Inez Lemos
A lógica em que
o uso da água foi inserida em nossa cultura é a lógica da mercadorização, do
consumo exacerbado e do lucro. Há tempos a água deixou de ser recurso natural, um bem coletivo, para se
transformar em mercadoria a ser vendida. No imaginário empresarial, é um
produto a ser negociado como um objeto de consumo qualquer. O sucesso do
capitalismo depende do quanto de fetiche e de ilusão consegue-se criar em torno
de uma mercadoria. É quando a água abandona o valor de uso e incorpora o valor
de troca. Ela circula na perspectiva da acumulação, o mundo dos negócios a
utiliza para alavancar investimentos. É peça chave nas empresas, dela depende o
Capital, os meios de produção.
A crise hídrica nos impõe um paradoxo:
como conciliar conceitos e práticas sociais petrificados no discurso da
rentabilidade e da ostentação, em que competição,
cliente preferencial e patrimônio confrontam com o discurso da ética e da
necessidade de economizar água? De repente, inicia-se o processo de
deslocamento de posição: a água não deve mais ser vista como uma mercadoria
rentável, seu uso deve ser racionado. O discurso agora é o da consciência
social e da cidadania, pois se trata de um bem natural, de uso coletivo. Se
educamos as crianças no excesso e na lógica do desperdício, como enfrentar tal
desafio? Na TV, logo após as propagandas de sapatos e cosméticos, temos os
órgãos responsáveis pela captação e distribuição da água solicitando que a
população economize, poupe, não desperdice tão precioso recurso natural.
Quando convocamos a população a
prestar atenção em seus hábitos, a
investigar se eles estão adequados ao conceito de cidadania e ética,
supomos que ela esteja sensibilizada para a questão. Mas isso não ocorre, pois não
educamos as crianças em valores envolvendo significantes que instituem a
prática de poupar, implicar, cuidar, prevenir, respeitar. Cuidar da água é
prevenir, contrapondo ao descaso com a natureza, rios, mananciais e florestas.
Muitos nascem e crescem entre asfalto, condomínios e jardins artificiais,
convivem com o arremedo da natureza e não percebem o quanto estão distantes da
origem das coisas. Alienados do processo de produção das mercadorias, julgam
normal usar e abusar, uma vez que desconhecem o que diferencia leite de suco,
água de coca-cola, frango de salsicha.
Para que possamos aderir aos apelos
de usar água de forma racional, deveríamos
ser sensibilizados para tal, pois racionar implica sacrifício, mudança de
hábitos, abandonar o conforto e abraçar uma causa desconfortável, que pode gerar
mal-estar. A subjetividade contemporânea não prevê felicidade na lógica da
economia. O brasileiro cresceu sob a cultura do desperdício, poupar não está em
nossa agenda. Gostamos do excesso - e racionalizar água implica banhos rápidos,
além de outras práticas que garantem menor consumo. Para tanto, é necessária a
intervenção no corpo desejante, pois ações governamentais não podem ficar à
mercê da boa vontade da população.
Em Considerações atuais sobre a guerra e sobre a morte, Freud desconstrói
a ideia de progresso e registra a descrença no ser humano em questões coletivas,
questões que envolvem o bem social. Nesse momento, a esperança iluminista se desfaz:
igualdade, liberdade e fraternidade. Diante da devastação provocada pela guerra
e da banalização da morte, evidenciou-se o fracasso da razão universal,
constatando-se que o exercício do mal estaria no centro da razão civilizada. Ao
deparar com a presença da morte e do mal na orientação psíquica, Freud perde a
ilusão que sustentava a dimensão simbólica da vida social. Ao constatar que a
política não consegue dar conta das diferentes subjetividades, cunha a
expressão “narcisismo das pequenas diferenças”. Ou seja: pouco se pode esperar
de cada um quando se trata do bem-comum.
Para que o cidadão assuma as campanhas de economia de água, ele deve ser mobilizado
em novas posturas, aderir a restrições e limites sem sofrer. Poucos governos
trabalham com prevenção e sensibilização, inserindo desde cedo o cidadão no
princípio educativo. Quando a criança é educada convivendo com a frustração,
quando os pais a deixam na falta, não tentam supri-la em tudo, ela aceita
melhor as interdições e renuncia às pulsões de forma mais tranqüila. Educar
para a cidadania exige coragem dos pais em coibir excessos e caprichos dos
filhos, conduzindo a criança a aceitar as restrições necessárias. Geralmente,
nada se consegue quando a interdição ocorre sem que ela, desde pequena, tenha
sido inserida na lei. É de pequeno que o corpo pulsional é contaminado pelas
exigências do projeto civilizatório.
