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e entusiasma a alma.

domingo, 28 de março de 2010

O AMOR NO FEMININO

Inez Lemos

A artista plástica e escritora francesa Sophie Calle, revoltada com o escritor e namorado G. Bouiller por ter encerrado a relação por e-mail, resolve revidar a indelicadeza do rapaz. Num gesto de cumplicidade feminina, envia a carta a 107 mulheres. Com o pretexto de pedir sugestão sobre como proceder à deselegância do rapaz, arquiteta uma fogueira pós-moderna ao ex-namorado. Não é de agora que Sophie transforma fragmentos de sua vida em arte. A artista conceitual chega ao Rio em primeira pessoa com a exposição Cuide de Você - exibindo a imagem da carta projetada sobre uma foto de seu corpo. A inquisição feminina condena o rapaz de infantil e despreparado para o amor. Todas foram unânimes em reprová-lo, julgando seu comportamento covarde e insensível.

Não nos interessa julgar o caso e a conduta do rapaz, mas tentar desvendar os fatores que ocultam os mistérios reservados às mulheres. Vale investigar a facilidade com que as mulheres aderiram ao coro das descontentes, condenando tal postura de egoísmo e macheza. Como questionar o tribunal feminino que, de forma fervorosa, aponta a guilhotina para a falta de habilidade de um namorado? Talvez seu maior pecado tenha sido não levar a sério as singularidades da sexualidade feminina. Bouiller esqueceu que navegava num continente negro, obscuro e sujeito a tempestades e fúrias. O feminino não gosta de resoluções burocráticas. É campo imprevisível, abissal e cavernoso, onde nada é transparente, matemático. É sentimento que não cabe no computador - a linguagem do Word é insuficiente para interpretar as lacunas entranhadas no corpo de uma mulher.

O feminino é um corpo que traz as marcas da incompletude e que luta para descobrir sua instância fálica. A singularidade do feminino está no fato da mulher não ter um significante que a nomeie e defina. O registro do corpo imaginário completo é uma inscrição original e nele está contida a inscrição psíquica do pênis (representante universal do falo). Para Freud, a falta do pênis denuncia a castração - quando a menina se defronta com a tarefa de se haver com um corpo que registra uma ausência. O que explica porque as mulheres precisam mais de palavras - requer dos homens ouvir algo que recobre o vazio. O sentimento de “não-toda”, longe de ser um problema, é salvação. É ele que mobiliza nas mulheres o desejo e o interesse diante da vida.

Mulher é plural, são muitas e não cabem numa gaiola cibernética. Impossível querer classificar a multidão que habita um corpo feminino. Uma legião, em vigília, cuida do desejo, controla reinos, funda países. Lacan chamou de mascarada ao arsenal de recursos utilizados pela mulher em busca de solução. Adélia Prado, com sua licença poética, atesta: “Mulher é desdobrável. Eu sou”. Na busca de compensação para repor a falta, a mulher saí pelo mundo arquitetando subjetivações, reinventando acordos. Diante de tanta insatisfação, tanta procura, Freud concluiu que o feminino não é destino, mas reinvenção: “não se nasce mulher, torna-se mulher”.

Ao contextualizar o caso Sophie, torna-se impossível imaginá-lo num outro século - o que o define como emblemático desse tempo. O que leva um rapaz escolher o cyberespaço para terminar um relacionamento afetivo? A internet é bem vista e cultuada entre as mulheres para iniciar relacionamentos. Muitas se utilizam de sites para encetar encontros amorosos. O culto à internet como agenciadora de namorados tornou-se comum. Se aprovam a informática como mediadora e facilitadora na realização de desejos - uma história de devaneios e fantasias -, era de se esperar que a mesma lógica se estendesse quando essa se encerrasse. O que subjaz a tanta ira, ironia, espírito raivoso? Há muito as mulheres abandonaram o lugar de arautos da moralidade, tornando-se cúmplices dos homens nos prazeres sexuais. Por eles lutaram, queimaram soutiens. Juntos, se jogam nas águas tirânicas do gozo - mar devorador da discrição e da privacidade. Bouiller não se pautou por uma conduta ética, agiu contaminado pela ética do cyberespaço em que tudo se tornou normal, natural, permitido.

Bouiller pecou ao privar Sophie de ouvir os motivos que o levaram a encerrar o namoro, ao não torná-la testemunha de sua decisão - parceira no sentimento de recusa e rejeição. Tudo que uma mulher quer é ouvir, arrancar de seu amado confissões. O sintoma feminino diz da necessidade das mulheres em ouvir do parceiro afetivo juras de amor. A mulher, para obter gozo, demanda que seu amado fale. O erotismo feminino inicia nos sussurros ao pé do ouvido, quando ela espera que ele revele a importância que ela tem para ele. Nessa relação, o homem entra como o sujeito de desejo e ela o objeto que vai completar esse desejo. Uma mulher quer ser o objeto de desejo no desejo de um homem. Que sua existência seja metáfora de desejo de um outro.

Se a feminilidade se funda na confissão de um homem, significa que a investidura de sua condição de desejada não reside em nenhum símbolo visível, objetivo (beleza, inteligência), mas na chancela do ‘eu te amo’. Ela quer ouvir o que é da ordem do indizível - algo que lhe confere reconhecimento e definição. Quando a mulher não se certifica do amor de um homem, um abismo se abre. Quando o namorado não a convoca para participar da decisão de interromper o namoro, ele a destitui do lugar sacralizado. Quando ela e sua palavra são excluídas, dispensadas, uma cratera se abre sobre seus pés. Sophie, ferida no narcisismo feminino, se sentindo rebotalho, declara guerra àquele que a destituiu de seu lugar de objeto fálico: ‘ele não me pertence, não tenho mais nenhum poder sobre ele’. Ressentida e magoada, prepara uma vingança para aquele que dispensou seu amor via on-line. Ironia pós-moderna - amor sólido também se encerra na tecnologia e se desmancha na internet.

Em Madame Freud a psicanalista Nicolle Rosen metaforiza, em forma de romance, o desabafo de Marta Bernays (esposa de Freud). O livro retrata de forma ficcional a vida íntima do casal, denunciando a falta de sensibilidade de Freud com a insatisfação de Marta. Em tom confessional, temos o retrato de uma mulher solitária que soterrou sua inteligência, sonhos e desejos para se dedicar ao marido e sua obra. Marta, ao fazer um balanço de sua vida conjugal, reconhece sua submissão - lugar secundário que a anulou como sujeito desejante: “Eu era suficientemente sensata para saber que a paixão é um sentimento efêmero. O que mais me fazia falta era a comunicação incessante que havíamos tido durante os quatro anos que precederam nosso casamento, aquelas cartas nas quais, dia após dia, nos contávamos tudo”. Marta prossegue em sua queixa, se recriminando por ter fingido ser uma dona de casa encantada com a função de velar pela felicidade do marido e dos filhos. Contudo, guardado as devidas proporções e os séculos que separam Madame Freud de Sophie Calle, temos um cenário de insatisfação feminina em relação ao comportamento de seus homens. Estariam as duas tentando se libertar do lugar de desejadas – dependentes do desejo de um homem para se sentirem realizadas?

A harmonia, a paz interior sonhada, a mulher vai encontrar quando fizer um acordo com o lugar de faltosa. Para tanto, ela precisa construir outras instâncias fálicas, outros nichos de interesse e se libertar do amor como única paixão. O amor deve operar como mais uma das instâncias que dão sustentação ao feminino. Como amar mais coisas além do amor? Muitas mulheres vivem bem tanto sozinhas ou quando estão amando. Outras ainda se atormentam com a falta do amor. Torturam-se com a idéia de não conseguirem uma forma de aplacar a tragédia do desamparo, se sentindo desamparadas, abandonadas, rejeitadas. O tormento feminino é a dificuldade de fazer as pazes com o falo – o representante da falta no ser humano. A parceria com um homem oferece à mulher a possibilidade de suplência à sua falta de definição. A definição de feminino depende da mediação de um homem. É sempre para um outro que a mulher quer ser o falo – conquistar um lugar de poder, ser admirada. A mulher procura suscitar olhares de reconhecimento. Querer ser desejada por um homem é querer que ele, sem ela, se sinta incompleto, na falta. Assim a mulher se oferece para obturar a falta daquele que ela lançou na posição de dividido, frágil.

Entre o homem e a mulher há o falo - um mundo a ser desvendado, um muro a ser implodido. Ridículo não é desejar o amor, mas fingir que ele não nos faz falta. Objeto ultrapassado ou sentimento resistente que tampouco a internet conseguiu destruir? Amor serviçal, amor que sacrifica o outro e sua essência, amor vegetal, que não brilha. Amor informatizado, virtualizado e mercenário vira peça de museu, obra de exposição e merece ser deletado. Sophie e Marta nos ensinam que amar é experiência generosa que possibilita nos tornar melhores. Tanto a mulher como o homem precisam enfrentar a falta. Melhor seria que fosse de forma menos enganosa, dissimulada - o que exige humildade para reconhecer limitações, despreparos. Sem isso iremos sempre demonizar o outro que nos abandonou - atribuindo apenas a ele a responsabilidade pelas frustrações, insatisfações.

Artigo publicado em 26/12/09 no caderno Pensar do E.M.

quarta-feira, 17 de março de 2010

A solidariedade é branca

Eliane Dantas
O médico argentino Emiliano trabalha para os Médicos sem Fronteiras, a maior organização internacional e não governamental de ajuda humanitária do mundo. Ela atua em conflitos armados, catástrofes naturais, epidemias, fome e exclusão social. Recentemente, ele esteve de passagem por Belo Horizonte. Sua presença e suas experiências me fizeram querer entender melhor o significado de solidariedade.

Mas, afinal, o que é a solidariedade que o mundo convoca e evoca e tem sido tão usada mercadologicamente? As palavras são elásticas. Os sinônimos são aproximações, portanto é bom investigar os significados para não ficar restrito ao senso comum.

A origem da palavra solidariedade encontra-se no latim, com as palavras solidum (totalidade, soma total, segurança) e solidus (sólido, maciço, inteiro). Na definição do dicionário Aurélio, é “sentimento que leva os homens a se auxiliarem mutuamente”. Uma definição que julgo mais completa é de uma encíclica de João II : “Determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos”. A solidariedade, portanto, é alternativa ao egoísmo, é responsabilizar-se coletivamente pelo presente e pelo futuro.

Então, voltemos a Emiliano, que está nas missões “não para salvar a vida de alguém, apenas para dar outra oportunidade”. Na sua fala, percebe-se que não há vaidade, ele não se coloca como herói, não cria um mito em cima de si mesmo nem tão pouco da ONG. Pelo contrário, desmitifica o imaginário coletivo. Não nega que ele e os colegas arriscam suas vidas, mas afirma que o risco é menor do que imaginamos porque vários cuidados são tomados para protegê-los.
A atuação de Emiliano é altruísta, mesmo que seja remunerada, e pode se dar na Etiópia, no Peru, na Colômbia, no Paraguai, em Angola. É mais do que caridade e compaixão. É solidariedade larga, não restrita à sua familia, ao seu bairro, ao seu país. É uma demonstração da consciência de sentir-se também responsável pelo mundo e pelo bem-estar das pessoas que o habitam.

Quando melhor entendermos que a ausência da solidariedade é geradora de violência, além de nos vestirmos de branco e soltarmos pombas para pedir paz, nos envolveremos em ações que realmente são transformadoras. Além de participar de protestos para marcar um dia, um crime, um sonho, atuaremos com mais ética, delicadeza, sensibilidade, humanidade todos os dias. Seremos agentes e não expectadores de mudanças.

No mundo há pessoas que são ícones da solidariedade: Ghandi, Mandela, Paulo Freire, Mohamed Yunus. Este fundou o banco Grameen, em Bangladesh, para concessão de microcrédito a pessoas de baixa renda, principalmente mulheres, para financiar atividades produtivas, livrando essas pessoas da dependência de agiotas. Libertou milhões da miséria extrema e resgatou autoestimas. Categórico, afirma que não há paz duradoura com pobreza. Não por acaso, ganhou o prêmio Nobel da Paz em 2006.

Muitos outras pessoas não ganharam fama por seus feitos, mas conquistaram a admiração de pessoas próximas. Podemos nos inspirar em qualquer uma delas e indagar: Sou suficentemente solidário? O que posso fazer para humanizar o mundo? E a mim mesmo? Quem aprende, pode ensinar.

quinta-feira, 11 de março de 2010

MODERNIDADE E ESTRANHAMENTO

Inez Lemos

O filme Hanami - Cerejeiras em flor nos fala de saudade, modernidade, estranhamento, tempo e morte. Um casal vive sozinho numa pequena cidade na Alemanha. Trudi, a esposa, descobre que Rudi, o marido, está com uma doença terminal e lhe propõe viajar. Visitar os filhos em Berlim e no Japão. Seu sonho era conhecer o Monte Fuji e apreciar as cerejeiras em flor. É o momento de aproveitar o tempo que ainda lhes restava para realizar os desejos adiados. O Japão despertava curiosidade em Trudi. Agressivo no progresso tecnológico e delicado em seus rituais e tradições. Da comida às danças, músicas e vestuário, tudo é cercado de detalhes e pequenos gestos. O ato de comer, o momento do alimento, para eles, é sagrado. Não combina com a pressa das metrópoles. Contudo, a modernidade os atravessa e rompe a cultura da leveza e da sutileza. Hábitos ocidentais convivem com orientais - ambos se adaptaram ao tempo que urge. O filme surpreende pela sabedoria de Trudi, que não se deixava contaminar pelo discurso da pressa - frieza e secura da vida in chips. Sempre encontrava uma forma de tocar a essência. Conquistar o carinho da neta que a olhava distante e interessada em seus bichinhos eletrônicos, suportar o mal-estar dos filhos causado pela visita inesperada dos pais.

Visitante inoportuno é o que chega e desequilibra o cotidiano de trabalho e obrigações. Sempre carregamos a agenda com afazeres prementes. Geralmente, essencializamos o banal e relegamos o essencial. No filme, o desconforto causado pela presença dos pais, nos filhos, nora e netos, é visível. Tudo incomoda - a cama cedida, as reivindicações aos passeios. Estranhamento e distanciamento se instalam. Pais que não conhecem os filhos e filhos que desconhecem os pais. Quem somos nesse mar de tarefas e cobranças? O mundo que nos cobra excelência e resultado é o mesmo que nos desconserta e atordoa. Já não sabemos mais como nos comportar diante de sentimentos e desejos íntimos. Como conciliar demandas tão desencontradas? Na tela vemos as contradições que cercam a existência humana. A impotência do homem pós - moderno, industrial, iluminista, capitalista. Que momento é esse que temos que ser bons em tudo - informática, dinheiro, cultura, corpo, sexo?

Trudi e Rudi representam a última geração de pais que souberam priorizar o tempo do amor, da ternura e da comida. Trudi preparava, todo dia, o sanduíche que Rudi levava ao trabalho – pão e maça, alimentos bíblicos. O amor entre eles era profundo, havia conexão entre sentimentos e gestos. Os conflitos eram vivenciados com sabedoria e paciência. Companheiros no amor, nas alegrias e decepções. É quando sentimos que a união faz a força - um realmente se apoiava no outro. Lembrando-nos que a existência, quando compartilhada, se torna leve e gostosa.

Ao ver os filhos distantes e inseridos no frenesi de um outro mundo, um tempo que eles desconheciam, com demandas que lhes eram estranhas, o casal se desconcerta. Uma frustração escapa da tela e nos bate fundo. Momento duro da interação: cinematografia e espectador, arte e realidade, sentimento e progresso. O mal-estar dos pais atravessa a dimensão artística e toca o real, o inominável. A morte nos espreita todo o tempo e nem assim desistimos de correr, fugir ou desprezar o essencial. Será que valorizamos o que, no fundo, não concordamos ou desejamos? Estamos todos no mesmo barco que se afunda. Somos todos passageiros de um só Titanic. Calados e resignados, assujeitamo-nos à tragédia que preparam para nós. Cúmplices aceitamos os minutos, as migalhas de tempo que nos é permitido no lazer e na vida em família.

Trudi, diante de um marido irredutível, desiste de conhecer o Japão, mas o convence de ir à praia e matar a saudade do mar. E lá o jogo da vida se inverte. Trudi morre repentinamente. O destino e suas ironias sempre nos surpreendendo, sempre furando a fila e levando as pessoas trocadas. O filho que morre antes dos pais, o saudável que vai primeiro que o enfermo. Ainda assim não abandonamos a arrogância e a ilusão de que somos senhores do futuro. Desprezamos a superioridade do acaso, do indeterminado. Definitivamente, não somos donos do nosso tempo de vida, ele sempre nos escapará – faltará ou excederá!

A questão central do filme é nos chamar a atenção para a sutileza da vida, um alerta aos que definem a agenda priorizando apenas negócios – não “negam o ócio”. Sempre sacrificando a convivência entre pais ou filhos, crianças ou idosos. Um alerta aos casais que, com o aval da modernidade, julgam comum desconsiderar o desejo do outro. Rudi, devastado com a morte de Trudi, descobre saídas honrosas para o seu luto. Sabedoria ao enfrentar a morte da pessoa amada. Viúvo, uma nova trajetória se inicia. Estratégias ao confrontar o real da morte, a dor de uma ausência imprescindível. Reinventar saídas para a solidão, para o tempo que ainda lhe restava. Conviver com a impermanência - lembranças ternas e eternas. O que fazer com a saudade, os resíduos do outro? De onde extrair forças para realizar, sem a pessoa amada, o que, com ela, se recusou a viver? Rudi se mune de coragem e não se acovarda. Peregrino do desejo do outro. Parte em busca de Trudi, do pouco que dela restava nos jardins, nas cerejeiras, na dança japonesa e no Monte Fuji. Articula uma companhia, alguém que, com ele, encarnaria os sonhos da esposa. Ao se cercar de Trudi, suas roupas e preferências, Rudi encontra paz e alívio. É a vida nos apontando infinitude e grandeza diante do abismo. Sempre nos reservando surpresas, saídas dignas quando não nos apequenamos. Rudi abriu a alma e aceitou os desígnios de vida - visitas inoportunas e indesejadas. Sempre desprezamos os indícios da morte. Sempre nos julgamos eternos - nossa permanência na terra sempre foi dada como certa e garantida.

A vida que nos escapa das agendas e dos compromissos de trabalho nos cobra sabedoria. Como conciliar morte e eternidade, impermanência e memória, saudade e ternura, ausência e presença? Rudi, ao transformar fragmentos, ao debruçar sobre os vestígios de uma vida a dois, teceu uma parceria entre vida e morte. Parceiras fiéis, silenciosas e traiçoeiras. A esposa precisou morrer para que ele descobrisse uma outra vida. A que se escondia nas floradas das cerejeiras e no Monte Fuji. A montanha que, com sua cadência, nos ensina a conter a pressa, a aguardar os sinais visíveis - a luz só surge depois da neve e da neblina.

Há algo escondido na morte que clama por nós, que requer de nosso olhar atenção e cuidado. A vida, por meio da morte, nos cobra grandeza de alma e serenidade no existir. Quão de sutileza nos espreita? Quão de beleza há submerso na natureza e nas pessoas? Sempre olhamos a vida com olhos contaminados por uma falsa pressa. Geralmente, fazemos ouvidos moucos aos desejos alheios. Arrogantes, aderimos às escolhas convencionais, aos modismos infundados e esvaziados de sentido. Qual o sentido de conhecer Veneza sem antes conhecer os filhos, sem antes saber mais da pessoa amada? Desejo é manifestação interna, anseio inconsciente. É desordem, bicho que escapa furioso, sem rumo. Não há desejo comedido – visitar o Japão é descomunal, é loucura sábia.

O rumo é a civilização, é ela quem norteia nossos passos, nossas pulsões. Nosso inconsciente é ganancioso, consumista e midiático. Contudo, como enfrentar os excessos, a forma descabida e insana com que os homens de negócios se apropriam do nosso desejo? Determinar o tempo do amor, das cerejeiras e das montanhas. Pouco sobra para apreciar a vida que brota das árvores e das pessoas. Até que ponto somos contaminados pela verdade do Outro - empresário que nos influencia com suas ofertas inúteis, suas quinquilharias desnecessárias e efêmeras. Muitos são os pecados cometidos em nome de um grande outro que nos comanda com seu discurso científico e tecnológico. Reverenciamos os senhores da mídia, dos laboratórios, os homens de ternos e pastas pretas - donos do dinheiro e da infelicidade. A vida submetida aos ditames do mercado é vida murcha, pobre e desvitalizada.

Rudi se rejuvenesce quando abre os olhos para a natureza, essa senhora que aprendemos a desprezar e emporcalhar. E que acolhe Rudi sem cobranças e ressentimentos. A vida que ele desprezava e que, por fim, o salvou e lhe devolveu a alegria que Trudi levou. Beleza permanente é a que se esconde na natureza, eterniza a existência e recobre de dignidade a frágil experiência humana. Passagem faltosa que realizamos na terra. O filme nos ensina a respeitar a condição de finitos, a enfrentar estranhamentos. Desvelar a beleza dessa senhora grisalha, companheira crepuscular, visita indesejada.

Artigo publicado no caderno Pensar em 6/3/2010

quarta-feira, 3 de março de 2010

FRACASSO DA LEI-DO-PAI

Inez Lemos

Há muito que a droga entrou na sociedade como mercadoria fashion, consumo “obrigatório” entre os jovens, perdendo a dimensão onírica, utópica e sublimatória. A mania phármakon, atualizada no crack, é apenas a manifestação de questão que merece ser abordada no campo da prevenção. Freud chamou a atenção para algo que pulsa “além do princípio do prazer”. Poucos vão à festa sem de lá saírem entorpecidos por drogas lícitas ou ilícitas. Tornou-se chique embebedar-se. Há uma conotação de virilidade entre os cultuadores do álcool.

Muitos pais se esquecem de que tudo pode começar com a cervejinha - excessos nos churrascos familiares. A moda é pais permissivos que levam a vida sem querer saber o que se passa com o filho, como ele chega em casa, de madrugada. Muitos começam a beber ainda na adolescência – em festas e baladas. Os hábitos mudaram, tornou-se normal os jovens freqüentarem, ainda pela manhã, bares que rodeiam as universidades. Café da manhã à base de cerveja e coxinha.

Toxicomania é prova cabal do efeito das propagandas que vinculam bebida ao sexo. Ao se intoxicar, o jovem apenas consome um produto de dois mercados: de bens e do gozo. No contexto da sociedade de consumo - não há saber que resista ao efeito corrosivo da atuação do mercado -, o toxicômano ocupa um lugar de fragilidade. O jovem é tido como presa fácil dos traficantes. Vulnerável, suas defesas são frágeis, pois, justamente nessa época, ele está elaborando escolhas. Ninguém nasce forte em suas convicções. A implicação dos pais na formação dos filhos requer vigilância constante. Sempre haverá um resto passível de ser orientado. Freud incluiu o ato de educar entre os ofícios impossíveis de serem concluídos - é tarefa interminável.

A ação espetacular da mídia sufoca qualquer produção de subjetividade que esteja fora de seu alvo. O discurso que permeia a juventude - de que bebida é sinônimo de potencia sexual, por exemplo - opera uma fratura no sentido da vida, um deslocamento de significação. Se antes os seduzíamos pelo esporte, pela música, pelas amizades ou pela profissão, agora os enlaçamos pelo gozo mortífero das drogas. Gozar com a droga é diferente que gozar com o sexo. Estamos vendendo aos jovens um gozo falso, traiçoeiro e falido.
Criado fora da lei, sem conviver com a falta e a frustração, o jovem não suporta as restrições pulsionais que a vida impõe. Provavelmente, vai sair atropelando, agredindo e atirando nos obstáculos ao gozo. As interdições devem ocorrer quando se é bebê. Geralmente, quem não é limitado desde pequeno em seus impulsos acabará, mais tarde, limitado pela pulsão de morte. O sujeito não acaba com a vida por que usa droga, mas, inconscientemente, procura a droga como mecanismo de autodestruição. Há dimensão erótica no encontro com a morte - resíduo de gozo masoquista. É quando devemos suspeitar de nós mesmos. Como afirmou Freud: “não somos senhores nem em nossa própria casa”.

Quando o pai entrega o filho à polícia por ele, sob o efeito do crack, ter estrangulado a namorada, temos o total fracasso da lei paterna - o pai assume a impotência em sua função. O fracasso das instituições (família, escola, polícia) nos aponta a anomia. O momento é de repensar os papéis das instituições na restauração da autoridade perdida. O que leva um jovem a subverter as leis que regem a vida em sociedade, a nada temer? Quando os pais não inserem o filho na cultura, quando ele não é barrado em seus excessos, quem o faz é o Estado - no caso, a polícia.

O toxicômano rompe com a lei paterna ao se posicionar fora da cadeia significante, da ordem simbólica. Vive o gozo que “curto-circuita” a fantasia, inviabiliza o laço social e impede a emergência de sentimentos como vergonha e culpa, por exemplo. Constrangimento, responsabilidade e respeito fazem parte da concepção de alteridade, são estruturantes do sujeito. Não é normal sairmos pelo mundo agredindo os outros, desrespeitando leis sem sentirmos desconforto.

O sujeito identificado com o objeto droga internalizou a imagem de dejeto, de pouco valor. Dentro de que significantes os jovens estão sendo estruturados? Muito do que somos resulta do que vimos e ouvimos em nossa infância. Se um pai se dirige ao filho de forma despreziva, ele vai atuar a partir desse registro. Se o filho sente que o pai não prioriza seu tempo para com ele, registra que o pai não gosta dele, ou lhe atribui pouca importância. Atitudes como essas são devastadoras para o sujeito, que, com o intuito de provocar a indiferença do pai, reage com atitudes antissociais.

A violência entre os jovens cresce proporcionalmente à forma despreziva com que são tratados pela família ou pelo governo, por exemplo. A crise de autoridade que permeia as instituições reflete o fracasso do pacto edípico, quando o indivíduo recusa a ordem que sustenta a civilização – desejo de produzir e lutar por um futuro. O toxicômano é um demissionário do falo.
A única autoridade a que o toxicômano obedece é a morte. Somente ela é capaz de detê-lo em sua ensandecida via-crúcis de sofrimento. A vida sem fantasia e sem perspectivas é parceria com a morte – amiga fiel que sempre surge para salvá-lo do inferno.

A problemática das drogas se insere na mudança de lugar do pai na atualidade, quando este ocupa um espaço esvaziado de autoridade. Todo sujeito requer condições psíquicas para suportar as restrições que a cultura lhe impõe. É a lei do pai que garante ao sujeito acesso à linguagem e à cultura - quando a família refreia o gozo, os excessos. A droga entra, muitas vezes, como suplência ao fracasso da função paterna, como arremedo à ausência da lei. De forma trágica, o toxicômano acaba se defrontando com alguma forma de limite – hospital, prisão ou cemitério. O toxicômano é um ressentido da ausência de falta, um frouxo de desejo. A falta, ao mesmo tempo em que incita o desejo, o limita.

A agressividade ressituada não se inscreve apenas no campo pulsional. No deslocamento do campo pulsional para o campo do gozo, a agressividade se torna egóica na tentativa de fundar um espaço próprio. Não é o único caminho. Mas, tanto quanto menos simbolicamente um sujeito se sinta garantido, tanto mais vai apelar para outras formas de gozo. A droga é efeito do desamparo infantil frente à substituição da autoridade paterna. A questão é a relação do jovem com a ausência de lei. Por isso, muitos recorrem à religião. Como nos lembra Freud: “a relação pessoal com Deus depende da relação com o pai e que, no fundo, Deus nada mais é que um pai glorificado”.

Interessa investigar a raiz neurótica da “angústia do pai”. Muito da delinqüência remete ao desamparo original. Expressada na toxicomania, a delinqüência não reflete apenas questões subjetivas. Tornou-se um fenômeno social, uma forma de reação ao sofrimento, ao futuro morto – educação precária, desemprego, solidão. Estamos diante de verdadeira mutação cultural, de novo estatuto de ordenação do gozo.

O gozo do toxicômano se dá inseparável do próprio corpo. Não passa pelo corpo do outro, o que o torna cínico. O cínico goza à revelia do outro. Lacan vai estabelecer distinção essencial entre prazer e gozo, residindo este na tentativa permanente de ultrapassar os limites do princípio de prazer. Tal movimento, ligado à busca da coisa perdida que sempre vai faltar, é causa de sofrimento. E tal sofrimento nunca erradica por completo a busca do gozo. O gozo se sustenta pela obediência do sujeito a uma ordem, que o leva a abandonar o desejo e a se destruir na submissão ao outro. O conceito de gozo está relacionado com a lei. Essa pode ser uma relação de desafio, submissão ou de desdém.

Vários são os Nomes-do-Pai - religião, arte, esportes, trabalho. Sempre haverá um lugar simbólico que sustente o sujeito em sua relação com o objeto de satisfação. A cultura hedonista quer suprimir qualquer dimensão de sacrifício. Os toxicômanos de hoje são filhos de uma geração que, preocupada em romper com os interditos morais, acabou criando as condições para uma apologia do monopólio do gozo. Um ideal de sociedade em que os jovens podem tudo realizar. Com isso criamos uma sociedade doente.

A realização harmoniosa do gozo é aposta de apaziguamento. Contudo, a toxicomania deve migrar da delinqüência para o campo da terapêutica. O toxicômano é um ser não castrado. Castração é perda, é limite à onipotência do desejo – enfrentar o gozo em seu pacto de morte. À psicanálise, diante do gozo do toxicômano, resta operar com fantasias. Apostar na identificação com outro lugar que não seja droga, dejeto. Restaurar o encanto, o desejo por belezuras e a esperança no amor – troca afetiva e construção de futuro.

Artigo publicado em 16/01/2010 no caderno Pensar do E M.