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Amor urgente e necessário chega de graça,
e entusiasma a alma.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

CABARÉ DOS SOLITÁRIOS

Inez Lemos¹


Nenhum ser humano consegue ser feliz sem um “eu te amo”. Isto é básico. Nascemos do amor e dele necessitamos para seguir pela vida. É o amor que funda o sujeito. Contudo, percebo que o amor está em extinção. Artigo de alto luxo a que poucos têm acesso. O filme Babel retrata vários cenários passados em diferentes lugares, porém, há um especialmente que choca, bate fundo, realidade que nos machuca e despedaça. Trata-se de uma jovem que vive a solidão do mundo tecnológico - gigante que nos esmaga por dentro. No capitalismo das ondas magnéticas o afeto entre as pessoas não é prática valorizada. Falta ímã, liga - substância que nos aquece, qual incêndio no coração, fogueira em busca de alento. O fogo do amor é mistério que queima de prazer. É difícil viver sem ele. A máquina é fria, não produz sensação, emoção. O progresso congela os sentimentos, paralisa o mundo. E o sujeito finge que acredita! Do Oriente, a jovem pós-moderna chora sua falta de amor. Reivindicar amor é reivindicar humanidade! A protagonista recusa a vida fria e artificial produzida na hiper-modernidade. In-timo - relação que pressupõe interioridade, um adentrar na alma do outro, comunicando-se com algo divino, solene e mágico. No mundo atual existe luz em excesso, clarão que cega e seca. No Japão, por meio de um simples botão, acendem-se luzes, ligam-se e desligam aparelhos, mas não se chega à alma – que padece gelada, desprezada.
Quando será que o mundo vai parar de crescer para fora e começar a crescer para dentro? Estamos parados! E amar é movimento abissal, caminhar rumo ao idílico, onírico, tempo de magia e poesia. Como amar sem tocar essas divindades? O cenário amoroso que nos oferecem é de encontros relâmpagos, relações que se curto-circuitam em meio a tantas maravilhas eletrônicas. O futuro está enfermo, padece em leito solitário. As imagens detectam o paciente morrendo de falta de amor. O mundo em Babel é precipício, abismo cavado pela inteligência internacional, mundial, global. “Meu amor...os carros já não andam. Aviões param no ar...meu amor. Meus olhos se apagaram o que fazer? Com meus braços, tuas pernas, nossas bocas. O que fazer? Adeus...Adeus... Tudo que era vida foi embora. Eu...Deus...”. Assim, Murilo Antunes, poeta e letrista mineiro, de forma pungente e aguda, denuncia a tragédia do amor, quando já não existe a crença na vida. Falência da dimensão verdadeira da humanidade. Amor aos pedaços, peças avulsas e soltas no mercado dos corpos! Vida cáustica, quando foram seqüestradas as possibilidades de se fazer amor de corpo inteiro.
A vida é um grande coração batendo. A viagem que travamos com ele é pro-funda - conduz-nos às entranhas, e lá descobrimos espaços inusitados, sonhos reclusos, magias secretas. Quando abrimos o coração, o chão treme, e descobrimos que somos felizes. Felicidade é descobrir, dentro de nós, relíquias a se percorrer e compor poemas. É preparar-se para receber a poesia da vida, que se aproxima tal como o beija-flor que vive nos jardins, cativo das flores. O beija-flor é pássaro nobre, sábio, pois não vaga, como os outros pássaros vagabundos, de galho em galho, à espera do que der e vier. O vôo do beija-flor é direcionado, seu percurso tem endereço certo. Ele sabe o que busca, do que precisa e o que deseja. Desnorteante é vagar sem eixo, sem norte, sem saber onde é a casa da felicidade, lugar escolhido pelo coração para descansar – paragem que cura da secura do mundo.
“Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente, não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-las saindo de Lisboa até Benfica...porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma”. Fernando Pessoa critica a obsessão que se tornou viajar por viajar. Para cruzar mares temos de, primeiro, cruzar nossa monotonia. A vida é um tédio quando não enfrentamos os monstros que nos apavoram. Viajar requer paz interior. Sem abrir espaço dentro de nós, não navegamos rios, não apreciamos cidades. Escalar belas montanhas? Só com o coração em júbilo. O tédio é para ser enfrentado, ultrapassado – sem vencê-lo, vamos estar sempre empacotados, emparedados. Aliás, a melhor forma de não viajar, é entrar num pacote turístico. As agências de viagens, em consonância com os empresários do tédio, nos oferecem um enlatado de lugares. Você compra uma promessa de viagem e realiza um plano de metas, programa intensivo de visitas. Passa por lugares, sem que eles passem por você. Emoção planejada é fingimento, engodo, vida tediosa, tendenciosa. Quem segue as tendências do mundo externo, vaga sozinho e fora do eixo, distante do néctar divino. Divino é viver com a alma embevecida da dor ínfima, ferrugem que corrói lentamente de prazer.
Quão irritante é assistir à destruição do lado emocionante da vida pelos empresários, que tudo institucionalizam e comercializam. Viver tornou-se um mero cerimonial, quando tudo tem de ser impecável. Vida sem pecado, fracassos e derrotas. A vida que os Estados Unidos querem nos impor goela abaixo - vencer ou vencer! Concorrer – correr para o primeiro lugar, conquistar. O filme A pequena miss Sunshine expõe o ridículo norte-americano. Parece que a vida forjada no progresso nos deixou retardados. Agimos como robôs. Viajamos para onde não desejamos, ingerimos todas as gorduras que nos empurram e, depois, nos penitenciamos em cima de esteiras, verdadeiros idiotas correndo parados! Competimos obcecados e enlouquecidos por prêmios. Amor e emoção, só no cabaré dos solitários, demissionários desta vida otária, gente de sangue frio. Viver é sonhar diante do espelho da alma. O que reflete pobres almas magnéticas, que viajam em chips e navegam conectadas, programadas?
O filme mostra a transformação do trágico em cômico - a cena da família à mesa, a refeição de comida comprada que vem embalada em baldes plásticos! O cardápio do dia compõe-se de pedaços de frangos, que se devoram inteiros, com a mão. A América esparrama estupidez pelo mundo, ao transformar o ato de se alimentar em banalidade. Sem o ritual de sentar-se a uma mesa bem-posta, é como ir ao banheiro aliviar-se. Instintos de preservação - comer, lutar, vencer! Banalizar a vida, isso o capitalismo fez com mestria. A vida que restou é a que engolimos nas esquinas - especiarias sem sabor, temperos sem cheiros. A família, hoje, é mais um amontoado de gente que demanda enlatados. Consomem-se sonhos cifrados e projetados nos escritórios de vidro - janelas que se abrem para um céu nublado, cinzento e poluído, fagulhas de cimento em almas de ferro. O cenário a que os dois filmes nos remetem é de um labirinto sem saída. A salvação deve vir de nós, ao recusarmos caminhos que nos enredam e paralisam. Jorge Luis Borges, em Elogio da sombra, nos aponta um lugar: “Não haverá nunca uma porta. Estás dentro. E o alcacér abarca o universo. E não tem nem anverso nem reverso. Nem externo muro nem secreto centro”. Tudo que precisamos para aspirar uma vida saudável, emocionante, é enfrentar com rigor, as bifurcações dos caminhos que travamos a partir de nossas entranhas, víceras que desconfortam - labirinto a ser percorrido, real a ser bordejado.
A vida é para ser bordada, ponto a ponto. Destino traçado por fadas que idealizamos, que nos orientam e nos indicam os jardins de beija-flores. Refeição à mesa, com a família reunida, que, juntos, comem o sofrer, e saboreiam o saber. Nas metrópoles a vida de famílias que abandonaram seus feudos sentimentais e migram para lugares sem memória, conforto sem esperança, é rala, fria e frágil. A emoção, hoje, é participar do Big Brother, eliminar o “babaca da vez”. Triste é a juventude acreditar que a vida é esta obscenidade sem sabor, pecado sem dor, e desistir de encontrar o néctar dos deuses no jardim da existência. Essa vida burguesa, dissoluta e sem sentido, já havia sido severamente criticada por Salinger em seu ontológico O ampanhador no campo do centeio: “Esses sujeitos que vivem dizendo quantos quilômetros fazem com um litro de gasolina...sujeitos que nunca na vida abriram um livro. Sujeitos chatos pra burro”. Salinger realizou um pouco do desejo de ausentar-se da hipocrisia americana, tal como aspirava seu personagem n’O apanhador. Retirou-se para uma vida despojada e marginal, ao que parece, em uma cabana no Maine, onde não havia água encanada e luz elétrica. Distante da frieza do progresso e longe do alcacér, abarcou o universo ao escrever e revelar ao mundo sabedoria - soube viver a emoção de saber de si.

¹Lemos, Inez. Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (Autêntica).

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