das manifestações de sofrimento. Devemos refazer o olhar, inundá-lo de poesia, reformulando posturas e expectativas. Dar tempo  às demandas internas. Vida louca, chata, sem sentido. Crianças aborrecidas, rebeldes. Pressa, pressão. O mundo moderno desabou sobre nós murchando o sonho de vida feliz, enfraquecendo a autoridade dos pais e ampliando os focos de violência e epidemias.
Com a sacralização das especialidades, perdemos o elo da totalidade, o gancho com o estranho mundo dos sentimentos. Não há sintoma fora de contexto, pensamento isolado, escolas desconectadas da cultura. A dança é complexa e exige interação de seus pares. Pais, lembrem-se que a maior conquista do homem é cunhar sua liberdade e autonomia. Com coragem, recusar a barbárie, o olimpo dos tolos - os preguiçosos que seguem pegadas alhures, estranhas. Educar é abrir o coração ao filho, prepará-lo para o salto à cultura, à expansão do mundo. Desobstruir estradas, desmatar veredas. Esperança é crença boa, é escutar a vontade que chega de dentro - conquista necessária.                     
             




[1] Artigo publicado em18/05/2013 no caderno Pensar do EM.

sábado, 11 de julho de 2015

CRISE HÍDRICA E NARCISISMO

Inez Lemos

         A lógica em que o uso da água foi inserida em nossa cultura é a lógica da mercadorização, do consumo exacerbado e do lucro. Há tempos a água deixou de ser  recurso natural, um bem coletivo, para se transformar em mercadoria a ser vendida. No imaginário empresarial, é um produto a ser negociado como um objeto de consumo qualquer. O sucesso do capitalismo depende do quanto de fetiche e de ilusão consegue-se criar em torno de uma mercadoria. É quando a água abandona o valor de uso e incorpora o valor de troca. Ela circula na perspectiva da acumulação, o mundo dos negócios a utiliza para alavancar investimentos. É peça chave nas empresas, dela depende o Capital, os meios de produção.
         A crise hídrica nos impõe um paradoxo: como conciliar conceitos e práticas sociais petrificados no discurso da rentabilidade e da ostentação, em que  competição, cliente preferencial e patrimônio confrontam com o discurso da ética e da necessidade de economizar água? De repente, inicia-se o processo de deslocamento de posição: a água não deve mais ser vista como uma mercadoria rentável, seu uso deve ser racionado. O discurso agora é o da consciência social e da cidadania, pois se trata de um bem natural, de uso coletivo. Se educamos as crianças no excesso e na lógica do desperdício, como enfrentar tal desafio? Na TV, logo após as propagandas de sapatos e cosméticos, temos os órgãos responsáveis pela captação e distribuição da água solicitando que a população economize, poupe, não desperdice tão precioso recurso natural.
         Quando convocamos a população a prestar atenção em seus hábitos, a  investigar se eles estão adequados ao conceito de cidadania e ética, supomos que ela esteja sensibilizada para a questão. Mas isso não ocorre, pois não educamos as crianças em valores envolvendo significantes que instituem a prática de poupar, implicar, cuidar, prevenir, respeitar. Cuidar da água é prevenir, contrapondo ao descaso com a natureza, rios, mananciais e florestas. Muitos nascem e crescem entre asfalto, condomínios e jardins artificiais, convivem com o arremedo da natureza e não percebem o quanto estão distantes da origem das coisas. Alienados do processo de produção das mercadorias, julgam normal usar e abusar, uma vez que desconhecem o que diferencia leite de suco, água de coca-cola, frango de salsicha.
       Para que possamos aderir aos apelos de usar água de forma racional,   deveríamos ser sensibilizados para tal, pois racionar implica sacrifício, mudança de hábitos, abandonar o conforto e abraçar uma causa desconfortável, que pode gerar mal-estar. A subjetividade contemporânea não prevê felicidade na lógica da economia. O brasileiro cresceu sob a cultura do desperdício, poupar não está em nossa agenda. Gostamos do excesso - e racionalizar água implica banhos rápidos, além de outras práticas que garantem menor consumo. Para tanto, é necessária a intervenção no corpo desejante, pois ações governamentais não podem ficar à mercê da boa vontade da população.
        Em Considerações atuais sobre a guerra e sobre a morte, Freud desconstrói a ideia de progresso e registra a descrença no ser humano em questões coletivas, questões que envolvem o bem social. Nesse momento, a esperança iluminista se desfaz: igualdade, liberdade e fraternidade. Diante da devastação provocada pela guerra e da banalização da morte, evidenciou-se o fracasso da razão universal, constatando-se que o exercício do mal estaria no centro da razão civilizada. Ao deparar com a presença da morte e do mal na orientação psíquica, Freud perde a ilusão que sustentava a dimensão simbólica da vida social. Ao constatar que a política não consegue dar conta das diferentes subjetividades, cunha a expressão “narcisismo das pequenas diferenças”. Ou seja: pouco se pode esperar de cada um quando se trata do bem-comum.
Para que o cidadão assuma as campanhas de economia de água, ele deve ser mobilizado em novas posturas, aderir a restrições e limites sem sofrer. Poucos governos trabalham com prevenção e sensibilização, inserindo desde cedo o cidadão no princípio educativo. Quando a criança é educada convivendo com a frustração, quando os pais a deixam na falta, não tentam supri-la em tudo, ela aceita melhor as interdições e renuncia às pulsões de forma mais tranqüila. Educar para a cidadania exige coragem dos pais em coibir excessos e caprichos dos filhos, conduzindo a criança a aceitar as restrições necessárias. Geralmente, nada se consegue quando a interdição ocorre sem que ela, desde pequena, tenha sido inserida na lei. É de pequeno que o corpo pulsional é contaminado pelas exigências do projeto civilizatório.
            Mal-estar, frustração e irritação são efeitos da renúncia pulsional. Há mal-estar quando temos que restringir demandas e caprichos. Quanto mais se educa o filho no excesso, permitindo e, muitas vezes, incentivando apelos descabidos, contribuí-se para que o sofrimento se instale. O mal-estar contemporâneo é gestado no excesso de permissividade. A ausência de interdição explica a dificuldade dos pais em impor leis e limites. A sociedade de consumo explora a ausência da metáfora paterna. Permitir vende mais que reprimir, o que ajuda a explicar a crise de autoridade, a crise na função paterna e materna.
           Quando o espaço privado entra em crise, o público também sofre as conseqüências. O declínio do poder paterno provoca o declínio do poder público. Quanto maior a ausência de intervenção pulsional, menor a chance do cidadão em aderir às campanhas de regulamentação e socialização do uso da água ou de outros recursos naturais. O pacto selado entre as famílias é o que garante o pacto na sociedade.
     Toda vez que surgem propostas que rompem com o imaginário social petrificado no individualismo consumista, exigindo ética no uso do espaço público, há desconforto e perda de gozo. Tudo que fere a fantasia fálica de privilegiado e poderoso, significantes sustentados na ilusão de completude, provoca uma contratransferência, pois o indivíduo estabelece uma relação fálica (de poder) com o objeto - no caso, com a água. Gastar água ao bel prazer é operar no gozo – quando o sujeito não quer saber, tampouco se implicar.
            A questão passa, então, pela necessidade de ativar no cidadão a consciência em relação ao uso racionalizado da água. Como encetá-lo em práticas educativas adversas ao mundo da ostentação e acumulação patrimonialista? Educar na ética exige que a criança seja inserida na ordem simbólica que sustenta o enunciado. O discurso que predomina na sociedade de mercado não articula significantes que sustentam a lógica do bem comum, exigindo parcimônia nos hábitos. Educamos para o lucro, opulência e fartura. É quando a criança cresce vendo os adultos usando a água sem restrições: escovando os dentes com a torneira aberta, tomando banhos prolongados ou exigindo da faxineira lavar as calçadas.     
       Toda mudança requer sacrifício, adesão a novos paradigmas. Como migrar da lógica da competição para a lógica da colaboração? Tornam-se necessárias rupturas internas, abandonar montagens perversas que debocham da metáfora paterna. Montagens cristalizadas em atos poucos transparentes e que não se ajustam às escolhas fundadas nos princípios de cidadania. Cultuar privilégios não é reivindicar ética, lisura no uso da coisa pública. Ao regular o uso da água, devemos dialogar com as subjetividades – operar com o simbólico desconstruindo a lógica objetiva, racional. Deslocar-nos da esfera do cliente para a esfera do cidadão: desviar o uso da água da lógica do mercado, em que o cliente bom é o que mais consome.
       Um novo cidadão há de surgir na defesa das causas públicas quando novas formas de subjetivação, distantes da razão cínica de sempre levar vantagem, forem contempladas. A retórica da ética e do bem comum é frágil e insuficiente diante do imperativo de gozo, quando o sujeito não quer perder nada, mudar nada, restringir nada! A forma como ele vai responder às demandas de racionalizar água dependerá de como  foi inserido na ordem simbólica que prega ética no uso da coisa pública. Como mudar uma cultura, gestar outra concepção de mundo e intervir em práticas que envolvem narcisismo, desejo e pulsões? Nunca é tarde para reiniciar posturas decentes e cobrar responsabilidade dos envolvidos na questão.      

