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e entusiasma a alma.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

AMOR E BRILHO

Inez Lemos

O filme O brilho de uma paixão relata o romance ocorrido em 1819, entre o poeta John Keats e sua vizinha, a estudante de moda Fanny Brawne. Os dois jovens, embevecidos pela sedução, se entregam à paixão. O amor arrebatador e obsessivo é interrompido pela morte prematura de Keats, aos 25 anos. O filme prima pela forma delicada e sutil com que trata o sentimento entre os amantes. O amor é o personagem - o casal apenas se submete à ordem amorosa, que comanda o roteiro fiel às regras do coração. Nada soa como inverdade, simulação. Um amor que se inicia pelas entranhas da alma e segue invadindo tudo. Sentimento autoritário, que não deixa dúvida, tampouco escolha. Ou nos submetemos a ele ou somos por ele sucumbidos.

Contudo, O brilho de uma paixão nos carrega: mergulhamos na dor e nos tornamos cúmplices do sofrimento que se arrasta com a doença do poeta. Não é o sofrimento que nos tocou, incomodou, mas a beleza em conseguir retratar a intensidade que se apossa de Fanny, ao saber da morte do amado. Extasiados, trememos. O mundo, junto a ela, paralisou. Cenas como essas nos enchem de prazer. Toda vez que a arte é fiel à realidade e retrata o sentimento humano de forma aguda, deslumbramos. Significa que o grande personagem da vida é o sentimento. E a felicidade, essa coisa gostosa que nos transporta para as nuvens, passa pela sabedoria - saber provocar a densidade luminosa que cochila em todos nós.

Abandonamos a atmosfera idílica do século 19 e aterrissamos na era do amor instrumentalizado, desbotado. A ética amorosa que nos orienta é a da permissividade. Ela nos lança aos modismos descabidos e invade o campo antes reservado às intermitências do coração. Amor é coisa séria, vulcão que cospe - cão que vocifera e esbraveja de dor. O amor sempre foi tema que arrastou multidões. Sentimento universal, contraditório e imprevisível, impossível de ser planejado, instrumentalizado.

Nada mais broxante do que o discurso amoroso articulado pela ciência, propondo o apagamento do sujeito, controlando e determinando a emoção: “A ciência já sabe explicar por que alguns casais mantêm a atração sexual durante décadas” - frase veiculada por uma revista semanal. Outrora, o roteiro amoroso respeitava os mistérios da paixão. Segredos, fantasias e carícias vivenciadas na alcova. A alegria entre os enamorados estava na coragem de se despirem um diante do outro, em enfrentar temores e fracassos. Prazer por se sentirem únicos na construção de um enredo íntimo.

Tornou-se lugar comum depararmos com reportagens insistindo em ensinar como devemos nos portar na conquista afetiva. Os “workshops de paquera” ganharam adeptos. A ciência, ao invadir campos da vida humana, denuncia a fragilidade do sujeito diante de estratégias mercadológicas, que, de forma arrogante, lança seu discurso absoluto, infalível. A narrativa da ciência, ao se colocar como perfeita, denuncia autoritarismo e se compromete. A condição humana é esburacada, cheia de fendas. Somos muitos, habitamos uma legião complexa de dúvidas, culpas. Ao excluirmos o sujeito de sua história amorosa, “atribuindo à ativação de um circuito na área tegmentar ventral ao mesencéfalo”, desqualificamos os segredos da sedução. Impossível negar a importância da genética e da neurociência em tratamentos antes impensados. Contudo, permitir que ela mapeie o coração, como se fosse cérebro, classificando impulsos e desconsiderando o que, em cada um, mobiliza-se pelo outro, é admitir que nos transformemos em robôs.

As escolhas amorosas são de outra ordem, profetizou Drummond: “Carlos, sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija”. O amor nos reserva nulidades, sentimentos despretensiosos e fantasias sem sentido. O amor é para ser vivido; e não explicado, classificado. Uma noite de amor não é uma aula de anatomia. Sensações que, antes de serem elucidadas, vulgarizadas, merecem ser contempladas. A ciência, ao intervir no corpo humano de forma absoluta, disseca a psiquê como um fóssil e despreza a dimensão erótica. Desafetar - subtrair o afeto que nos une ao outro. Como explicar o processo de assepsia e higienização das pulsões? O corpo vivente não é coisa para ser detetizado, estratificado, cientificizado.

