Bem-vindo

Amor urgente e necessário chega de graça,
e entusiasma a alma.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

CRÔNICA DO DESESPERO ANUNCIADO

Inez Lemos

Bullying, fanatismo, misoginia, psicose. Como debater a tragédia de Realengo em meio aos significantes usados para explicar o que motivou Wellington de Oliveira a invadir uma escola, matar 12 crianças e se suicidar? Um psicótico desarmado não representa tanto perigo. O perigo se dá quando um indivíduo revoltado e angustiado sai pela rua armado tentando sanar a dor – ferida narcísica que sangra e faz sofrer. Ao tecer nosso fel moralista e de horror diante de barbáries, devemos questionar se essa não é outra tragédia anunciada. A sociedade brasileira votou em plebiscito contra o desarmamento. A maioria escolheu o direito de comprar armas para se defender. Infelizmente, Wellington usou a mesma estratégia para vingar dos que representavam, em seu delírio, o mau – escola, colegas. O psicótico delira com o imaginário social em que está inserido, ele não fabrica devaneios do nada. Episódios assim expõem os valores em que os jovens são educados. Onde estão se espelhando? Quem são seus mestres? A maioria segue, madrugada adentro, os gurus cibernéticos. A internet vetoriza, instrui e comanda obsessões e delírios. O psicótico opera em busca de algo que supre a referência paterna – religião, seitas, mestres. Wellington, ao demonstrar preferência pelos animais, reprova o ser humano. O que o levou a se identificar com os bichos? Ao sofrer bullying, sentiu-se um vira-lata? Ex-alunos da escola, colegas de Wellington, lembraram que a turma, principalmente as meninas, “zoavam” dele por ser feio e esquisito. E reforçaram: ninguém gostava do rapaz. Bullying, do inglês, ameaçar, oprimir, arreliar. A prática de agredir o outro, desrespeitando-o e fazendo chacota de seus pontos fracos, revela arrogância e violência. Traços da sociedade desigual que não suporta a convivência com o diferente. O indivíduo feio, velho, negro, pobre e homossexual será sempre merecedor de desdém do branco, loiro, rico e bonito. Contudo, não caberia perguntar como nós, adultos, estamos agindo diante das crianças? Como surge a idéia de “zoar” o outro? Sem perceber, acabamos alimentando tais comportamentos. A tragédia de Realengo também deve ser vista como exemplo da violência escolar, uma vez que o ódio foi gestado dentro da escola, quando colegas o flechavam no coração, com descaso e preconceito: “Sai daí seu feio, quando um queria sentar no lugar em que estivesse ocupando”, lembra um ex-colega. Wellington escolheu o alvo, buscou em cada rosto bonito a vingança adiada. Em cada tiro depositou a esperança da redenção, alívio do ressentimento guardado há anos. O psicótico armado representa perigo, assim como um coração magoado, ferido em sua mínima dignidade, pode se transformar em arsenal de revolta. Sabe-se que uma das garotas que mais molestava Wellington se sentia excluída entre as bonitas por ser gordinha. Agredir Wellington era uma forma de adesão ao grupo dos bem nascidos. Na verdade, “Narciso acha feio o que lhe é espelho”. A escola e a família espelham a sociedade e dividem o mesmo tecido social. Portanto, são agenciadoras de violência. Bullying é instrumento de desforra, demonstração de poder utilizado, muitas vezes, para destilar o fel acumulado em ambientes competitivos, sórdidos e desrespeitosos. A instituição escolar, com suas mazelas humanas, provocou em Wellington o desejo de acabar com seu inferno - fogo que dilacera almas desamparadas e solitárias. Do lugar de dejeto, Wellington delirou o momento de notoriedade - por bem ou por mal, vão me reconhecer e admitir minha existência. Há muito os jovens estão anestesiando a solidão na internet, instrumento de sobrevivência das sociedades de massa. A imprensa se mobiliza em busca de saídas - todos anseiam por receitas na tentativa de se evitar outras tragédias. Vítimas de abandono e bullying, alunos feridos em sua dignidade e molestados na alma merecem escuta cuidadosa. Como dar ouvidos às diferentes formas de clamor por carinho e atenção? Como evitar que o colega escancare ainda mais a dor do diferente? Não é hora de a instituição escolar abrir espaço em sua agenda e debater com a comunidade escolar em que sociedade gostariam viver? Ao incluir em seus conteúdos os sintomas que rondam a vida de seus alunos, a escola dá provas de que educa para a vida, de que seu compromisso é com a ética do bem viver. E não apenas com os resultados apregoados pelo mercado – garantia de futuro