quarta-feira, 6 de maio de 2015

EXCLUIR E PUNIR

 Inez lemos
            O filme Casa Grande, de Fellipe Barbosa, coloca em cena o debate das cotas raciais, personagem central no combate ao racismo no Brasil - enquanto o negro for excluído da sociedade, dificilmente será respeitado e acolhido. E para que a inclusão ocorra, ele deve participar das oportunidades que o país oferece. Sem educação de qualidade, sem a inserção no mercado de trabalho e, portanto, na sociedade de consumo, sempre será visto como marginal. A tríade negro, pobre e bandido ainda provoca ressonância nos remanescentes da Casa Grande, cujo imaginário confunde favela com senzala, negro com escravo e pobre com bandido. As cotas são um dos projetos polêmicos que acirram as diversas formas de leituras do tecido político, social e cultural que vivemos.
Destacamos também o que prevê a redução da maioridade penal de 18 anos para 16 anos. Interessa analisar o que subjaz ao projeto, quando esse defende interesses de segmentos sociais economicamente dominantes. Como entender famílias que se julgam do bem, honradas, concordar em encarcerar adolescentes que tem a rua como único recurso de sobrevivência, quando muitos são filhos de famílias abandônicas e desestruturadas? E, em função da falta de apoio e oportunidades, se lançam entre os desamparados e, com eles, ingressam no mundo do crime?
            O argumento de que, ao expulsar os adolescentes da rua por meio da repressão e punição, iremos reduzir a violência, é risível e despropositado. Sabemos que se repressão fosse a saída, a reincidência entre os encarcerados seria quase nula. Na defesa da exclusão da garotada que perambula pelas cidades, sem rumo e programas sociais eficazes, oculta o anseio pela sensação de proteção - fantasia de segurança. Excluir é mais fácil que educar, cuidar e prevenir.
            Cuidar de uma sociedade exige estender o olhar do início ao fim - do momento que a mãe engravida até o momento em que o indivíduo nasce, cresce e morre. Cuidar é mais promissor que abandonar – é mais barato educar bem uma criança, acompanhar sua trajetória e lhe garantir um futuro de oportunidades do que desampará-la e, depois de inserida em atos ilícitos, tentar recuperá-la. Diferente do que muitos afirmam, a maioria dos garotos de 16 anos não escolheram o crime como opção de vida -  foi a vida que, ao não lhes garantir melhores oportunidades, os jogou na contravenção. Muitos sequer foram alçados a seres humanos e conscientes de seus atos. Agem como animais, movidos por instintos e alheios aos códigos civilizatórios. Excluídos da função paterna,  operam fora da culpa. Apenas seguem os ditames do capitalismo cruel: matar para exibir o tênis de marca ou o último lançamento em smartphone.
            Na cultura da ostentação reina o narcisismo individualista e imediatista, que espetaculariza a aparência e despreza a essência. Contudo, somos responsáveis pela demanda dos garotos por objetos de consumo – estilo playboy. Quando os exemplos entre os adultos não coadunam com os discursos moralistas cristãos, respaldados na idéia do livre arbítrio, justiça e honra, fica visível o desejo insaciável em punir por punir, sem se preocupar em oferecer ao garoto chances de se recuperar. O apelo por justiça oculta vingança, maldade, preconceito e racismo. A eugenia é um projeto de limpeza, de higienização - excluir da praça os que incomodam.   
Para que o princípio de realidade sobreponha ao princípio de prazer, a criança deve ser interditada em suas pulsões perversas - limitada e contrariada em seu corpo pulsional, que berra, chora e exige o que lhe convém. Como bem nos lembrou o psicanalista Hélio Pellegrino: “O pacto edípico que garante o pacto social”.  Exigir de um adolescente renúncia pulsional, sem antes lhe oferecer um outro destino às suas pulsões, seria acreditar em autoformação, autogestão.
            Partindo do pressuposto de que ninguém se autoeduca, e que essa é função dos pais, talvez o melhor fosse criar leis que cobrem responsabilidade destes, e, em caso de descumprimento, recair sobre eles a punição devida. Quando um menor comete um crime, a Promotoria da Infância e da Juventude deve convocar os pais ou responsável e cobrar deles uma atuação mais fecunda junto ao delinqüente. Para tanto, o Brasil deve intensificar as políticas públicas de planejamento familiar que assegurem à criança um lar estruturado. Gravidez na adolescência, a metáfora da banalização da vida.
A lógica do imediatismo não inclui ações preventivas, apenas paliativos que mais machucam, punem e pouco recupera. Muitas vezes, o garoto parte para o crime como forma de reivindicar carinho e atenção. Sabemos que, ao ser privado de uma família que o acolhesse, muitos agem por revolta e vingança - cobram do mundo o que a vida lhes negou. Não devemos castigar e punir quem já é punido e castigado por sociedades excludentes, desiguais e injustas. Há de se descobrir formas mais eficientes, justas e humanas de inserir o delinqüente nos limites da lei. Não há impunidade para a criança que sofre privações afetivas e materiais, viver é a punição.  
            Para que o garoto respeite os códigos de convivência social e absolva as regras do bem viver, é preciso que, desde bebê, internalize as restrições e frustrações. A interdição no corpo pulsional provoca mal-estar, efeito da economia pulsional. Ao demandar uma sociedade menos violenta, devemos exigir propostas que visem cuidar e amparar o cidadão, oferecendo-lhe oportunidades, apontando direitos e cobrando deveres. Sem isso, ficamos apenas na retórica do dever cumprido, justificado pelo pagamento de impostos.  
            No século 19, Freud, ao intensificar seus estudos sobre a histeria, observa que onde havia um corpo urrando de dor, havia um desejo reprimido - efeito da repressão sexual da época sobre o corpo feminino. É quando a literatura começa a se abrir para o desejo sufocado, proibido e tão bem retratado em Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Nos romances, as heroínas vivenciavam relações sexuais extraconjugais, despertando o desejo entre as mulheres que, embora casadas, muitas não haviam experimentado o prazer sexual. Hoje, o sintoma social resulta do excesso de permissividade - ausência de repressão. Adolescentes que não são interditados em suas pulsões, quando deparam com a lei não a reconhece. A sociedade de consumo explora a permissividade por ela ser rentável – vende de tablets a sapato de salto para meninas.
            O declínio da metáfora paterna, quando os pais não impõem limites ao filho, culmina em jovens estúpidos. O show de violência, agressividade e desrespeito não se restringe às classes sociais. A roda que gira na senzala, gira também na Casa Grande. Um dia, as crianças de hoje serão os adultos desrespeitosos, machistas, corruptos e criminosos de amanhã. Sem consciência social, o Brasil da permissividade é um convite à ilegalidade e à corrupção. Criminalidade e função paterna - relação que inviabiliza responsabilizar apenas os garotos pela violência que aflige o país.  A criminalidade não é apenas dos adolescentes, mas de toda a sociedade. Talvez o segmento social que mais esteja interessado na redução da maioridade penal seja dos que sempre lutaram por privilégios, e não por direitos. Punir e excluir a garotada das oportunidades e dos recursos públicos fere o conceito de res-pública – coisa pública.
            O cidadão atual é um panicado, estressado. E anseia que algo aconteça e lhe devolva a tranqüilidade de outrora. Sai do trabalho e, em casa, é bombardeado pela mídia sangrenta que, por sua vez, é alimentada pela cultura do estupor, disseminando terror e pânico. É de se esperar que se anseie em retornar ao paraíso, lugar sem violência, assaltos, crimes. Longe dos conflitos sociais e das penúrias impostas pela desigualdade social, educação frágil e paternidade e maternidade irresponsável. Contudo, a sociedade atual quer abolir a violência sem enfrentar as raízes do conflito, apenas pela supressão do problema - punindo e excluindo os negativos sociais. Não há dúvida que, certamente, é sobre eles que a guilhotina recairá.  
            A subjetividade atual se caracteriza pela suspensão do pensamento, é quando o cidadão idealiza soluções fora do campo da reflexão, e, sem se implicar nas questões, se coloca passivo e alheio a tudo que o incomoda. É como se as agruras que o atingem fossem algo estranho a ele mesmo - não lhe cabe se ocupar ou tentar entender o mal que lhe acomete. Na inexistência de questionamento, o registro do pensamento fica suspenso. No jogo de omissões, implantamos o genocídio dos jovens e adolescentes, principalmente entre pobres e negros.     
                            


