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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

CIVILIDADE E FELICIDADE

Inez Lemos

O dever de felicidade marca a nossa era e pauta o sentido de viver. Freud, em O mal-estar na civilização, nos lembra que a felicidade é sempre uma aspiração, um desejo negociado entre os limites impostos pela cultura. Significa que, para viver bem, devemos aprender a renunciar às pulsões - domar os impulsos que insistem em nos comandar. Talvez aqui resida uma das questões chave para se atingir, senão a felicidade, pelo menos uma vida sintonizada com sonhos e convicções. Contudo, o que presenciamos, muitas vezes, é a desarmonia, desencontro entre o que gostaríamos de viver e o que vivemos. Lembramos que o compromisso do projeto civilizatório é com o progresso, não com a felicidade dos homens. Não faz parte do plano se ocupar com os aspectos subjetivos da humanidade.

Com a passagem do sistema capitalista de produção centrado no trabalho para o sistema de produção centrado no consumo, é estratégico vender o ideal de felicidade como dever e obrigação. Logo, os mentores deste modelo de civilização perceberam que o caminho para o Éden deveria tornar-se livre. Permitir e não coibir, eis a receita da promoção do gozo eterno. Assim, caso fraquejemos em nosso propósito de felicidade, toda a responsabilidade recai sobre nós. O furo está justamente na crença de que o caminho a percorrer é o estabelecido e propagado. Não é de bom tom expor infortúnios, assumir os fracassos. Demonstrar alegria se tornou sinônimo de polidez. A herança do maio de 1968 culmina com a liberação para viver o desejo sem restrições. Na esteira do “proibido é proibir”, acabamos sob a tutela dos exploradores da libido - trocamos qualquer possibilidade de sofrimento pela tirania da felicidade. Esquecemos que o sofrimento salva a existência, como disse Simone Weil.

Aos insatisfeitos à determinação maldita de felicidade, à sobrevida vegetativa a que estamos condenados, cabe desafiar a crença de que só há felicidade possível se seguirmos a humanidade consumista e moribunda. Como sair do que Henry Miller, num rompante agressivo contra a América, chamou de “o pesadelo refrigerado”? Ao nos submetermos à razão mercantil e corrosiva que destrói o sentido da vida, quando as coisas importantes não mais nos interessam e o que nos interessa são as coisas desimportantes, nos tornamos servos embriagados de falsa sedução. Escravos dos mestres que nos querem assujeitados e fragilizados. Como testemunhou Raoul Vaneigem, um dos críticos de 1968: “Não queremos saber de um mundo onde a garantia de não morrer de fome deve ser trocada pela certeza de morrer de tédio”.

E agora, moçada, como resistir ao triunfo do consumismo se sabemos que ostentar objetos de consumo não é sinônimo de civilidade? Dirigimos carros importados e jogamos lixo na rua. Estacionamos em fila dupla - convictos de que esse é um direito, lançamos o olhar cínico da arrogância. Estimulamos a esperteza, adoramos nos sentir privilegiados e tratados com deferência - detestamos a igualdade. Como conciliar grana com elegância, ética com poder?

O antropólogo Roberto DaMatta, em Fé em Deus e pé na tábua, ao analisar o comportamento competitivo do cidadão brasileiro, relaciona-o com as estruturas hierárquicas e concepções imobilistas - viés racista e aristocrático: “O cão do senador tem mais direitos do que o do cidadão anônimo. Saber de quem é o relógio Rolex faz com que os policiais trabalhem com mais afinco e eventualmente o devolvam ao seu dono”, escreve ele. Não gostamos de obedecer às leis - a obediência nos coloca na posição de igualdade, enquanto a transgressão traz o gosto da superioridade, lugar diferenciado. Obediência à lei exprime subordinação social e revela confusão entre obedecer às pessoas e à lei. Geralmente, o cidadão de classe social elevada se sente humilhado quando coagido a se portar igual aos demais. Muitos se revoltam e agem com brutalidade. O uso da violência é visto como direito de muitos bacanões que dirigem alcoolizados e armados. O exercício da brutalidade nos remete ao passado escravista, que associava as posições de poder com o direito à agressão ao inferior. Para quem dirige um Porsche, pedestre não passa de zé ninguém.

Arrogância cínica é necessidade de se sentir superior e deflaga a superficial igualdade republicana - forte matriz aristocrática e hierárquica. “O carro é uma prova de que as pessoas existem concretamente no mundo como proprietários de personalidades que, além de terem emoções e sentimentos abstratos, se afirmam material e indiscutivelmente nos objetos e por meio das coisas que possuem” (Da Matta). A democratização do consumo tem despertado ira entre as classes historicamente abastadas. Muitos se indignam com a ascensão social da classe C, que hoje circula motorizada, frequenta aeroportos, bons supermercados e universidades. Invade espaços anteriormente reservados aos bens nascidos. Se desigualdade social é incompatível com desenvolvimento, não deveríamos aplaudir tal acontecimento? Uma família com maior poder aquisitivo tem mais chances de educar melhor os filhos, desde que esta seja a prioridade: inserir a criança na civilização e nos bens culturais.

O Brasil nunca foi um país de leitores, o mercado editorial jamais configurou entre os mais rentáveis. Atualmente, seu crescimento realiza-se principalmente no gênero autoajuda. Cada vez mais, os letrados escasseiam. Lamentamos o crescimento econômico desvinculado do avanço cultural e educacional. Bombamos no bolso, mas não na cabeça. Contudo, o afã pelo consumo se tornou característica nacional e mundial. Os jornais noticiam: seja em Nova York ou em Paris, consumidores, debaixo de chuva, fazem fila diante da loja da Apple para comprar o iPad 2, a nova versão do tablet.

Será que, quanto mais sofisticamos por fora, mais regredimos por dentro? É claro que essa não é uma equação direta e determinante. Mas, ao se tratar de cultura de massa, quando o jovem (de periferia ou de Zona Sul) direciona a maior parte do salário para o consumo de bens supérfluos – gastos com telefonia celular, roupas, produtos de beleza -, ele registra nas escolhas sua posição. Muitos julgam absurdo gastar com livros e cursos, mas não se indignam em torrar dinheiro com grifes.

Ao vincularmos violência, empobrecimento intelectual e aumento de consumo, atribuímos à educação valor existencial e transcendental. Educar é estimular o interesse por maior densidade interior. A convivência excessiva com a matéria atravanca o mergulho nas entranhas - viagem pelos caminhos da interioridade. Outrora, a aquisição de um objeto era orientada mais pela necessidade. Os objetos apresentavam valor de uso. Hoje, são símbolos de poder e ostentação - ir às compras tornou-se sinônimo de inteligência e entretenimento.

Sonhar com um objeto de consumo era tarefa árdua - que estratégia se deveria usar no convencimento dos pais? Mas se tornou comum os pais se renderem na primeira manifestação de desejo do filho por quinquilharias. Ao realizar o sonho rápidamente, a criança encerra o desejo e interrompe a viagem articulada à fantasia. O raciocínio perde o fio condutor, o elo entre desejo, pensamento e emoção. Quanto mais facilitarmos a vida das crianças, fazendo por elas e impedindo-as do contato com o experimentar, menos elas entram em contato com a emoção, a inteligência e a criatividade. A erotização no saber se realiza quando o conhecimento nos chega vinculado a passagens subjetivas. Quando diz do sujeito e sua relação com o mundo. Sem eros não há grandes pensadores.

Em Escritores criativos e devaneio, Freud aprofunda a discussão sobre a sublimação. Que destino daremos à renúncia pulsional? Como manter a posição desejante, uma vez que a civilização nos obriga a abrir mão de algumas satisfações? A arte é uma boa escolha na sustentação da pulsão, o que nos mantém vivos e estimulados. Contudo, podemos dar outros destinos à pulsão, traçar outros vínculos para os filhos, uma vez que a fonte do impulso criativo reside em alguma fantasia inconsciente. Buscamos, ao longo da vida, formas simbólicas que representem o objeto perdido – as experiências de satisfação que nos marcaram. Para que a criança entre em contato com a fantasia, ela requer um ambiente que propicie visitar alamedas subterrâneas.

“A relação entre a fantasia e o tempo é, em geral, muito importante. (...) O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito”. Aqui, Freud nos ensina: na fantasia, o sonhador tenta reconquistar o que possuiu em sua infância feliz. A sublimação ajuda a suportar a dor e o vazio existencial. No devaneio, abandonamos a vida cáustica e ganhamos gratificação na superação da incompletude. Tratar o caos interno com coisas belas é enlaçar, de forma erótica, o objeto de desejo - conferir alegria no fazer e no saber.



[Artigo publicado em 16/07/2011 no caderno Pensar do EM.

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