Inez Lemos [1]
O preconceito em
relação ao pobre, gordo, feio, idoso, negro, homossexual, deficiente físico e à
mulher, entre tantas outras formas de discriminação, merece debate. A exclusão
é um traço da estrutura histórica que permeia as sociedades que cresceram sob a
égide da acumulação de capital. Em diferentes períodos do processo histórico, a
moralidade e os códigos éticos funcionaram em nome de uma razão, de uma lógica
construída em nome de interesses ocultos. A maioria dos discursos morais
esconde aspectos extremamente imorais. Contudo, a nossa era revive ondas de preconceito
e intolerância assustadoras.
Muitos são os exemplos que apontam para o recrudescimento da violência,
exemplos de intolerância que hoje se manifestam nas redes sociais. Interessa
investigar a tendência em detonar as pessoas. Que ódio é esse? A intolerância que
assusta é a do campo pessoal, é um ódio ao indivíduo. Qualquer atitude é uma
justificativa para se jogar sobre o outro a insatisfação e a frustração. Em
tempo de eleições, o debate é permeado por várias formas de preconceito.
Partidos se digladiando nas redes sociais, onde o ódio é destilado numa
demonstração de que, quando se trata de interesses políticos envolvidos,
avançamos pouco.
Os códigos morais são inventados pelos homens, embora fundamentalistas de
várias religiões se esforcem em afirmar que o discurso da intolerância resulta
de decretos divinos. Hoje, o cenário político no Brasil é disputado entre pastores
- muitos são os candidatos das Igrejas evangélicas. Nos anos de 1960 a 1980, uma parte do
debate político, na Igreja Católica, contava com a presença das Comunidades
Eclesiais de Base, que, incentivadas pela teologia da libertação, lutavam pela
promoção da inclusão. Hoje, predomina uma guerra suja com a presença de
pastores homofóbicos e retrógrados. O pensamento obscurantista, em nome da
moral e da manutenção da família, tenta se estabelecer de forma truculenta. Trata-se
de regras elaboradas em torno de interesses de um grupo que discursa em nome de
Deus.
Defender uma religião ou um partido. Como diferenciar o certo do errado? Valores,
interesses, posturas, crenças. Importa desvendar o que subjaz ao discurso da
intolerância, ao acirramento do preconceito. Quais são as pressões, ambições e
motivações que levam à defesa de um partido ou de uma crença? Geralmente, o
debate sem manipulações e jogos perversos é o melhor caminho. Contudo, num país
comandado, quase sempre, por um jornalismo comprometido, uma mídia tendenciosa
e pouco transparente, torna-se impossível. O método da persuasão funciona
quando a maioria dos cidadãos não cultiva o hábito da leitura, não pesquisa e
não gosta de raciocinar a respeito de temas que envolvem a vida do cidadão. Toda
eleição requer reflexão sobre propostas que atendam melhor aos interesses da
maioria. Com a presença maciça da tecnologia, da internet e da televisão, as
escolhas precisam ser elaboradas, debatidas, analisadas.
Qual a participação da mídia, das famílias e das escolas ao investigar o
rancor que tem pautado as relações humanas? Como debater propostas, condutas e
formas de convivência, respeitando o diferente? Historicamente as
circunstâncias econômicas são as que mais influenciaram o discurso político e
social. Conceitos de certo e errado variam conforme os interesses de cada
época, eles não são naturais ou intuitivos, mas implantados por meio de
pressões – via mídia, partidos ou religiões. Destaco o rancor, a violência
simbólica contra determinadas classes sociais. Agressão aos médicos cubanos, a
moradores de rua, mendigos, jogadores de futebol negros. Comentários
preconceituosos contra cidadãos de baixa renda que, devido a uma pequena
ascensão social, hoje freqüentam ambientes antes exclusivos de uma elite bem
nascida e bem empregada. Vivenciamos uma crescente onda de violência social
contra determinadas etnias e classes econômicas.
Exemplos recentes de preconceito contra negros, nordestinos e
homossexuais colocaram em xeque o mito do brasileiro cordial, elaborado pelo
historiador Sergio Buarque de Holanda, como também a falácia de uma democracia
racial. Para o antropólogo Roberto da Matta, o preconceito sempre existiu. Agora
ele apenas está mais acirrado pelo fato de as “classes subalternas” estarem se
movimentando. Nunca fomos uma sociedade miscigenada e harmoniosa. Enquanto o
morro estava sob controle, cumprindo a função de reserva de mão de obra barata,
as diferenças não incomodavam. A desigualdade operava como sustentação de uma
estrutura social que beneficiava as classes economicamente dominantes.