quarta-feira, 25 de março de 2015

PSICANÁLISE, ÉTICA E PODER

Inez Lemos

Entre as ações impossíveis de serem realizadas plenamente, Freud destacou a de governar. Embora a psicanálise não tenha formulado uma teoria da política e do poder, ela reforça que o governo não pode desconsiderar o sujeito desejante – sujeito fundado nas pulsões. Como inserir o sujeito no campo da ética, da política e do poder? Como conciliar as pulsões e a civilização? A problemática da política está em mediar o campo social, a ordem simbólica e mítica das relações, uma vez que cada cidadão chega atravessado por traços culturais, convicções e atavismos. Cada sujeito porta registros simbólicos que o singularizam. O pacto social exige a equivalência simbólica das forças  - Estado e sociedade.
             Quando os governos lançam projetos políticos que rompem com o imaginário social propondo mudanças historicamente petrificadas, sofrem forte resistência. Toda ruptura no campo psíquico provoca uma contratransferência, uma rejeição aos modelos que contrariam os códigos internalizados, seja de governos ou pessoas. Diante da proposta socialista, por exemplo, Freud, embora compartilhasse do sonho por sociedades mais justas, não acreditava na sua viabilidade, uma vez que a relação dos sujeitos com a riqueza se inscreve no circuito pulsional que regula o gozo. Perder dinheiro significa perda de gozo, e, para tanto, poucos estão preparados. A transformação do estatuto simbólico dos bens materiais implicaria em mudanças culturais e de valores, como também, na circulação do gozo.
             A instituição de uma sociedade menos desigual pressuporia a imposição de um limite ao gozo absoluto, operando como um interdito simbólico. Quando o sujeito é interditado em suas pulsões narcísicas, diante do imperativo do gozo se instala o mal-estar. Os conflitos entre interesses, muitas vezes explicados por motivos econômicos, geraram guerras e revoltas, desconstruindo o conceito de civilização universal e progresso. Contudo, a política deve transitar entre o universal (público) e o relativo (subjetivo). Daí a governabilidade ser um desafio que nunca se realiza completamente por se contrapor às demandas de gozo do sujeito. O conflito entre interesses, classes e idéias dificulta a democracia, uma vez que o narcisismo, a pulsão e o mal-estar na civilização fundam a desarmonia entre os cidadãos.  
Como entender o ódio que se disseminou na sociedade brasileira a partir da ultima eleição para presidente da República? A questão é aprofundar o olhar sobre o sintoma “Ódio ao PT” para além da realidade, extrapolando os conflitos partidários. Corrupção deve ser sempre combatida. Embora ela sempre tenha integrado o cenário político brasileiro, como explicar a onda de moralização, o furor por denúncias justo agora? O que subjaz à crise política que vivemos extrapola análises objetivas. A felicidade de uma nação não pode ser absolutizada, não é um valor universal, mas um valor relativo que remete às exigências pulsionais. Até que ponto as diferenças individuais e pulsionais inviabilizam a construção de um pacto social? Hegemonia prevê que a maioria dos participantes se una em torno de um valor universal.
Ao criticar às políticas públicas de transferência de renda, como o Bolsa Família, devemos estender o olhar às questões subjetivas – as diferenças se singularizam entre gozo e desejo. E o desejo se fixa na fantasia, que por si só tem algo de utópico. Não há nada de absoluto no campo das subjetividades, e a política administra fantasias humanas, cuja função é atuar na produção do desejo. Quando o desejo do sujeito é reconhecido, o cidadão abandona a fantasia de excluído e adquire um lugar na polis - conquista pertencimento. Conquistar identidade é conquistar poder. 
Os obsessivos por poder geralmente mantêm uma relação insana e perversa com a política. Manipulam e cometem crimes ao promover lobbies e garantir o “queijo intacto”. Brigam movidos por fantasias de riqueza, vaidades, poder. Há algo no psiquismo que dificulta avançar nas propostas de redução da pobreza. No Brasil, a retórica da democracia sempre se opôs às políticas públicas de amplo alcance social. Os projetos desenvolvimentistas ocorreram com dinheiro público em empreendimentos privados. Sempre convivemos com o Bolsa Boi, Bolsa Empresário, com o crédito ao agronegócio e às empresas. Contudo, o descontentamento com os investimentos do governo atual na área social deflagra a relação fálica de posse que o sujeito estabelece com os bens materiais. A lógica do lucro dificulta a aceitação, sem oposição, à expansão dos direitos sociais. Quando estes se estendem à maioria dos cidadãos, há perda de privilégios – a igualdade fere a fantasia fálica de acumulação.
            O gozo do sujeito contemporâneo está na ostentação da riqueza e na espetacularização da posse – imagem de rico e poderoso. O projeto de felicidade fundado na pós-modernidade e centrado na tecnologia reforça a cultura narcísica, individualista. O ideal de acumulação em que a riqueza material ganha primazia, muitas vezes não consegue produzir satisfação, uma vez que o viver em sociedade provoca interdições e renúncias pulsionais. É quando o sujeito se vê diante de propostas que contraria a ordem simbólica - orientação internalizada de ostentação.
 Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud enuncia que o homem é um animal de horda e não um animal de massa. Há algo no sujeito que o leva a rejeitar o social, a resistir aos processos de coletivização. No meio da massa, ele se entrega aos impulsos primários, abandona as interdições e, como animal feroz, defende seu naco de carne.
            Ao defender com violência o seu espaço, seu patrimônio e seu partido, o sujeito  demarca território. É o narcisismo que, ao impor singularidade, rejeita a igualdade. Freud, ao refletir sobre as guerras, cunhou a expressão “narcisismo das pequenas diferenças”. Ele explica os conflitos entre os cidadãos - fonte do ódio entre partidos, torcidas, nações. A “guerra entre partidos”, a conduta beligerante do atual Congresso Nacional expõe a obsessão pelo poder - digladiar por um lugar de destaque na arena política. A corrupção, o desejo de se locupletar de forma ilícita, se inscreve no circuito pulsional - é sintoma que escapa. Os perversos sempre rodearam o poder, lugar onde os atos espúrios são protegidos. 
            Quando governos tentam inovar com políticas sociais que rompem com o ideário da elite conservadora, que sempre determinou os investimentos públicos, há que se tentar uma intervenção e transformação no sistema de valores e na produção do desejo coletivo. Não é possível entender a resistência ao Bolsa Família - programa que não se resume a transferir renda, mas garantir educação, saúde, saneamento, eletricidade e moradia aos mais pobres -, pelo viés da razão moderna. Há algo no psiquismo que inviabiliza a construção de um modelo iluminista de cidadania, baseado no bem comum, uma vez que ele se oporia ao projeto universal de felicidade, quando as riquezas seriam mais bem distribuídas.        
            Quando a política não consegue dialogar com as diferentes subjetividades, não oferece outras formas de laço social senão as clássicas inseridas pelo mercado e poder econômico, o efeito é a evidente corrosão entre Estado e tecido social. Tudo isso aponta para uma crise estrutural de valores, provocando uma dicotomia - ruptura no ideal de nação. De um lado os defensores do status quo – riquezas e privilégios -, de outro a população, que anseia por projetos que lhes garantam qualidade de vida. Uma população mais educada, saudável e com acesso a bens e serviços é pré-requisito ao desenvolvimento mais sustentável e menos desigual. A inclusão social e produtiva dos mais pobres é benéfica para o conjunto da sociedade.
            Conclui-se que a relutância às políticas sociais, cujos impactos positivos na economia foram reconhecidos, aponta a dificuldade de se romper com a tradição simbólica que permeia as relações humanas, cristalizadas no preconceito e na resistência em conviver com a mobilidade social. Como em socializar os espaços de convivência e democratizar o acesso ao patrimônio público. Quando uma classe é ameaçada de perda de privilégios, ela sofre intervenção na relação fálica de posse, é privação do gozo. 

            O mal-estar que se instalou no país não pode ser explicado apenas pela corrupção na Petrobrás (uma vez que ela remonta a várias décadas), tampouco pela alta do dólar e da gasolina. É efeito de algo maior e que escapa às análises econômicas - diz da demanda de gozo do sujeito. Governar, educar e analisar são profissões infindáveis e incompletas.    

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

RAÍZES PSÍQUICAS E SOCIAIS DA CORRUPÇÃO

Inez Lemos [1]

            Qual a conexão que podemos estabelecer entre a família brasileira e a cultura de corrupção que se implantou no Brasil desde que a Coroa portuguesa aqui se instalou? O modelo de colonização português foi de exploração e não de povoamento, como o que ocorreu nos Estados Unidos, pelos ingleses. Explorar o máximo de riquezas de forma predatória, por meio de mão de obra africana e escrava. Desrespeitando índios, culturas, rios e florestas. Na casa-grande, vão se instalar os donos das terras, os coronéis e nas senzalas, os escravos. Assim nasce a cultura brasileira, marcada pela segregação e exclusão. A desigualdade social, que sempre fez parte do projeto civilizatório, nunca foi empecilho ou alvo de críticas pelos defensores do desenvolvimento econômico brasileiro.
            Como repensar a corrupção que sempre dominou as grandes empresas nacionais? Furnas, Petrobrás, Vale do Rio Doce (antes da privatização), sempre foram alvos de políticos e empresários ensandecidos pela cultura de propinas. Ao que hoje assistimos é parte de um modelo corrupto que aqui chegou, se expandiu e que, além de não o erradicarmos, o alimentamos. Sem repensar qual cultura que queremos educar os filhos, sem definir o modelo filosófico e político que escolhemos viver não saberemos como contribuir com a mudança de paradigma.
            Pais culpados por trabalhar em excesso e se ausentar da educação dos filhos - tensos e pressionados em atender às demandas de consumo -, acabam perdendo autoridade. Pais subservientes aos modismos, ou por comodismo, aderem às posturas antiéticas. Muitos justificam os atos insanos alegando que, se não submeterem, os filhos se sentirão excluídos. A subserviência dos pais nos remete à do país - que nasce submisso a outro com a missão de fornecer ouro, prata, terras e mulheres. E que, tardiamente, inicia os primeiros passos rumo à distribuição de renda, fator que garante a autonomia e a resistência do cidadão aos mandos e desmandos do poder econômico.             Ao se aproximar da opção ética de vida, devemos intensificar a participação social. Incentivar, entre as crianças, a convivência positiva, não predatória. Se respeitamos o espaço público, se jogamos o lixo na lixeira e não na rua, se evitamos fila dupla, reafirmamos a opção pela ética, pela não corrupção, uma vez que estamos subvertendo os impulsos perversos. Corrupção e perversão, dois conceitos que se entrelaçam. Qual a política social que defendemos? Exclusão ou inclusão? Há uma diretriz ético-política que nos obriga a repensar os rumos que traçamos para os filhos. Enriquecer a qualquer custo? Educá-los para a submissão ao mercado, ou encorajá-los nas escolhas que priorizam a realização pessoal?
            O conceito de ética coloca o outro no centro da questão. Uma escolha ética exige consciência social, propostas que implicam o outro e ultrapassam o mero prazer. O princípio é o bem comum, convivência que garante qualidade de vida à maioria. Não há desenvolvimento econômico sem preservação do espaço público. Sem os mananciais não teremos água, bem sagrado que não pode ser privatizado. A Amazônia é uma dádiva dos deuses, e, no entanto, o homem está destruindo-a. Como ensinar a reverenciar a natureza mais que shoppings, livros mais que sapatos? O respeito a si e ao outro requer alfabetização na linguagem do coração - exige que demos ouvidos aos ruídos que brotam das entranhas e das montanhas.
            Se a ordem colonial e que muitas famílias conservaram era a de acumulação a qualquer custo, manipulando e acobertando atos ilícitos, a novidade que defendemos é a resistência à cultura da omissão. Omissão e submissão rezam na mesma cartilha. É quando ao filho não foi ensinado a assumir, tampouco a se responsabilizar pelos erros.  Ou quando nos assujeitamos às manipulações de mercado, às propagandas que nos influenciam com produtos não saudáveis. Toda escolha é um ato político e exige coragem moral. Cabe aos pais e educadores formar, na criança, o olhar crítico que a defenderá do lixo televisivo e de outras promiscuidades - questionar posturas machistas e preconceituosas. Como os casos de estrupos às estudantes do curso de medicina da USP (Universidade de São Paulo) pelos colegas. A prevenção contra a violência e a corrupção nos remete à castração – como os pais interditam as pulsões perversas dos filhos.  