“Os sem desejos – assexuados começam a sair do armário e, com a ajuda da internet, assumem a indiferença pelo sexo”. Eis outro sintoma registrado pela mídia e que merece reflexão. Jovens revelam não sentir desejo por sexo e trocam confidências por meio da Comunidade dos Assexuados. “Acho que sexo pode até ser legal, mas não é o principal. Se eu encontrasse caras que se contentassem apenas com afetos e carinhos, ficaria feliz para o resto da vida, porque, hoje em dia, está tudo tão sexualizado, tão carnal” - confessa um integrante da comunidade.

Podemos traçar paralelo entre o excesso de permissividade e a perda de libido? O fastio pelo sexo, acusado por alguns jovens, reflete cansaço, certo enjôo. O recato, a dúvida e o desconcerto que envolvem a experiência sexual intensa e sedutora devem ser sacramentados. É o sublime da vida - néctar que os deuses nos proporcionaram. Ao instrumentalizar o sexo, retiramos dele a substância que hidrata a alma. Quando comemos em demasia, sentimos aversão pelo alimento ingerido em excesso. A falta de entusiasmo e emoção dos jovens não é decorrente da troca de olhares sedutores, convites carinhosos, mas do lugar antropofágico que o sexo vem ocupando. Lembramos que o desejo se sustenta na ausência.

O inconsciente é aquilo que, na linguagem, surpreende, não mente - sai desavergonhadamente. Em que mundo o inconsciente se sustentará quando a sociedade exclui o sujeito de seus enunciados? Pobreza simbólica, empobrecimento do inconsciente. O objeto que causa desejo deve ser investigado quando queremos saber mais sobre as pessoas – sonhos, devaneios, fantasias.

A ciência se dirige ao consumidor para que ele demande objetos a serem consumidos. Este, ao consumir, encarna o escravo, aquele que obedece e se anula na obediência e submissão. Quando o objeto que causa desejo é destacado do sujeito, há o processo de assexualização. Todo sujeito é marcado por objetos – voz, olhar, gestos, seios. Rastros que cochilam no inconsciente e que orientam a sexualidade. Objetos perdidos que mobilizam o sujeito na busca por experiências de satisfação. Sem isso, o sujeito circula desprovido de referências amorosas - traços que vetorizam as escolhas.

O sujeito, quando aniquilado em sua particularidade e moldado pela lógica externa, opera uma demanda. Exilado de sua subjetividade, circula oco e disponível. Presa fácil a ser capturada pelos piratas da contemporaneidade. As novas formas de subjetivação agenciam o sujeito inserido nos novos conceitos de tempo, memória, distância, afeto, sexo, família e espaço. No ciberespaço, ele é estruturado na linguagem da tecnociência. Espaço virtual e preciso, comandado por autoridades invisíveis. Autoridade a que, atualmente, os jovens obedecem com sucesso. É aos comandos das máquinas que eles se submetem.

O sujeito cultuado pela tecnocultura opera e executa tarefas. Performático, gasta a libido diante de telas e se delicia entre mulheres virtuais. Os comandos são enunciados e deles se espera resultado, o produto. Já a enunciação se relaciona com o processo. O ato contínuo de manipular aparelhos provoca esvaziamento. O jovem que mergulha em experiências amorosas sem contato com o outro, sem retorno interior, é forte candidato ao estresse e à depressão. Exilado dos laços afetivos e desvinculados da enunciação, desconhece as intermitências do coração.

Amor é surpresa, algo que começa onde menos esperamos. Sentimento que irrompe, atravessa o escuro e nos encanta. Sabedoria no amor é treino, demanda habilidade, tramas e artimanhas. Entranhas que causam estranhamento. Sentimento desobediente, uterino, visceral. Amor e Eros não devem servir para muito mais senão iludir e encantar a alma mendiga. Ao reconhecer no outro fragmentos que nos são familiares, vislumbramos a possibilidade de um encontro fecundo, pleno. “Para me interpretar e formular-me preciso de novos sinais e articulações novas em formas que se localizem aquém e além de minha história humana. Transfiguro a realidade e então, outra realidade, sonhadora e sonâmbula, me cria”, atesta Clarice Lispector.

O amor que satisfaz é o que cria, inventa, seduz, faz poesia e faz chorar. Entope-nos de ternura, nos tira do sério - mas nos deixa livres para voar e aterrissar. De posse da terra, conduzimos as contradições do coração. Tormento que ora dói, ora nos derrete de alegria. E nos enche de brilho.

Artigo publicado em 25/09/2010 no C. Pensar do EM.

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