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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A LOUCURA DE MACHADO

Inez Lemos

No mês das comemorações do Dia do Médico (18 de outubro), recorro ao escritor maior, Machado de Assis. Vale lembrar o que esse visionário da literatura já prenunciava: em O Alienista, ele metaforiza a sociedade que vê patologia em tudo, a crença cega na ciência e seus arautos. O médico Simão Bacamarte representa a obsessão pela reclusão ao atribuir aos métodos científicos a responsabilidade pela cura dos cidadãos que apresentavam sintomas psíquicos.
A ciência do século 19, com seu olhar frio e instrumentalizado sobre o sujeito, submete-o ao saber médico – saber/poder. Essa lógica está na contramão do que podemos chamar de tratamento psíquico ético. Tratamento diz da forma como médico e paciente interagem, implica participação no processo. O sujeito interroga o sintoma e, ao se envolver, toma para si a responsabilidade dele. A postura de se implicar no sintoma é diferente de delegar ao outro a responsabilidade pela condução do processo.

O Alienista representa a ciência que se coloca como absoluta, julgando-se capaz de tratar o sujeito apenas por meio da medicação. Uma ciência sem brechas para ouvir o sujeito e seu sofrimento, suas angústias e delírios. Machado, já naquela época, lança sua profecia contra o discurso da ciência encarnado em Simão Bacamarte. Crença que atua no sujeito como dogma: “A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, - com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução”.
A maioria da população de Itaguaí se submeteu ao poder de Bacamarte como alusão ao pensamento único, tão em voga no mundo contemporâneo. Vivemos o despotismo científico - hegemonia do discurso da ciência, que vê cada sujeito como objeto a ser manipulado, avaliado e diagnosticado. O viés biológico, que associa cada sintoma ao potencial de medicação, nos remete à idéia de cárcere e terror que domina Itaguaí: “A Casa Verde é um cárcere privado”. Que lugar a indústria farmacêutica ocupa nessa história? Trocamos as grades dos hospícios pelos efeitos deletérios das drogas lícitas, inibidoras e amortecedoras do sujeito desejante?

A questão não é denunciar a ganância das indústrias de medicamento, mas refletir sobre o conjunto de medidas no sentido de calar as vozes discordantes, apaziguando o sujeito de forma sutil, branda e limpa. A quem interessa o apagamento do sujeito? Uma vez diagnosticado, cria-se o estigma, o preconceito, a vergonha e a inibição. Ter um diagnóstico de bipolar é como ser premiado pela profecia de doença, sofrimento que poderia ser evitado. “Ao me separar de minha mulher, fiquei deprimido, me sentindo frágil, desvitalizado. Procurei um psiquiatra e ele me medicou, dizendo que eu era bipolar”, testemunha G, que chegou para a análise fazendo uso de lítio - medicação controlada. Hoje, G tenta superar as marcas do diagnóstico equivocado. Contando apenas com a coragem moral, ele busca investigar, ao deslizar sobre as dores guardadas, um novo sentido para a vida.

Ser alienado é se demitir da condução da vida, submeter-se à pragmática prescritiva e, sem interrogar, consumir tudo o que ela determina. Sem questionar os diagnósticos, sem querer saber mais de si, o sujeito se entrega à estratégia publicitária dos laboratórios, que insistem em ensinar a ele como se portar diante dos sentimentos. O que se modifica é a posição subjetiva do usuário, que se comporta como refém da psicofarmacologia. O principal desastre dessa estratégia discursiva e mercadológica é a patologização dos sentimentos e da existência, pois qualquer mal-estar se torna doença. Curar-se significa decifrar o sofrimento. Cura é mais que bem-estar, é mais que se sentir feliz. É se sentir livre, dono de seu corpo, sua vida.

Michel Foucault já havia nos alertado sobre abusos dos dispositivos de poder - saber que, mal empregado, mais oprime que liberta. É mais fácil intervir na doença que no sujeito e seu sintoma, excluindo-o e rotulando-o. A reclusão moderna é diferente, não se dá pela força, mas pelo convencimento, pela submissão e pelo autoengano. A única sanidade disponível é recusa ao afã da nova ciência. Quem é o louco da neociência? Os laboratórios, os médicos ou o paciente, que se submete, sem questionar, aos diagnósticos? Há algum tempo, seria impensável a criança ser diagnosticada, apressadamente e de forma pouco criteriosa, de psicótica ou hiperativa.
A sanidade que desejamos lembra refúgio, apaziguamento. Lugar a duras penas conquistado para viver os sonhos. A insanidade do homem moderno é não saber de seu desejo. O conceito atual de sanidade nos lembra obediência. São é aquele que cumpre as ordens médicas, que cobra do doutor fórmula mágica para o transtorno. Eis o paradoxo: ao nos submetermos aos investimentos do capital contra a subjetividade, disponibilizamo-nos a seus interesses e o elegemos dono de nosso corpo. A loucura machadiana fez literatura e pôs em xeque o poder da ciência. Denunciou a sordidez da sociedade, rejeitando crenças petrificadas, mitos perversos, valores e comportamentos elitistas e excludentes. Deflagrou a barbárie conduzida pelos barões.
Quando tememos a insanidade, revelamos ódio aos projetos com os quais nos envolvemos de forma contrariada. A busca de sucesso financeiro a qualquer custo revela ódio à felicidade - medo da satisfação primordial, o encontro com o primeiro objeto amado e perdido. Temer a insanidade significa temer a infelicidade. Como levar à frente o projeto de vida que escolhemos sem nos deixar invadir por uma força transbordante e arrebatadora, que nos joga do outro lado da vida, sem autodomínio?

A loucura é vista como perda de controle - o sujeito rompe com o proibido e assume escolhas descabidas, fora da ordem social. Se sanidade é assumir projeto próprio de vida, descobrir a autoexpressão, tal postura se aproxima do conceito de loucura. Se, por um lado, sanidade diz da coragem de ludibriar e escapar dos despropósitos oferecidos pelo mercado, por outro, isso inclui uniformidade - todos se encaixam no mesmo padrão, apagando diferenças e subjetividades.
É difícil debater sanidade numa cultura que não incentiva o pensar e a criatividade. Desejamos, na sanidade, exatamente o que ela exclui: paixão e excentricidade. Se a loucura está relacionada ao excesso, o são é uma pessoa limitada em sua “loucura”. Falsa sanidade é nos assujeitar à pressão social que nos dificulta assumir a responsabilidade por nossa vida, vivendo-a tal como nos agrada. A retórica da sanidade e da loucura esbarra na busca do sentido da vida. Ou de como se escapa da falta de sentido. A sanidade aparece como conquista: algo que adquirimos ao longo da vida, e não como algo com que nascemos. A luta pela lucidez inclui não se contentar com explicações simplistas, atribuindo tudo à genética. Muitos atos de insanidade não resultam da ausência de lucidez, mas do uso perverso dela. Para os superficialmente sãos, sanidade significa vida sem dor e tormento, totalmente integrada ao modus vivendi.

A sanidade passa pela capacidade de enfrentar a própria turbulência. O que sentimos e desejamos depende do lugar de onde partimos – vivências e raízes. Viver implica conflitos, e a realidade não coincide com o que idealizamos. É salutar saber lidar com as dificuldades que o querer envolve. Viver é diferente de vencer - significa fazer escolhas e se aventurar na dimensão humana. O percurso interessa mais que a chegada – quão chato seria trilhar caminhos já sabidos. A sanidade que interessa é construída no contínuo ganhar e perder, amar e sofrer - longe do fundamentalismo burguês de sucesso, poder e segurança.

Nietzsche, em Sobre a genealogia da moral, nos lembra Platão: “Foi graças à loucura que as coisas mais excelentes surgiram na Grécia”. Loucura necessária é ousar, esticar o fio da existência, transcender paixões. Como testemunha o velho pensamento: “Se o louco persistir em sua loucura, torna-se sábio”.

Machado é um escritor que faz jus a seu tempo e a seu país. Com elegância e nobreza, lançou ironia sobre burgueses que não economizavam desfaçatez - elite tacanha e pouco ilustrada. Com certo fel de classe, ilustrou e representou os que usavam o moralismo para se defender. Não poupou as mulheres e os casamentos por interesse: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”. Eis a grande loucura de Machado: com coragem e lucidez, denunciou extravagâncias da sociedade conservadora, patrimonialista e reacionária do Rio de Janeiro no século 19.

Talvez por tudo isso o Brasil não produza mais loucos como Machado. Vivemos tempos de aberrações, perversões, crimes e violência. Os excessos se deslocaram - na ausência de lei, a arte é dispensada. A loucura rentável prejudica, agride e faz a roda do consumo girar. A libido foi cooptada pelo mal. O demônio da modernidade se alastrou junto à massa, banalizando o sentido da vida e nos encerrando na miséria existencial. Barbárie é vida sem utopia, sem coragem para transgredir palavras de ordem: goza, compra!


Artigo publicado no C. Pensar do EM em 30/10/2010.

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