Bem-vindo

Amor urgente e necessário chega de graça,
e entusiasma a alma.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

FUTEBOL, PODER E MULHER

Inez Lemos

Eliza e Waris. Duas mulheres unidas pela violência. O filme A flor do deserto é a autobiografia da somali Waris Dirie, que, aos 3 anos foi circuncidada. Waris, infeliz com o que o futuro lhe reservava, foge após ser vendida, aos 13 anos, para um marido. Sob pele e osso, atravessa o deserto por dias e chega à Morgadishu, capital da Somália, onde passou a adolescência sem ser alfabetizada. Seguiu para Londres, onde trabalhou alguns anos como faxineira na embaixada da Somália e, posteriormente, num restaurante fast food, foi descoberta pelo fotógrafo Terry Donaldson, que a transforma numa modelo internacional. Essa é a história de uma mulher que passa grande parte de sua vida em busca de dignidade, afeto e amor. Waris ansiava em ser reconhecida como ser humano, merecedor de carinho e respeito. Construir uma história diferente das mulheres somalianas, quando é proibido ter prazer com o corpo, não escolhem seus maridos, tampouco podem deles discordar.

Waris e Eliza Samudio, duas mulheres marcadas pela violência. Waris sofreu uma intervenção radical no sexo impedindo-a de se sentir mulher. Eliza é punida até a morte pelo ex-amante por desejar ser mãe, criar o filho e construir um lar que nunca teve. Ambas foram feridas na sexualidade, no que o feminino tem de mais sagrado. A violência contra a mulher, aqui e no mundo, aponta para o quanto temos que caminhar na luta pela dignidade de se ter um corpo aberto para o amor. Um corpo que muitos homens confundem com buraco lúdico - lugar em que podem chegar e abusar. Como entender, na nossa cultura, o desrespeito e a violência contra a mulher, onde a cada duas horas uma é assassinada?

Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, aprofunda os motivos que levam o brasileiro ser tão boa praça, cordial e permissivo. A cultura que nos define é a do “deixa disso”. A herança ibérica e o legado de uma ausência de organização social e de luta pelos direitos, exigindo respeito e solidariedade dos compatriotas e governantes, criaram uma mentalidade nos patrões de descaso, abuso e descompromisso para com aqueles que julgam inferiores. O brasileiro sofre de autoestima baixa, age como ressentido e se julga um fracassado quando não é rico e poderoso. E esquece que o fracasso, muitas vezes, não é do indivíduo e sim da sociedade. Vivemos a violência por sermos geradores de violência. A violência é o lixo que mais fede em nosso aterro sanitário.
Esperteza, cinismo, transgressão, imoralidade consentida, intimidade nas relações sociais, perversão. O que leva um jogador de futebol a se julgar no direito de matar a ex-amante? Qual a relação que existe entre a forma como fomos colonizados e a falta de pudor do brasileiro? Vivemos num mar de permissividade - as garotas adoram se despir e os homens, agredir. O caso do goleiro Bruno que, de acordo com a polícia, seqüestrou Eliza Samudio e mandou matá-la, exemplifica o imaginário masculino que se julga no direito de usar de violência para resolver questões pessoais com as mulheres.

A busca pelo gozo sem limites é um traço da vida social brasileira e que se evidencia em vários setores por meio do “jeitinho” - na educação permissiva quando pais e escolas condenam as crianças ao gozo, ao não imporem limites às crianças, na forma em que são praticados atos de corrupção e outros crimes, ostentando o uso indevido do poder. Nascemos da falta de um significante que simbolize interdição, uma ordem à qual todo o país estaria submetido, e que funcionasse como um organizador eficiente da vida em sociedade. As relações de amizade e favor, prestígio e poder, iniciaram-se nas capitanias hereditárias. E assim prosseguimos. Dinheiro, poder, sexo e violência sempre andaram juntos no paraíso tropical. Violência em sua forma mais ampla. Transgressão permitida - cinismo disfarçando privilégios consolidados no imaginário de uma elite poderosa. As relações de trabalho se misturam com as pessoais num clima de intimidade. A intimidade brasileira é um traço extremamente forte nas relações sociais, o que, por sua vez, acaba facilitando a violência. A aproximação precoce abre espaço para a agressão, quando todos se sentem à vontade para intervir na vida do outro, corpo e desejo.

Subjacente à sua fundação, o Brasil carrega a fantasia do mito de paraíso terrestre - filho bastardo de pai que nunca cumpriu com a função paterna e não interditou o gozo. O Éden que os europeus sonhavam - lugar para depredar sem culpa. Reserva libidinal do mundo. Todo o imaginário de praias, mulheres, sexo fácil e malandragem fixa-se na nossa identidade. A crise de valores éticos resulta do fato de os ideais morais não serem respeitados, colocando a transgressão no centro da dinâmica social. Vivemos a síndrome dos explorados e injustiçados, transgredimos normas e leis. Agimos como eternos ressentidos, insatisfeitos com o pai cruel e injusto, que nos deixou na “carência”. Somos o filho abandonado que tenta compensar os maus tratos. Enquanto não mudarmos a postura diante do pai abandônico e usurpador, enquanto não abandonarmos o lugar do filho desrespeitado e em desvantagem, vamos sempre criar mecanismos de compensação. Para que o quadro de violência mude, temos que sair da posição de inferior e recusar situações de privilégio. A ética na convivência social exige que o bem-estar individual transforme-se em um ideal coletivo.

E a história se repete. Eliza Samudio (sem julgar o fato), foi abandonada pela mãe aos 5 meses de idade, indo morar com o pai. Segundo uma amiga, Eliza sofria de carência. Carência aponta falta, falha na forma em que foi amamentada, acolhida no amor primordial - primeiras experiências de satisfação. Eliza é filha do Brasil que vemos na TV. Mulheres incentivando a negociar o corpo, ganhar a vida de forma fácil e rápida. Bruno, órfão de pais vivos, também não desfrutou do carinho dos pais, que o entregaram para a avó aos 3 meses. As histórias de violência geralmente acusam ruído na base afetiva – esgarçamento do quadro familiar. Histórias de abandono, maus tratos e abusos - geralmente, quem apanha, bate. E quem é abandonado pela mãe, se sente no direito de reproduzir situações de violência. Se uma mãe é capaz de abandonar um bebê, como esse, no futuro, não terá coragem de fazer igual ou pior? Pelo que consta, Bruno também entregou o filho a terceiros, à própria sorte. Eliza usou o corpo para conquistar Bruno, que representava garantia de amor. Eliza demandava mais que uma pensão, um lar - afeto e carinho para ela e o filho. Pouco lhe interessava se de forma inadequada. O objetivo era tentar compensar a dívida que a vida tinha para com ela, ao privá-la do amor materno. A busca incessante de amor na fantasia sexual feminina. Em sua obsessão, amou mais o amor que a realidade. Pouco lhe interessava se Bruno era casado ou se desejava, com ela, ter um filho. Busca no filho confirmação de que nunca mais sofreria de solidão. Filho representa companhia, casa cheia. Alguém que chega e rompe o sentimento de se saber só. Promessa de lua cheia e fim nas noites de trevas. Holofotes na vida e na alma. Eliza, ao recusar invisibilidade, reivindicava espetáculo.
Bruno se encaixa também no imaginário do transgressor, aquele que transgride a lei, desrespeita-a por se colocar acima dela. Num ato de volubilidade caprichosa, atua como perverso. Do lugar do poderoso e privilegiado pela fama e pelo dinheiro, se julga no direito de eliminar aquela que o incomodava. A postura de Bruno pode ser analisada dentro da subjetividade do futebol no Brasil, que exibe um comportamento chauvinista masculino, exemplificado na “lei da transgressão”. Muitos casos de violência e crime envolvendo o mundo do futebol reforçam a distância entre o judiciário e as práticas sociais. São as contradições entre o arcaico e o moderno. As ‘regras de exceção’ são parte integrante de nossa cultura e implica diversas estratégias. Essas práticas sociais, das quais o “jeitinho” faz parte, confrontam-se com as leis formais. O jeitinho que Bruno escolheu para resolver sua questão com Eliza acabou se confrontando com a lei. Deu azar, dessa vez ele falhou.

Em sociedades injustas e desiguais, vários são os motivos que leva o indivíduo a transgredir a lei – como resposta ao desamparo, quando o cidadão não vê seus direitos básicos assegurados, como objeto de punição legítima ao crime, ou de forma perversa, sobretudo pela elite. Mais que exigir punição aos que transgridem a lei, devemos protestar e exigir um código de ética. Ética, primeiro, se aprende em casa.

O Brasil da contradição, arcaico, racista e moderno, reflete na cabeça dos jogadores. Muitos são negros, oriundos de classe pobre e escolaridade precária. De repente, de garotos de periferia transformam-se em ídolos e se descontrolam meio a tanto poder, dinheiro e mulheres. É o país da corrupção e da contravenção, da desigualdade e do descrédito em que crueldade e violência se confundem com virtuosismo. O país dos salários baixos é o território que a elite do futebol pisa ao buscar parte de seus craques. Violência expressa revolta. Metaforiza o sentimento de abandono que o Brasil exerce em seu povo. Um povo que clama por atenção dos políticos despóticos - coronéis, empresários, gente que não conhece sua gente, nada sabe de pobre e vida miserável. Vida tramada na tristeza de todo dia. De nada resolve querer tampar o sol com a peneira. Modernizamos, mas continuamos atrasados, velhos na concepção de nação. Retrógrados no olhar sobre as mulheres - macheza e ignorância. Esporte e educação, uma dupla que rende bons frutos.

Artigo publicado no C. Pensar do jornal EM em 17/07/2010

Nenhum comentário: