Bem-vindo

Amor urgente e necessário chega de graça,
e entusiasma a alma.

domingo, 11 de agosto de 2013

LOUCA POR TRANSCENDÊNCIA


           Maria é nome suspeito, plural e mulher precisa do singular, lugar próprio para existir. Marias são muitas: rezadeira, sonhadora, costureira, pecadora. Pensa na mãe: tirana - me fazia de gata borralheira, empregada. Onde vou resolver minhas aflições, dependurar o desejo de mulher, sonhos femininos, profanos? Maria se valia da solidão, do lugar invisível que a casa lhe destinava. Queria fugir, seguir pulsão, libido, pressão. Temia o fracasso, sina feminina: viver exige mais, mulher tem que fundar enredo próprio. Maria se sustentava na cozinha - as panelas não a deixavam desabar. Nelas acalentava fantasias, encontrava substância para a escrita, se reconhecia. Maria se ancorava nos fragmentos – pé de tamarindo, broa de fubá, biscoito frito. Como garantir leis próprias, transportar as marcas, as entranhas que a vida no mato lhe proporcionava? Queria gostar do seu destino, queria ser dona do seu futuro: Essa menina parece homem, precisa aprender a ser feminina e delicada. Praga de mãe repercute, faz eco, abre crateras e funda abismos. É a partir da raiva, da corrosão que ela lhe causava que Maria pensava, falava e escrevia. Mulher, que destino é esse? Apenas uma palavra solta num mundo regido por homens. Maria nasce das ruínas, lugar maldito e destituído pela mãe: Ou casa com homem rico, ou vai ser freira. Santa ou madame - escolhas que recusava, profanava. Do abismo retirava forças para escolher outra filiação, não ser liquidada pelas profecias da família: dinheiro, maldição de fazendeiro. Delirava com outros mundos: livros, socialismo, feminismo, marxismo, psicanálise. A missão era se libertar das chagas, buscar o avesso das coisas. Precisava se encher de sentido, estancar o tédio dos enricados. Sabia que se encontraria na dor, fugir dela seria crime - desperdiçar pistas, abandonar a investigação: viver é desfazer nós, desvendar segredos. Deixar doer. Mulher é sanar feridas.
Maria chega à cidade atravessada de sertão – suas metáforas e magias. Córregos, cachoeiras, paineiras. Desde pequena procurava sua grota. Sabia que mulher carrega grotas profundas que, não tratadas, faladas e ouvidas, a enlouquecem: eu me sentia um embornal, a sacola dos tropeiros onde sempre havia prendas - bolo, carne seca. Sei guardar preciosidades, fantasias que, nesse mundo de plástico e mochilas da moda, interessa a poucos. Temia desgarrar-se de suas veredas, lavoura arcaica: viver é se embrear. Na cozinha Maria voava, transcendia. Taioba, sexo, fubá. Misturava desejo de mulher com mania de mãe. Casa, comida, fogão a lenha. Descobriu que a mulher, antes de querer gostar de plantar taioba e pimenta, precisa cansar de sexo. Precisa desacreditar de amor eterno, de carícias de homem: cozinha é para depois da cama, quando se esgota a alma iludida, lasciva. Maria já ferventou amores, fritou esperança: mulher sonha, sonha alto. De repente acorda, coloca os chinelos e vai colher taioba. Ser mulher é profanar pecados. Maldição boa. Queimar a alma na panela de ferro, desejo iluminado que transcende. Arrepiar, chorar e lamber lágrimas - quem não chora não sabe ser feliz. O choro prepara o rosto para o riso. Chorar levanta a pessoa, desperta emoção que cochila - cura tristeza, mau olhado e desesperança. Na cozinha, picava cebola, fazia angu e... pulava cercas e currais.  Precisava esquecer brutalidade de homem - acolher a revolta, transgredir. Aborrecida, encerava casa, amassava pão de queijo. Redenção? Só nos romances íntimos: vida sem intimidade não vale - só vale quando falamos daquilo que nos faz chorar ou gargalhar. Coisa que, ao falar ou ouvir, amolece a gente. Ficava mole de tanto sentir. Buscava intimidade em tudo - nas histórias de família, na chaleira envelhecida, na fruteira de cristal. Vasculhava pecado, remorso e arrependimento. Baú de segredos, buraco escuro onde guardamos os cacos – sobras pujantes de um passado de erotismo, inveja, raiva e paixões. Sentimentos embrulhados em veludo vermelho, cheirando a Madeira do oriente, perfume de tia vaidosa.
Hoje, Maria quase não vê lugares de memória, é tudo descartável. Quando quer se encontrar, perder-se em devaneios e atavismos, visita museus. Poucos gostam de rememorar, revisitar intimidades: intimidade a gente só fala pra amigos de verdade. Não é coisa pra se exibir no facebook. Quando a gente se abre todinha, sem reservas, perdemos a defesa diante do outro. Mulher tem que saber sentir e saber mostrar. Saber distrair as vozes diabólicas que pulsam, pressionam. Ser mulher é pelejar com as intermitências do coração. Coração guloso que deseja todo o tempo. Mulher não sabe economizar sentimentos, esconder fantasias. É bicho atormentado, insatisfeito.
Maria é mulher antiga, não tem facebook, nem mania de shopping. Acha as moças da cidade todas iguais. Não sabem variar, brincar com as emoções, explorar cavernas. Sedução é pra ser cavoucada - beleza que vem da estrela que cada um carrega, brilho próprio. Não é Botox, lipoaspiração. No fogão descobriu felicidade simples - como se iludir com o possível. Trabalhar com as mãos é fazer o caminho de dentro - tortuoso, esburacado, côncavo. Trabalhar só com a cabeça deixa a alma fria, desidratada. Viver é desvelar sabedorias - todos têm, ela busca.
A vida que a gente escolhe é a que aprendemos a gostar desde pequena. Aventura humana que se cozinha na subjetividade, temperada com lágrimas, risos e garra. Força que brota de dentro, como a taioba, que nasce da terra molhada. Maria reverenciava a vida, encarnava as mulheres que não abandonaram o desejo no tanque: desejo é promessa não cumprida, é fantasma que não desaparece. Na cama ou na cozinha, é sarna que não termina. Fardo. Além da dor de existir, carregava as contradições do mundo: capitalismo, machismo, racismo. Para os irmãos, bicicletas, motos. Mulher se diverte na cozinha, enrolando rosquinha. Só teve uma boneca na infância. Mesmo assim, o irmão, quando resolve exercitar os dotes de futuro médico, a mutila com ferro do pai marcar boi. Como se proteger das invasões fraternas e machistas? Os irmãos abusavam de Maria com o beneplácito dos pais. As brincadeiras, sempre agressivas, abriam um abismo em sua fragilidade cor de rosa. Descobriu que ser mulher é coisa pra macho. É peleja pra vida toda: feminino é sentimento insatisfeito que não cessa de incomodar. Gostava de debruçar a alma gulosa, fragil, cutucar abismos e arranhar sentimentos. Depois de muita decepção, recolheu as fantasias que excediam - desejos inoportunos. Mulher fraca é insuportável, tem que fingir indiferença.
Demissionária da posição submissa, da loucura feminina quando não tratada, firmou pé: ser mulher é se reinventar, é construir identidade, conquistar poder. Descobre que só havia duas opções: se fazer mulher brava e determinada, ou enlouquecer. Submeter-se, jamais! Maria foi estruturada na raiva. Precisava receber, recuperar substância, intensidade. Olhava a cidade e sentia o cimento dentro. Necessitava curar o vazio: enquanto os carros correm, eu urro por dentro. Estava pronta para a vida com poesia, senão seria se extraviar, naufragar. A salvação viria da riqueza simbólica - divindade através das palavras. Abandonar de vez as futilidades, característica das cidades do interior paulista. Ar parado, respiração ofegante - tonteira diante das vitrinas. Abundância, tédio, vácuo. Nada transcendia aos arranha-céus. Paisagem de pouca sombra, curva e metafísica. Aridez. A atmosfera seca das pessoas desidratava os miolos. Ficava aflita de tanto desejar outro mundo. Atordoada pelos berros de dentro, simulava fugir - jogar a mala, pular a janela e descer pelo coqueiro. Vasculhar novas veredas, descampar outros sertões - vida de rico é pequena por dentro, só é esticada por fora.
Como se encontrar nas mulheres invisíveis deste país, longe do reino das botas e botinas? Rezava por desespero; a mãe gostava de rezar, ela, de nadar. Mania de mandar os outros tomarem banho. Achava que, se lavando por fora, se lavava também por dentro. Um dia descobre que, para lavar a alma, precisava de mais coisas além de água e sabão. Maria não acreditava em bondade bobinha. Desconfiava do calvário feminino, lugar instituído pela mãe: Mulher tem que aceitar a cruz, fazer mortificação, se entregar ao sacrifício. Vaidade pura, humildade é gostar de aparecer pelo sofrimento. Recusava, aos olhos dos outros, ser reconhecida como heroína. Não queria ser exemplo pra ninguém, apenas inventar a si mesma: precisa mais? Uma Maria entre tantas: cheia de graça, sem graça, sem santidade e sem véu. Desvelada. Pecados todos têm. Família é lugar de injustiça. Quando muitos filhos, o amor não dá para todos. Sempre falta: mãe gosta de dar mais amor pra filho homem. Mulher, na roça, tinha que se virar com o amor dos animais. Admirava as galinhas - alegres, assanhadas, histéricas: porco é preguiçoso, sujo, lambancento. Cavalo, macho elegante, nasceu pra conquistar. Há homens que conquistam só de chegar e olhar. Até dói.  Gostava de homens e de cavalos.
Com a magia dos rios no peito, escrevia para desatormentar a dor, sustentá-la na esperança: não se pode matar a angústia, ela carrega sinais que nos salvam e nos garantem voo ontológico. Era encantada com as palavras. Existem palavras moles e palavras duras. Com elas esvazia-se a alma incendiária e faz-se belezuras. Sua diversão preferida era sentir: hoje as pessoas preferem comprar que sentir e gostar. Ficava molhada de tanto sentir - arar o passado, apaziguar fantasmas, diabruras subterrâneas. Fantasias que nos protegem da loucura. Como se abastecer de histórias em que cochilam vivencias consistentes e saborosas? Maria não conseguia olhar para as panelas e não ver transcendência. Cozinhar é produzir sentido - colocar de molho sentimentos, palavras. Temperar, junto com a carne, mágoas e ressentimentos. Marinar consciência, preparar o perdão. A história que ensaio contar é tecida na brasa - fogo que arde, emoção que afaga e toca um pedaço do céu. O encontro da mulher com a verdade, a linguagem certa para nela se afirmar. Quando isso acontece, é epifania, alegria esfuziante.  

Inez Lemos

                                                                                                                                                                

Um comentário:

Amores Urgentes disse...

Amei, amei, amei o seu texto.
Ja li cinco vezes e cada vez me vejo mais nos sentimentos da Maria...
Viver e desfazer nos...mulher e sanar feridas...mulher e coisa pra
macho!!!!!!! Divino.
Obrigada pela maravilha.
Um abraco,
Yara Dalva