Como eliminar os mecanismos que viabilizam a corrupção? Como criar as condições culturais para que o desejo de ética se estabeleça? Educar para que brote nas crianças as razões que as levarão a defender a honestidade - seja por escolha ou constrangimento. O declínio da função paterna deflagra o declínio da ética quando sentimentos como constrangimento e vergonha são substituídos por arrogância e cinismo. A cultura da ostentação é uma forma velada de favorecer a corrupção, uma vez que ela prega o culto à aparência e ao espetáculo. O show narcísico dos políticos é caro e exige segurança. O culto ao poder seduz e induz à corrupção - forma tentadora de enriquecimento rápido e vultoso. O perverso gosta de se sentir protegido para agir, roubar. E a política é palco que garante prestígio, fóruns privilegiados.  
Chamar os políticos de ladrões, corruptos, sem-vergonha, é simplificar a questão. Tudo isso faz parte da sexualidade humana, são atos perversos. A perversão significa “versão em direção ao pai”: ela provoca e escarnece a lei para melhor a desfrutar. A velha política exige liderança, aquele que pode tudo - lugar do pai primevo, o que tinha todas as mulheres da horda, o único que gozava. É muito difícil ocupar o poder de forma ética, democrática, pois o poder traz em sua essência a père-version - a versão do pai, o que detem o poder! Contudo, os que não foram educados para respeitar as regras que regem o espaço público são seduzidos pelo poder. Lá eles fazem e acontecem à revelia dos poucos neuróticos que tentam manter a moral, a ética e a lei.
Famílias interessadas em contribuir com a seriedade das instituições, como na defesa e no fortalecimento da democracia, deve se ocupar com a educação sexual e psíquica dos filhos. Quanto mais exemplos dos pais no campo da cidadania e da ética, menor as chances de condutas perversas e corruptas se alastrarem. Ninguém nasce corrupto, perverso e criminoso. O cidadão se torna assim em função da educação que recebe. Não se nasce corrupto, torna-se corrupto. O Brasil sempre cultuou condutas perversas e de desrespeito à coisa pública. Atos antirrepublicanos.
O momento político que vivemos é propício na reafirmação do mundo que sonhamos, como também na qualidade do ser humano que desejamos deixar neste mundo. Ou contribuímos para a transformação ética do país, exigindo da sociedade  reflexão nos valores e posturas que alimentam o ódio à igualdade e à democracia, ou sucumbiremos à barbárie. Pais que não inserem os filhos nas leis civilizatórias acabam compactuando com a cultura da corrupção. Ao se submeterem aos caprichos e mimos dos rebentos, deixam de prepará-los para as interdições, conflitos e frustrações que a vida lhes imporá.
Jacques Rancière, em Ódio à democracia, coloca em xeque políticas liberais que, embora defendam esta forma de governo, deturpam o ideal democrático, seguindo as determinações de uma classe dominante que não aceita perder espaço entre as forças capitalistas. No Brasil pós-eleições, assistimos a uma parcela da população que foi à rua explicitar a obsessão pelo individualismo democrático. Para Rancière, esse conceito é parte do chamado ódio à democracia. Uma classe de abastados que não concorda em contribuir com políticas que visam diminuir as desigualdades sociais, tampouco perder o lugar e as condições de privilegiados. Muitos chegam a surtos e delírios e, sem nenhum pudor, lançam palavras de ordem a favor da intervenção militar. Convocam a ditadura em defesa dos abusos patrimoniais - modelo apropriado pelas oligarquias.
O ódio à expansão de oportunidades aos excluídos deve ser combatido nas salas de aulas e nas famílias. Vida feliz inclui ensino à cidadania. A democratização do Estado é antídoto à delinqüência. A desfaçatez dos políticos e o enriquecimento ilícito são um convite à corrupção. Além de injusto, gera violência e revolta. Ao defendermos direitos, promovemos autonomia e ética.
Neste Natal, recomendamos de presente aos filhos, ética. Interditar a criança em seus atos descabidos e perversos. Reprimir e frustrar é não submissão aos impulsos narcísicos. É prevenção contra a perversão, à violência e ao crime.               






[1] Artigo publicado em 20/11/14 no caderno Pensar do jornal EM. Psicanalista – email:inezlemoss@gmail.com

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

ALMAS DESERTAS

Inez Lemos[1]
  
            “A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como “um deserto de almas”. O outro concordou, sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinho no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra – talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou”.
Esse fragmento do conto Aqueles dois, de Caio Fernando Abreu, adaptado para o teatro pela Cia. Luna Lunera, espalha, de forma poética e contundente, questões de aparente mediocridade e repressão que estão na ordem do dia.
            A história se passa em uma repartição. O ambiente de trabalho é retratado como o palco das fofocas e dos olhares repressores, recheados de moralismo e hipocrisia. Dois rapazes se conhecem na empresa e logo sentem uma afinidade que os une para além da cama. O foco se amplia nos papos sobre filmes, músicas, mulheres, interesses. Discretos, selam uma amizade reforçada pela solidão – ambos viviam sós. “No deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade – de certa forma, também em nenhuma outra -, a não ser a si próprios”.
            Os papos nos almoços de domingo eram regados a boleros: El Dia Que Me Quieras, Perfídia, La Barca. O encontro dos dois metaforiza descanso na loucura - as veredas dos sertões, o oásis no deserto. A solidão é marcada pela ausência de desejo, de algo capaz de inundar a alma de alegria. Era isso que Raul representava para Saul, a possibilidade de transcender o cimento, o barulho dos ônibus, as cabeças mesquinhas da repartição. Um encontro que permitia mergulho nas entranhas. Ambos abusavam do cinema e da música para se salvar. A arte é condutora de vitalidade, além de hidratar, planta entusiasmo onde impera desalento. O conto denuncia a mediocridade que subjaz a homofobia, o preconceito. O que leva pessoas a se ocupar com a cama alheia, a se interessar em investigar se entre duas pessoas do mesmo sexo há algo além de amizade?
            “Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares...Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas”. O fato se alastrou pelos corredores. Logo, foram surpreendidos pelo chefe de seção, que lhes comunica que, em função de umas cartas anônimas denunciando “relação anormal, ostensiva e desavergonhada” entre os dois, era obrigado a demiti-los.  
            Preconceito, moralismo, fofocas, maledicência - significantes que se alastram como erva daninha nas instituições. Caio responsabiliza: infelicidade, tédio, vazio cultural, vida interior empobrecida. “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”. A alegria diante das afinidades que envolvem uma relação entre pessoas do mesmo sexo pode provocar incômodo, inveja. Contudo, presenciamos um outro fator que vem incentivando a ira aos homossexuais – o uso político da homofobia para defender interesses econômicos.         
Ao longo da história, o preconceito foi usado pelo Estado em defesa de interesses financeiros. Durante a colonização do Brasil, Portugal escravizou africanos em nome de uma suposta inferioridade do negro – homens fortes, bons para o trabalho braçal, porém incapazes para o trabalho intelectual. Hitler, ao criar o nazismo e em nome de uma eugenia, promoveu o genocídio dos judeus, uma vez que ser judeu era pertencer a uma raça impura. Sempre teremos justificativas para exercer dominação, sempre descobriremos aspectos que operam como desculpas para excluir, perseguir e exterminar uma parcela da população.
            No caso da homofobia, presenciamos uma narrativa que tenta se apoiar na religião e explorar a importância da família ‘hierárquica’ de outrora. Na verdade, as igrejas neopentecostais estão tentando criar um fator que justifique a importância de fortalecer a bancada evangélica. Destacam passagens do Antigo Testamento e proclamam que Deus não abençoou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na defesa da família abençoada por Jesus, é fundamental a inserção na política. A isca é jogada de forma truculenta - estratégias fascistas e terroristas são usadas sem pudor. As notícias são estarrecedoras.
“Vereador de Dourados, Sergio Nogueira (PSB), sugere enviar homossexuais para uma ilha por 50 anos”. Contudo, há pastores convocando a nação masculina a resistir à onda de boiolas que assola o país: “Está tendo uma deficiência nacional de homens, esta geração não produz homens, esse governo está efeminando os homens, os homens tem se vestido como gays, e para ser pai, rei, profeta, você precisa ter porte varonil, Deus fez macho e fêmea, fez o homem para ter macheza, virilidade, ser líder...o vetor que guia você não é a ciência, as artes, o cinema.... isso é coisa do diabo”.  
A família nuclear, geralmente centrada no pai provedor, autoritário e machista, não é lembrada com carinho por filhos e esposas. Muitos saudosistas lamentam a mobilidade das novas configurações familiares: monoparental, casal homossexual, entre outros. A casa se democratizou, o poder circula entre muitos. A idéia do homem como único detentor do falo não cola mais. Será que devemos ter saudade do pai coronel - patriarca que, com mão de ferro, comandava a família como comandava a propriedade rural? Desde que alguém cumpra com a função paterna e materna adequadamente, as crianças estarão salvas.
Apropriar-se da beleza poética da peça, ao denunciar aspectos do momento político que vivemos e que mais nos remetem à Idade Média, é uma forma de resistir ao medo das trevas. A ameaça chega prometendo noites escuras, uma vez que o capeta do fundamentalismo odeia poesia, cinema, teatro. Tudo que Raul e Saul amavam. Como combater o pensamento retrógrado, alienado - jogo político sujo, desavergonhado e perverso? Pastores evangélicos, em sua maioria, convencem os fiéis com táticas de guerra, pregam com gritos, chutes e palavras de ordem: ‘vamos derrotar Satanás’. Não se pregam mais solidariedade, tolerância, perdão, respeito.  
Ao tratar questões da sexualidade humana com religião, deslocamos o foco e enfraquecemos o debate. A homossexualidade é efeito dos amores edípicos, diz da forma como a criança foi marcada pelos pais – identificação maior com a mãe, negação do pai. Em meio à complexidade da questão, o sujeito orienta a sexualidade que, por sua vez, não resulta de uma escolha consciente, deliberada. É algo maior que a ele se impõe.    
Ninguém nasce racista, nazista, homofóbico, violento. Ao rechaçar o diferente, desdenhando, fofocando e humilhando-o, há esperança dele se retrair e perder a força para lutar. Raul e Saul enfrentaram o moralismo insano dos colegas com altivez. A rotina mortífera do trabalho não perdoa ninguém. E a fofoca é o raio de luz que rompe a solidão e a mesmice, movimentando o tédio. A alma empobrecida e solitária padece no deserto e convoca inveja, maledicência.
Caio denunciou o preconceito com paixão e entusiasmo, nada de jogar pedra no senso comum que perambulava pelas esquinas frias e sujas de São Paulo. A moçada da Cia. Luna Lunera entendeu o recado. Entra no palco esbanjando talento, simpatia e convicção na arte - espada ideal para combater o obscurantismo dos reacionários.
Os atores se entregam ao texto lembrando a importância do teatro como arte engajada, munição contra a crueldade do mundo. Reprimir, culpar, introjetar pecado e criar demônios - quantas não são as formas desumanas de conquistar o poder e ganhar uma eleição? Quão emocionante é ver jovens dedicando a vida ao teatro - apostar no belo é a forma ideal de denunciar a maldade humana. Pobreza que cochila nas almas desertas - mendigas de amor e poesia.                    
           
       
               



[1] Artigo publicado em 27/09/2014, no caderno Pensar do jornal E.M. Inez Lemos é psicanalista e consultora em educação. 

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

DIFERENÇAS ACIRRADAS

Inez Lemos[1]

O preconceito em relação ao pobre, gordo, feio, idoso, negro, homossexual, deficiente físico e à mulher, entre tantas outras formas de discriminação, merece debate. A exclusão é um traço da estrutura histórica que permeia as sociedades que cresceram sob a égide da acumulação de capital. Em diferentes períodos do processo histórico, a moralidade e os códigos éticos funcionaram em nome de uma razão, de uma lógica construída em nome de interesses ocultos. A maioria dos discursos morais esconde aspectos extremamente imorais. Contudo, a nossa era revive ondas de preconceito e intolerância assustadoras.
Muitos são os exemplos que apontam para o recrudescimento da violência, exemplos de intolerância que hoje se manifestam nas redes sociais. Interessa investigar a tendência em detonar as pessoas. Que ódio é esse? A intolerância que assusta é a do campo pessoal, é um ódio ao indivíduo. Qualquer atitude é uma justificativa para se jogar sobre o outro a insatisfação e a frustração. Em tempo de eleições, o debate é permeado por várias formas de preconceito. Partidos se digladiando nas redes sociais, onde o ódio é destilado numa demonstração de que, quando se trata de interesses políticos envolvidos, avançamos pouco.
Os códigos morais são inventados pelos homens, embora fundamentalistas de várias religiões se esforcem em afirmar que o discurso da intolerância resulta de decretos divinos. Hoje, o cenário político no Brasil é disputado entre pastores - muitos são os candidatos das Igrejas evangélicas. Nos anos de 1960 a 1980, uma parte do debate político, na Igreja Católica, contava com a presença das Comunidades Eclesiais de Base, que, incentivadas pela teologia da libertação, lutavam pela promoção da inclusão. Hoje, predomina uma guerra suja com a presença de pastores homofóbicos e retrógrados. O pensamento obscurantista, em nome da moral e da manutenção da família, tenta se estabelecer de forma truculenta. Trata-se de regras elaboradas em torno de interesses de um grupo que discursa em nome de Deus.
Defender uma religião ou um partido. Como diferenciar o certo do errado? Valores, interesses, posturas, crenças. Importa desvendar o que subjaz ao discurso da intolerância, ao acirramento do preconceito. Quais são as pressões, ambições e motivações que levam à defesa de um partido ou de uma crença? Geralmente, o debate sem manipulações e jogos perversos é o melhor caminho. Contudo, num país comandado, quase sempre, por um jornalismo comprometido, uma mídia tendenciosa e pouco transparente, torna-se impossível. O método da persuasão funciona quando a maioria dos cidadãos não cultiva o hábito da leitura, não pesquisa e não gosta de raciocinar a respeito de temas que envolvem a vida do cidadão. Toda eleição requer reflexão sobre propostas que atendam melhor aos interesses da maioria. Com a presença maciça da tecnologia, da internet e da televisão, as escolhas precisam ser elaboradas, debatidas, analisadas.
Qual a participação da mídia, das famílias e das escolas ao investigar o rancor que tem pautado as relações humanas? Como debater propostas, condutas e formas de convivência, respeitando o diferente? Historicamente as circunstâncias econômicas são as que mais influenciaram o discurso político e social. Conceitos de certo e errado variam conforme os interesses de cada época, eles não são naturais ou intuitivos, mas implantados por meio de pressões – via mídia, partidos ou religiões. Destaco o rancor, a violência simbólica contra determinadas classes sociais. Agressão aos médicos cubanos, a moradores de rua, mendigos, jogadores de futebol negros. Comentários preconceituosos contra cidadãos de baixa renda que, devido a uma pequena ascensão social, hoje freqüentam ambientes antes exclusivos de uma elite bem nascida e bem empregada. Vivenciamos uma crescente onda de violência social contra determinadas etnias e classes econômicas.
Exemplos recentes de preconceito contra negros, nordestinos e homossexuais colocaram em xeque o mito do brasileiro cordial, elaborado pelo historiador Sergio Buarque de Holanda, como também a falácia de uma democracia racial. Para o antropólogo Roberto da Matta, o preconceito sempre existiu. Agora ele apenas está mais acirrado pelo fato de as “classes subalternas” estarem se movimentando. Nunca fomos uma sociedade miscigenada e harmoniosa. Enquanto o morro estava sob controle, cumprindo a função de reserva de mão de obra barata, as diferenças não incomodavam. A desigualdade operava como sustentação de uma estrutura social que beneficiava as classes economicamente dominantes.
A manifestação da violência na esfera pública desvela a face de um país ressentido e rancoroso diante das perdas, lugar de privilégios. Os programas de  transferência de renda e de cotas para negros, indígenas e alunos de escolas públicas promoveram a redução da desigualdade social, causando desconforto às classes abastadas. Na verdade, o brasileiro sempre cultivou o gosto pela hierarquia social, o que coloca a igualdade de direitos na ordem do insuportável. A desigualdade, em nossa cultura, sempre foi vista como natural, e a forma injusta e violenta com que as classes dominantes tratavam os pobres, um direito. Aos filhos das domésticas e dos porteiros restava um lugar social já definido, enquanto aos filhos de médicos, herdeiros de uma posição social privilegiada, eram reservados os melhores cargos no mercado de trabalho.
Para os fragilizados pela estrutura social injusta, a esperança de mobilidade social era vista como uma loteria, poucos conquistavam reconhecimento e boas condições de trabalho. O ódio se deve, muitas vezes, às mudanças operadas por programas de distribuição de renda que rompem com o gueto social a que o país estava condenado. Havia uma situação confortável, a concorrência desleal garantia, em terra, o paraíso sonhado. Mais vagas nos vestibulares e nos empregos. Em casa, boas empregadas por baixos salários. Com o aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores de baixa renda, uma nova estruturação social surge, o que não é bem visto pelos conservadores - revoltados com a perda do lugar de distinção social. Com isso, a inclusão social como fator de luta é hoje uma realidade na agenda do brasileiro.     
Como não aplaudir os avanços sociais que nos aproximam do Primeiro Mundo? Contudo, o que temos é um movimento descabido, insano e inconseqüente por parte de uma parcela da população. Muitos, numa postura obscurantista, destilam o ódio diante das mudanças que rompem a separação geográfica entre negros e brancos, ricos e pobres. Sem debates nas escolas ou outros fóruns de discussões que possibilitam aprofundar as questões envolvidas, dificilmente iremos abandonar o reducionismo dicotômico - forma banal de analisar o momento histórico em que vivemos.
Como reconhecer o outro que sempre esteve distante, o diferente, como igual? E como aceitá-lo como um concorrente em pé de igualdade? Enquanto o país vivia a segregação social, a ira estava contida. Na verdade, poucos reconhecem a importância de se corrigir as injustiças sociais causadas pelas classes economicamente privilegiadas. Oliver Thomson em A assustadora história da maldade, adverte: “A segunda maior área de ilusão cumulativa tem sido a justificativa da desigualdade econômica, resumida no dístico medieval “O rico em seu castelo/O pobre no portão”. O que começa com uma ética que recompensa diferentes membros de uma sociedade em diferentes níveis, dependendo do valor de sua contribuição, em geral evolui para uma indefensável justificação de desigualdades permanentes”.
Muitas famílias, escolas e faculdades abandonaram o discurso da ética e da cidadania. Preferiram, de forma obsessiva, se ocupar com a preparação para o mercado de trabalho. Trocaram a lógica dialética pela lógica formal, operacional. O debate de idéias não ocupa mais as agendas universitárias. Aderiram às pressões do mundo técnico. Com isso, a educação está abrindo mão do espaço de formadora de cidadãos, aquela que prepara para uma convivência saudável entre valores contraditórias e discordantes. A polêmica e o conflito são formas de expansão do pensamento. O caráter negativo de focarmos apenas as matérias técnicas é o distanciamento dos jovens em relação à essência humana.
              A maldade não brota do nada. O rancor expõe insegurança, infantilismo, inveja. Ele é lançado sobre o outro que nos incomoda, provoca. A fúria tenta impedir que  desfrute da posição que conquistou. Mais que ódio, rancor é sentimento que se guarda e,  ao ressurgir, volta a atacar. Educar implica ensinar a ganhar e a perder. O fracasso é parte da condição humana. No deserto, longe dos bons sentimentos, a moçada solta o leões exigindo privilégios historicamente petrificados.            [1] Artigo publicado em 6/09/2014 no caderno Pensar do jornal EM. Inez Lemos é psicanalista.