A manifestação da violência na esfera pública desvela a face de um país
ressentido e rancoroso diante das perdas, lugar de privilégios. Os programas de transferência de renda e de cotas para
negros, indígenas e alunos de escolas públicas promoveram a redução da
desigualdade social, causando desconforto às classes abastadas. Na verdade, o
brasileiro sempre cultivou o gosto pela hierarquia social, o que coloca a
igualdade de direitos na ordem do insuportável. A desigualdade, em nossa
cultura, sempre foi vista como natural, e a forma injusta e violenta com que as
classes dominantes tratavam os pobres, um direito. Aos filhos das domésticas e dos
porteiros restava um lugar social já definido, enquanto aos filhos de médicos,
herdeiros de uma posição social privilegiada, eram reservados os melhores
cargos no mercado de trabalho.
Para os fragilizados pela estrutura social injusta, a esperança de
mobilidade social era vista como uma loteria, poucos conquistavam
reconhecimento e boas condições de trabalho. O ódio se deve, muitas vezes, às
mudanças operadas por programas de distribuição de renda que rompem com o gueto
social a que o país estava condenado. Havia uma situação confortável, a
concorrência desleal garantia, em terra, o paraíso sonhado. Mais vagas nos
vestibulares e nos empregos. Em casa, boas empregadas por baixos salários. Com
o aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores de baixa renda, uma nova
estruturação social surge, o que não é bem visto pelos conservadores - revoltados
com a perda do lugar de distinção social. Com isso, a inclusão social como fator
de luta é hoje uma realidade na agenda do brasileiro.
Como não aplaudir os avanços sociais que nos aproximam do Primeiro Mundo?
Contudo, o que temos é um movimento descabido, insano e inconseqüente por parte
de uma parcela da população. Muitos, numa postura obscurantista, destilam o ódio
diante das mudanças que rompem a separação geográfica entre negros e brancos,
ricos e pobres. Sem debates nas escolas ou outros fóruns de discussões que
possibilitam aprofundar as questões envolvidas, dificilmente iremos abandonar o
reducionismo dicotômico - forma banal de analisar o momento histórico em que
vivemos.
Como reconhecer o outro que sempre esteve distante, o diferente, como
igual? E como aceitá-lo como um concorrente em pé de igualdade? Enquanto o país
vivia a segregação social, a ira estava contida. Na verdade, poucos reconhecem
a importância de se corrigir as injustiças sociais causadas pelas classes
economicamente privilegiadas. Oliver Thomson em A assustadora história da maldade, adverte: “A segunda maior área
de ilusão cumulativa tem sido a justificativa da desigualdade econômica,
resumida no dístico medieval “O rico em seu castelo/O pobre no portão”. O que
começa com uma ética que recompensa diferentes membros de uma sociedade em
diferentes níveis, dependendo do valor de sua contribuição, em geral evolui
para uma indefensável justificação de desigualdades permanentes”.
Muitas famílias, escolas e faculdades abandonaram o discurso da ética e
da cidadania. Preferiram, de forma obsessiva, se ocupar com a preparação para o
mercado de trabalho. Trocaram a lógica dialética pela lógica formal,
operacional. O debate de idéias não ocupa mais as agendas universitárias.
Aderiram às pressões do mundo técnico. Com isso, a educação está abrindo mão do
espaço de formadora de cidadãos, aquela que prepara para uma convivência
saudável entre valores contraditórias e discordantes. A polêmica e o conflito
são formas de expansão do pensamento. O caráter negativo de focarmos apenas as
matérias técnicas é o distanciamento dos jovens em relação à essência humana.
A maldade não brota do nada. O rancor expõe insegurança, infantilismo,
inveja. Ele é lançado sobre o outro que nos incomoda, provoca. A fúria tenta
impedir que desfrute da posição que
conquistou. Mais que ódio, rancor é sentimento que se guarda e, ao ressurgir, volta a atacar. Educar implica ensinar
a ganhar e a perder. O fracasso é parte da condição humana. No deserto, longe
dos bons sentimentos, a moçada solta o leões exigindo privilégios historicamente
petrificados. [1] Artigo publicado em 6/09/2014 no caderno Pensar do jornal EM. Inez Lemos é psicanalista.
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