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quarta-feira, 16 de março de 2011

FAMÍLIA E FUNÇÃO SOCIAL

Inez Lemos

Pais separados, lares monoparentais, recasamentos, filhos criados entre não irmãos. O estatuto da família mudou. O mundo moderno tornou-se o lugar em que narciso deita e rola. E dificulta a tarefa do pai e da mãe, que, diante de ofertas sedutoras e exigências de consumo, beleza e visibilidade, se desesperam. A luta hoje é por reconhecimento e prestígio social. As demandas dos pais por resultados imediatos geralmente os impedem de olhar para os filhos como seres de sentimentos - muitos se esquecem de que, quando envolvem filhos, os direitos individuais tornam-se suspensos e reduzidos.

A vida moderna também não é fácil para os homens. Muitos pais se sentem desqualificados diante dos filhos por não conseguirem atender suas exigências de consumo. Inicia-se o processo de culpabilização, atribuindo somente a eles a responsabilidade de fracasso, quando ela é também social - desemprego, crise econômica. Pressionados, os filhos são vistos mais como fardo que como fonte de prazer. Família é lugar de alegria e sofrimento. Não deve ser administrada na lógica empresarial - custo/benefício.

Vários fatores contribuem para a separação dos casais. A insegurança nas relações se ampliou tanto no contexto afetivo como social. Que amanhã nos espera? O desafio está em descobrirmos saídas que não nos oprimam. No fundo da questão, há a idéia de felicidade, que, contaminada pela lógica economicista, vicia o olhar da família. A anatomia das relações afetivas, quando envolve pais e filhos, revela distorção nos valores e na forma de conceber o mundo. Outrora, filho representava orgulho, era visto como o herdeiro de um nome, alguém que daria continuidade ao legado familiar.

A questão financeira era tratada de forma discreta e se restringia ao âmbito da família. Não era comum contabilizar os custos da educação da prole - hábito que hoje se tornou corriqueiro. Como podemos desejar jovens menos interesseiros se os educamos mais voltados para a conta bancária que para a conta da satisfação? Se o sentimento que cultuamos é o da competição, do levar vantagem a qualquer custo, como podemos esperar posturas generosas e amigáveis na hora em que eles, já casados, resolvem se separar?

A educação para o sucesso é um dilema ético para algumas famílias e instituições educacionais. Muitos pais exigem a educação patrimonialista calcada na desigualdade social e na prevalência do privado sobre o público. Algumas escolas justificam que aboliram do currículo o debate sobre cidadania por julgar relevante focar apenas nos conteúdos cobrados no vestibular. Espelhados no imaginário que circula na arena política, quando domina improbidade, e atentos aos rumos que a sociedade vem tomando, há pais confusos e questionando a educação embasada nos nobres princípios de honra e honestidade. Quando família e escola, imersos no dilema ético-pedagógico, colocam em cheque questões dessa ordem, algo na concepção de Nação fracassou. O ideal republicano, simbolizado na Declaração dos Direitos Humanos, ao operar no inconsciente do cidadão, requer sustentação nas práticas sociais.

Na verdade, o dilema ético é falso, pois o sujeito que cresceu cultuando valores, como honestidade e respeito à coisa alheia, sabe que postura e caminho abraçar. Até que ponto as mudanças no contrato social e as condutas ético-políticas indicam transformações na subjetividade? Como repensar a família e a escola num contexto social e político esgarçado? Todo discurso necessita de um sujeito que o sustente. Não existe subjetividade avulsa, autônoma. A subjetividade, aquilo que expõe a conduta humana, constitui-se como efeito de discurso e de significantes. E, ao se promover no laço social, coloca o sujeito articulado aos pais e aos significantes. Família, escola e política - como desarticulá-las dos significantes de desonestidade e enriquecimento ilícito?

A lógica centrada na usura, no ideal de progresso material, no ganhar e vencer a qualquer custo respinga nas famílias. Assim posto, é de se esperar que alguns casais, ao se separar, tenham condutas de revanchismo e vingança, cada qual marcando território e poder. O Estado, por meio da justiça, só é convocado quando fracassa a ética na família – casais em que impera o espírito de competição e não de cumplicidade e colaboração. Resistente e ressentido com a separação, o parceiro inicia o processo de chantagem e manipulação. Sem escrúpulo, usa o filho em sua jornada de vingança, colocando-o contra aquele que pediu a separação. Nesse momento, os adultos, seja o pai ou a mãe, agem de forma infantil e inconseqüente. Pais magoados e rancorosos destilam ressentimentos sobre os filhos. Quando envolvem vinganças e condutas perversas, separações provocam sofrimento psíquico nos filhos, comprometendo seu futuro.

A questão não está na separação, mas no despreparo do indivíduo para enfrentar perdas e frustrações. Ninguém gosta de perder. A sensação de desvantagem, embora avassaladora, é da condição humana. O sentimento de preterido pelo outro é cruel. Essa dor nos derruba, deixando-nos com gosto de morte na boca. Com a alma seca, mendigamos afeto e amparo. Perder é se ver cara a cara com os limites da vida.

É importante lembrar que, para a criança, não existe pai ou mãe ruim, ambos são queridos e devem continuar sendo merecedores de um lugar no coração do filho. Cabe à mãe instituir o pai ao filho, é ela que o apresenta a ele, portanto, a imagem que o filho tem do pai é constituída enquanto tal pela palavra da mãe. Contudo, muitos pais não poupam os filhos e os envolvem na pletora de brigas e revanchismos. A separação de casais, por envolver crianças no conflito, é questão que o direito de família trabalha na interface com a psicanálise.

Ao reforçar a importância do direito na defesa dos interesses das famílias e na proteção dos direitos dos filhos, aplaudimos a Lei da Alienação Parental, que pune os responsáveis pelas crianças – mãe, pai, avós – que agirem desqualificando e dificultando o contato do menor com um dos responsáveis. Lembramos que o direito do filho ao carinho dos pais é inalienável.
A partir do século 18, com o iluminismo, o direito passa a ser identificado com a lei. A proposta, embora retome aspectos do direito natural e defenda a liberdade individual, acaba por privilegiar a razão, reduzindo o viver em sociedade num governo de leis, e não num governo de homens. Portanto, se a lei é injusta, se ela favorece os interesses dos pais e não da criança - se o que ela reza compromete o desenvolvimento cognitivo e psíquico, pouco importa. Essa é a vontade da lei, da razão científica. O racionalismo científico, em sua vertente positivista e não dialética, revela a face cínica - manipula e defende interesses escusos. E deve ser enfrentado numa perspectiva multidisciplinar. A questão é interrogar o sujeito que, imerso num rancor perverso, julga natural prejudicar o filho comprometendo sua saúde psíquica. Muitos, enlaçados num narcisismo patológico e mergulhados num gozo eterno, julgam-se donos da verdade.
O princípio de liberdade individual preserva a família e os filhos numa ordem ética e jurídica, independente dos caprichos de esposas e maridos. Talvez o deslocamento do familismo para o individualismo explique os conflitos nos processos de separação – momento em que modernidade pode representar mais perigo que salvação. A família é muito mais que organização biológica, transcende o grupo doméstico e penetra no campo simbólico.

Grande parte do que somos é efeito da convivência familiar. Nos lares monoparentais, geralmente, há excesso ou falta de mãe. Mães que não são barradas em seu desejo em relação ao filho ou que o abandona nas mãos de babás e escolinhas. Como diferenciar o impulso de se ter um filho do desejo de cuidar e se dedicar à criança? Maternidade e paternidade são escolhas. A sociedade, muitas vezes, por ainda conservar um viés antropocêntrico, incentiva e desobriga o pai de exercer o papel de educador. Toda criança exige cuidados - alguém tem que assumir a responsabilidade de educá-la e cumprir com o dever paterno e materno. Quando algo falha, quando um dos dois deixa de cumprir tal função, entra em cena o direito, cobrando dos pais o direito que o filho tem em ser acolhido, acariciado e educado. São funções irrevogáveis que o direito se encarrega de impor quando a obrigação ética fracassa.

O Código Civil alemão, de 1900, diz: “O direito matrimonial não deve dominar o princípio de liberdade individual, mas se deve considerar o casamento como uma ordem ética e jurídica independente da vontade dos esposos”. Com o ingresso da mulher no mercado de trabalho, é comum casais se separarem e os filhos ficarem meses sem se encontrar com o pai ou com a mãe. Prevalece a idéia subjetiva e individualista dos direitos. O individualismo e o consumismo comprometem a função social dos pais.

InezLemos – Graduada em história/UFMG, mestre em educação pela FAE/UFMG e psicanalista. Autora de Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (Autêntica).

Artigo publicado no caderno Pensar em 19/02/2011

Um comentário:

Anônimo disse...

Cara Doutora,por não ter acesso fácil ao Caderno Pensar, espero ansiosamente novas postagens em seu site...Este texto é tão pertinente!Realmente, "pais" e "mães" precisam ser "impedidos"de "jogar" com a vida dos filhos; sujeitos em formação emocional, psíquica, principalmente.Parabéns mais uma vez pela clareza e apontamentos .
Teresa