financeiro promissor. Podemos confundir prioridades ao dar relevância a ações que fogem ao papel de uma escola. Sabemos que, hoje, estudar é festa. A garotada, geralmente, vai munida de gadgets para exibir aos colegas, enquanto os pais desfilam carrões na porta e disputam, de forma arrogante, a fila dupla. Melhor não seria a escola debater o consumo e suas vicissitudes, investigando as implicações para um adolescente de valorizarmos tanto os objetos? Estaríamos gostando mais de coisas que de gente? Podemos ajudar a minimizar a violência entre os jovens, basta sermos mais atenciosos e delicados com o diferente, o outro, que, sutilmente, excluímos de nosso convívio. Poucos perdem tempo com rebotalhos, os olhos da maioria se voltam para os jovens, bonitos e saudáveis. Chega de hipocrisia. A violência diminuirá quando gentileza, respeito e tolerância ocuparem o lugar da arrogância e da maledicência. Quando tivermos olhos dignos para os gordos, velhos, feios e pobres. Basta priorizarmos mais as pessoas, promovendo-as a gente. A beleza da vida está na forma espontânea e natural com que crianças são educadas. Bartolomeu Campos Queirós, em Por parte de pai, lembra-nos da infância e da vida escolar no interior de Minas. Uma ode aos bons sentimentos, reverenciando a emoção que brotava da terra bruta, nos quintais e fogões a lenha. Do convívio com os avós, das relações de amizades e confiança. Bem diferente do convívio com disputas, competições e estratégias de poder. “Filhos de muitos ofícios – pedreiros, lavadeiras, professores, médicos, motoristas, órfãos – e sem inquietações pelas diferenças, nós nos gostávamos em silêncio, vencendo o destino sonhado, um a um. E o recreio era o lugar das trocas: bolo por araticum, maça por manga, goiabada por chocolate, banana por doce cristalizado. E assim experimentávamos o gosto da vida do outro, sem reservas. A nossa diferença era a nossa alegria”. Acredito que Bartolomeu, em seu belo livro, toca na ferida que, provavelmente, motivou o ex-aluno a voltar ao local do crime, uma vez que ele saiu da escola com a alma machucada, violentada, destroçada. Vivemos numa sociedade que ensina às crianças, desde cedo, não trocar, não perder. Nosso filho deve ser o melhor da classe, o mais bem vestido e preparado para ganhar o futuro. A infância, no espírito da colaboração (e não da competição) estimula o bem e o belo, como foi a de Bartolomeu. Desde menino, era provocado pelo avô, que cultuava palavras. E as conservava nas paredes de casa, tal como conservamos jóias. Conservar, guardar o que nos toca, emociona e diz ao coração. “Todo acontecimento da cidade, da casa, da casa do vizinho, meu avô escrevia nas paredes...As paredes eram o caderno do meu avô. Cada quarto, cada sala, cada cômodo, uma página”. Do reino das palavras nasce o escritor - alguém que rompe a solidão com pensamentos, transforma a vida simples em personagem de várias histórias. Somos movidos por aquilo que nos toca fundo. Bartolomeu foi cutucado pelo amor do avô, e com ele fez ouro. Na cultura do “bateu-levou” todos querem ganhar a parada, ninguém aceita perder. Se um indivíduo esbarra no carro ou olha para a namorada do outro, corre o risco de levar bala na testa. O clima de faroeste já se instalou. Não é de hoje que julgamos normal a violência – homofobia, eugenia, misoginia. Enquanto procurarmos fora de nós os responsáveis pelas tragédias que nos envolvem, dificilmente iniciaremos o processo de mudança. Wellington é fruto da cultura da beleza. Narcísica e consumista, celebra a boa aparência e desmoraliza a fealdade e a velhice. Enquanto ensinarmos os filhos a passar a perna no outro, furar fila, não assumir compromissos, a não respeitar serviçais e esquisitos, corremos o risco de, cinicamente e estarrecidos em poltronas, assistir a massacres e chacinas. A banalidade da vida é conseqüência do desprezo pela alteridade. Não seria melhor repensar escolhas, revendo opções, conceitos e posturas? Confinamos os jovens diante de máquinas, oferecendo-lhes uma vida fria, empobrecida de gente, de trocas e amizades. A pior solidão é não ter densidade interior para se envolver – ser incapaz de povoar a vida com a própria mente. A carta do assassino, o monstro solitário, revela o desespero de quem vive isolado e sonha em ser lembrado, reconhecido.

Inez Lemos é psicanalista e autora de: Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (Autêntica). Vive em BH e é colaboradora do caderno Pensar do jornal EM. [1] Artigo publicado em 18/04/20011 no Caderno Pensar do EM.

Nenhum comentário: