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domingo, 6 de junho de 2010

DESESPERANÇA E DOMINAÇÃO

Inez lemos

O novo estado do capitalismo ao qual nos submetemos desconstrói as possibilidades de simbolização. As relações sociais e mercadológicas se estabelecem fora do campo simbólico. Quais as conseqüências de se viver num mundo cujo valor simbólico é desmantelado em função do simples e neutro valor monetário? Quais os efeitos de dessimbolizar a vida e desvincular o dinheiro da dimensão subjetiva, simbólica e afetiva? Quando nada mais interessa, quando desconsideramos questões que ordenam a moral e a tradição e conferem às relações e aos objetos transcendência, abrimos espaço para a livre circulação da mercadoria. As trocas mercadológicas provocam a dessimbolização do mundo. Com isso, nos parafusamos numa rede de dominação, circunscrita não mais ao simbólico, mas ao real. É quando a vida passa a ser regida pela lógica do custo/benefício.

O novo sujeito, o homem que está se estruturando dentro da nova economia psíquica, sem recalque e desprezando o passado, mergulha na cultura da perversão. É a partir desse novo estatuto do objeto, da supervalorização da mercadoria, que devemos analisar episódios de violência envolvendo jovens e adolescentes. O novo sujeito se distancia cada vez mais do sujeito engendrado no sentido filosófico e psíquico do termo. A morte do simbólico enterra o sujeito kantiano junto ao sujeito freudiano. Distanciar da dimensão transcendental, desconsiderar as multiplicidades de sensações e sentimentos, negar as experiências, é acreditar num projeto existencial estruturado apenas no real da mercadoria, no real da vida. A filosofia que se estabeleceu na síntese da experiência e do entendimento refundava uma nova metafísica crítica. Vencido o sono dogmático, caímos na ilusão do racionalismo puro e simplista. Hoje, padecemos de excesso de técnica, de espírito funcional, operacional. O mundo que se apresenta às crianças é desprovido de sentido transcendental - repertório objetivo e científico arquitetado na razão mercadológica.

A lógica que orienta o novo sujeito é a do homem biológico. Vivemos a supervalorização do diagnóstico. Ao tratarmos o sofrimento humano, melhor ainda é provocar no sujeito o desejo de investigar o que o faz sofrer – jogar luz nos incômodos. Deixar falar o corpo erótico, vivente e vivido, que hoje emudeceu, desapareceu! Quando experiência e desejo seguem dissociados e a técnica reina absoluta, destruímos as possibilidades de explorar fracassos e conflitos. Ilusão acreditar que, castrando a palavra, conquistamos o apaziguamento. Assistimos à morte do sujeito forjado nos pressupostos da filosofia moderna e nas teorias orientadas nas manifestações do inconsciente – sonhos, atos falhos, chistes. É no espaço deixado pela morte do simbólico – dos totens e dos ideais do eu - que se embrenhou o mercado. A ausência de interdição favorece e expande as passagens ao ato. O que freia as pulsões é o recalque. Sem Pai e sem recalque, o que temos é um sujeito sem culpa, livre pra agir acima do bem e do mal. É quando vale tudo - de pedofilia a estrupos em série.

A sociedade que opera no real recusa o sujeito crítico e funda o sujeito do ato, que manifesta a insatisfação atuando - batendo, matando, chutando, zoando. Cyberbullying, prostituição virtual, esses e outros sintomas revelam um vazio de referência, um futuro morto. O Pai, lugar simbólico, funciona como vetor, é princípio de anterioridade. É ele que funda, no sujeito, a lei e o prepara para viver em sociedade. O que chamamos de Pai é um lugar que simboliza, para a criança, interdição. É quem educa ou cumpre a função paterna – mãe, tios, avós. À escola cabe reforçar os princípios educativos. Quando a criança chega à escola sem os princípios de anterioridade, estabelece-se o caos – violência, agressões, bullying. É um engodo acreditar que podemos prescindir da repressão ao educar filhos. Hoje, multiplicam-se os espaços em que a criança reina livre de modelos (ideal de eu). Mundo sem referencia e sem lei engendra sujeito sem supereu, auto-referencial. É quando o filho não escuta os pais e o aluno não dá a mínima para a escola e professores.