Mal-estar, frustração e irritação
são efeitos da renúncia pulsional. Há mal-estar quando temos que restringir
demandas e caprichos. Quanto mais se educa o filho no excesso, permitindo e,
muitas vezes, incentivando apelos descabidos, contribuí-se para que o
sofrimento se instale. O mal-estar contemporâneo é gestado no excesso de
permissividade. A ausência de interdição explica a dificuldade dos pais em
impor leis e limites. A sociedade de consumo explora a ausência da metáfora
paterna. Permitir vende mais que reprimir, o que ajuda a explicar a crise de
autoridade, a crise na função paterna e materna.
Quando o espaço privado entra em
crise, o público também sofre as conseqüências. O declínio do poder paterno provoca
o declínio do poder público. Quanto maior a ausência de intervenção pulsional,
menor a chance do cidadão em aderir às campanhas de regulamentação e
socialização do uso da água ou de outros recursos naturais. O pacto selado
entre as famílias é o que garante o pacto na sociedade.
Toda vez que surgem propostas que
rompem com o imaginário social petrificado no individualismo consumista,
exigindo ética no uso do espaço público, há desconforto e perda de gozo. Tudo
que fere a fantasia fálica de privilegiado e poderoso, significantes
sustentados na ilusão de completude, provoca uma contratransferência, pois o
indivíduo estabelece uma relação fálica (de poder) com o objeto - no caso, com
a água. Gastar água ao bel prazer é operar no gozo – quando o sujeito não quer saber,
tampouco se implicar.
A questão passa, então, pela
necessidade de ativar no cidadão a consciência em relação ao uso racionalizado
da água. Como encetá-lo em práticas educativas adversas ao mundo da ostentação
e acumulação patrimonialista? Educar na ética exige que a criança seja inserida
na ordem simbólica que sustenta o enunciado. O discurso que predomina na
sociedade de mercado não articula significantes que sustentam a lógica do bem
comum, exigindo parcimônia nos hábitos. Educamos para o lucro, opulência e
fartura. É quando a criança cresce vendo os adultos usando a água sem
restrições: escovando os dentes com a torneira aberta, tomando banhos
prolongados ou exigindo da faxineira lavar as calçadas.
Toda mudança requer sacrifício, adesão
a novos paradigmas. Como migrar da lógica da competição para a lógica da
colaboração? Tornam-se necessárias rupturas internas, abandonar montagens
perversas que debocham da metáfora paterna. Montagens cristalizadas em atos
poucos transparentes e que não se ajustam às escolhas fundadas nos princípios
de cidadania. Cultuar privilégios não é reivindicar ética, lisura no uso da
coisa pública. Ao regular o uso da água, devemos dialogar com as subjetividades
– operar com o simbólico desconstruindo a lógica objetiva, racional. Deslocar-nos
da esfera do cliente para a esfera do cidadão: desviar o uso da água da lógica
do mercado, em que o cliente bom é o que mais consome.
Um novo cidadão há de surgir na defesa das causas públicas quando novas formas de subjetivação, distantes da razão cínica de sempre levar vantagem, forem contempladas. A retórica da ética e do bem comum é frágil e insuficiente diante do imperativo de gozo, quando o sujeito não quer perder nada, mudar nada, restringir nada! A forma como ele vai responder às demandas de racionalizar água dependerá de como foi inserido na ordem simbólica que prega ética no uso da coisa pública. Como mudar uma cultura, gestar outra concepção de mundo e intervir em práticas que envolvem narcisismo, desejo e pulsões? Nunca é tarde para reiniciar posturas decentes e cobrar responsabilidade dos envolvidos na questão.
Um novo cidadão há de surgir na defesa das causas públicas quando novas formas de subjetivação, distantes da razão cínica de sempre levar vantagem, forem contempladas. A retórica da ética e do bem comum é frágil e insuficiente diante do imperativo de gozo, quando o sujeito não quer perder nada, mudar nada, restringir nada! A forma como ele vai responder às demandas de racionalizar água dependerá de como foi inserido na ordem simbólica que prega ética no uso da coisa pública. Como mudar uma cultura, gestar outra concepção de mundo e intervir em práticas que envolvem narcisismo, desejo e pulsões? Nunca é tarde para reiniciar posturas decentes e cobrar responsabilidade dos envolvidos na questão.
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