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sexta-feira, 21 de agosto de 2009

FRACASSO DO AFETO


por Inez Lemos


Namorar, demorar, morar. Namoro implica compromisso afetivo, sexual. Não estamos falando de fidelidade, mas de parceria entre dois que, unidos pelo desejo de habitar o coração do outro, propõem estabelecer um vínculo amoroso. Se namorar é verbo meio fora de moda, o que leva jovens à rua engrossando o coro dos solitários, descontentes com o rumo que as relações afetivas estão tomando? Cansaram-se da efemeridade das relações, quando bacana era “ficar” juntos sem compromisso? O Movimento dos Sem Namorado, veiculado na mídia há algum tempo, nos surpreende e merece reflexão. As palavras de ordem eram: “Cansei de ser sozinho” e “Quero namorar”. O que mudou na sociedade que leva uma multidão a reivindicar, em ato público, afeto e amor? O amor, ao se tornar palavra de ordem, revela estranhamento. Se sempre houve demanda por parceria amorosa, por que o namoro e o amor se tornaram raros? O que, na sociedade atual, contribuí para o fracasso do amor, do afeto?
Vivemos a sacralização da mercadoria quando a vida afetiva é contaminada pela lógica do consumo, do custo/benefício. Tudo incentiva o sucesso profissional, financeiro e não afetivo. As propagandas estimulam o desejo por objetos - não por pessoas. O amor se coisificou - o objeto de desejo é mais o carro do namorado que o próprio namorado. Como poderia ser diferente se esta geração foi educada e alfabetizada pela TV, absorvendo propagandas com imperativos categóricos como o “compre já”? A publicidade é elaborada por psicólogos, que se empenham para que a propaganda atinja as crianças de forma contundente. Há muito, o marketing utiliza psicólogos para fisgar crianças para o mundo do consumo, explorando a ingenuidade delas. Crianças e adolescentes, inseridos na mania consumista, dificilmente conseguem dela se livrar. Explorar a vulnerabilidade dos adolescentes é estratégia antiga. Lembramos que a adolescência é fase delicada da vida: inseguros, muitos apostam na aparência para solucionar conflitos e temores. Explorado, isso é rentabilidade garantida.
É comum ouvirmos que as crianças já nascem sabendo o que querem. Pouco adianta tentar demovê-las de seus desejos. Ora, se desde que nascem são bombardeadas pela indústria de marketing, propondo um estilo de falar e de se comportar, como poderia ser diferente? O grande mestre da atualidade é o publicitário, que nos dita a maneira de ser, de vestir e de pensar - sujeito desejante forjado na vídeomania. Desde cedo, somos convocados, como consumidores, ao lugar do gozo, a permanecermos na ilusão de completude pela via da aquisição. O que ocorre é a eternização na insatisfação. Consumir se tornou um ato de fé. Vamos ao shopping com a mesma fé com que antes íamos à Igreja.
O grande Outro da publicidade, com suas palavras de ordem, intromete-se em nossas vidas, influenciando gosto, desejo e escolhas. A indústria cultural de massa atua no psiquismo manipulando imaginários e mobilizando paixões. O laço social é promovido por um emissor de imagens que oferece uma identificação calcada no gozo sem limites. Gozo é quando temos prazer e desprazer. No ato da compra, descarregamos nossa pulsão sexual, ele nos eleva e nos deixa felizes por estarmos adquirindo algo. Uma ilusão de completude por alguns minutos, para depois voltarmos ao momento anterior de insatisfação. Quando não interrompemos a cadeia viciada de satisfação/insatisfação, quando não questionamos a compulsão que nos domina e nos leva às compras, nos eternizamos na repetição - sintoma que circula sob gozo mortífero. Saudável é agir fora do gozo. Para tanto, devemos saber mais sobre nossas pulsões, essa coisa que não cessa de se inscrever, de pulsar.
Ao analisarmos a demanda dos “sem namorados”, devemos fazê-lo em consonância com o momento que vivemos, quando o amor surge vinculado a objetos. Várias propagandas associam o casal apaixonado à mercadoria, transmitindo a idéia de que o amor só se realiza por meio da matéria - o sentimento é excluído da relação. O encontro amoroso é mediado pela linguagem, que vai fazer a conexão entre os dois enamorados. A linguagem se apresenta sob a forma de objetos que a cultura elege como representantes do amor - o carro, o vinho, a loira de cabelos esvoaçantes. A loira entra como metáfora da mulher amada - cultuada pela mídia como objeto de desejo dos homens. Os objetos ocupam o lugar da falta, a partir da qual o desejo circula. Significa dizer que somos estimulados a tamponar a falta de amor com objetos de consumo. A mercadoria entra em nosso imaginário como o objeto que simboliza o amor.
Quando substituímos a pessoa por mercadoria - a mulher ou o homem como acessório - o alvo é o objeto que opera como gozo. Nesse momento, o mestre da publicidade intervém na estrutura do desejo humano. Se algo no campo da parceria amorosa não vai bem, isso significa que a demanda deveria recair sobre a forma que a sociedade de consumo elegeu para viver os sentimentos, o afeto. Trata-se de questão anterior, estrutural. As garotas e os garotos não estão demandando apenas namorados, eles estão demandando um outro mundo. Um mundo que valorize os sentimentos, que acolha o desejo e a necessidade de amar e acariciar. Um mundo cujo mestre é o afeto. Consumir objetos não satisfaz as necessidades do coração - contente é o coração cheio de gente. O amor se torna supérfluo diante de tantas palavras de ordem emitidas pelo Outro do mercado. Diferentemente das histéricas freudianas, que não sabiam o que queriam, as moças de hoje pensam saber o que querem ao demandar objetos de consumo. Se soubessem não estariam na rua, reivindicando namorado.
Marx criou o conceito de fetiche (que Freud levou para a psicanálise) ao analisar o valor excessivo que os industriais passaram a atribuir à mercadoria, um brilho a mais para torná-la sedutora e enfeitiçar corações. Fetiche, feitiço. No mundo da mercadorização, o objeto de consumo é apresentado como condição indispensável para concretizar a relação sexual. A fantasia se deslocou do inconsciente para tudo que é vendido como objeto de desejo: carro, bebida, seios, bunda. Instaura-se a crença da satisfação via aquisição do modelo de vida veiculado pela mídia. Como se fosse possível um objeto capaz de acionar o desejo sexual entre duas pessoas, unindo-as em perfeita harmonia, sem conflitos, sem estranhamentos. A idéia romântica de almas gêmeas cabe bem em publicidade de carro e de uísque, mas no real do sexo deixa a desejar. No centro do fetiche está o deslocamento da pulsão sexual para o objeto, aquele que captura olhares sôfregos e desejosos de amor e de sexo.
A forma como nos relacionamos com os objetos revela aspectos de nossa sexualidade. Antigamente, ir às compras era ritual que incluía dia e hora. Tudo era planejado com antecedência, inclusive o dinheiro, pois, geralmente, as compras eram à vista - crediário era muito chato e demorava ser liberado, implicando carnês a serem pagos mensalmente. Com os cartões todo dia é dia de compras. Esperar, saborear. O dia de escolher o vestido da festa era uma epifania. A escolha dos objetos era um ato original, cerimonioso - quase religioso. Convocávamos os deuses e consultávamos as entranhas, pois a escolha equivocada implicava termos de usá-los mesmo assim.
O psicanalista Charles Melman recorre a Lacan para denunciar a devastação que o dinheiro provoca no sujeito quando esse ocupa o lugar do objeto perdido - lugar original, de onde emana o desejo: “Quando Lacan diz que o dinheiro é o significante mais aniquilante que há, ele não diz outra coisa senão que é o lugar onde todas as significações se anulam. É a operação onde se acha enfim dada a resposta à questão do ser, esse famoso “Que sou eu”? O que queremos obturar, ao aderirmos ao destino traçado pelo mestre do merchandising? Não é nada fácil recusar as ofertas de consumo, de endividamento, de estilo de vida e de ideal de afeto e amor que nos querem vender. Não é fácil descobrir o que realmente nos agrada e nos faz bem, o que está em consonância com a forma que gostamos de ser e viver.
“Em minha calça está grudada um nome/ que não é meu de batismo ou de cartório/ Um nome...estranho/...Com que inocência demita-me de ser/ Eu que antes era e me sabia tão diverso dos outros, tão mim-mesmo/ Ser pensante, sentinte e solitário”. Em “Eu, etiqueta”, Drummond manifesta sua indignação com as grifes que desapropriam o indivíduo de sua morada interior. Hoje, muitos jovens se sentem excluídos por não portar o tênis da moda, a jaqueta do momento. A ilusão da inclusão pela aquisição de mercadorias é devastadora e atesta o lamento do poeta, ao denunciar nossa inocência quando nos posicionamos como demissionários de nós mesmos, aderindo a modismos e a tendências. Afeto não é coisa para cair de moda.

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