Como analisar os crimes cometidos por alunos, nas escolas, contra professores e colegas? As crianças, quando chegam à escola, chegam atravessadas de cultura midiática, empanturradas de mensagens televisivas. O tempo que era da família é despendido diante de uma tela em que a criança é contaminada por imagens de violência e inserida no mundo do consumo. A violência na TV é diferente da violência das histórias infantis, que chegavam aos ouvidos dos bebês pela voz das mães ou das avós. Há uma diferença significativa do imaginário de maldade enunciado pelo lobo mau e o universo realista dos seriados infantis, ou dos jornais e novelas – lixo televisivo ao qual muitas crianças são expostas. O resultado é uma geração forjada mais na cultura do consumo que na família, lugar por excelência de transmissão de valores.
A autoridade é transmitida no processo geracional. Instituir o jovem responsável, consciente de deus deveres e direitos, eis o desafio de uma sociedade que se institui na negação geracional, na auto-referencia. Os pós-identitários, sem antecedentes, desamparados e erigidos como “donos da verdade”, inudam as escolas de problemas, dificultando o processo educativo e comprometendo o bom funcionamento das instituições públicas e privadas. Como uma geração vai garantir a educação da outra? Várias identidades num mesmo corpo, pluralidade de opções, campo aberto para desejar tudo - é o mundo do excesso no qual estamos confinando os jovens. Muita mensagem e pouca metáfora paterna. Quando a metáfora de autoridade fracassa, emerge a selvageria - pulsões destrutivas e de morte. A ausência de interdição é pior que a ausência de escolaridade - esta ainda pode ser adquirida posteriormente, enquanto a delinqüência dificilmente é corrigida quando a lei não é internalizada desde cedo.

Os jovens estão sendo produzidos para resistir à relação de sentido, para escapar à elaboração discursiva e crítica. Sem Outro, eles se estruturam numa liberdade falsa, inconsistente - escravos que aceitam a servidão a que o mundo da homogeneidade vazia os condenou. A dominação atual revela o desprezo dos dominadores pela massa obediente. Só é possível dominar o outro quando desprezamos aquele que deverá se submeter a nós. A ausência de resistência, de pensamento crítico, compromete o laço social, o mundo das relações afetivas e a qualidade de vida – amigos, profissão, relações amorosas. Quando não somos nós que orientamos nossas ações, agimos dessubstancializados e dessimbolizados - distantes do lugar que confere pertencimento e filiação. A violência pode ser vista como efeito do descaso - emancipação do Outro, auto-gestão do eu. É da ordem do insuportável, para um adolescente, se sentir solto, desvinculado de uma rede de referencias e significantes que lhe conferem direção. O desespero de muitos jovens exprime impotência diante dos desafios da vida, dificuldade de tomar decisões, desejo de reconhecimento.

Como resistir à paixão triste, ao sentimento de impotência ao enfrentar os inimigos que nos afastam de nosso eixo identitário? Toda intervenção que nos chega de fora e que não exige de nós posicionamento, que dispensa nossa participação no processo, representa perigo! Cautela diante dos tratamentos que prescindem da palavra e oferecem resultados imediatos. Mediar, não adiar, elaborar. Enfrentar, desvelar - tirar o véu da dissimulação, do escape. Não querer ouvir o sofrimento do outro, não se interessar por seu grito interno é um dos maiores pecados que a modernidade já engendrou. Ao tratarmos depressão, bipolaridade ou outros transtornos somente com medicamentos, compactuamos com o apagamento do corpo erótico - que chora, berra e protesta contra o deserto ao qual está submetido. É mais rentável apostar na manutenção da doença do que na saúde dos portadores de sofrimento psíquico. Quando a química provoca no sujeito a ilusão de onipotência, ela o enreda na impotência. O jovem deprimido não enfrenta o Outro. Nada mais desesperador, para quem deveria ser encorajado a acreditar em seus sonhos, que se render enfraquecido e desacreditado de si. Desalento é se sentir vivo num corpo morto, desprezado, isolado e dominado pelo discurso absoluto da ciência.

Como se nomear e se subjetivar - agir segundo as próprias convicções? Elaborar perguntas como quem eu sou, o que desejo da vida, tornou-se despropósito! A singularidade é tramada entre amores, desamores e fracassos. Como enfrentar a peleja da vida? Sem antecedência, sem que os adultos assumam a responsabilidade do mundo no qual colocaram os filhos, dificilmente avançaremos no combate à violência. Primeiro, devemos saber que filhos queremos deixar no mundo, para, então, repensar que mundo queremos deixar aos filhos. Desesperança queima o tecido da vida - esperança de cumplicidade. Parceira mortífera.

Artigo publicado no Caderno Pensar em 29/05/2010.

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