Inez Lemos[1]
Muito se escreveu sobre o desempenho da seleção brasileira na Copa. Neste
particular, importa explorar os aspectos que escapam a toda família e que não
foi diferente com a Scolari. A Copa é um evento esportivo apropriado por
patrocinadores, articulados numa engrenagem midiática que fabrica astros,
mitos, craques. A narrativa que envolvia os nossos jogadores era a do sucesso, como
se o hexa estivesse escrito nas estrelas. Uma Copa não se ganha apenas com
holofotes, torcida, selfies, glamour, mas com planejamento, trabalho e
equilíbrio interno.
Talvez o maior pecado de Scolari foi ter subestimado o campo “psi”. O
técnico esqueceu-se de trabalhar a parte interna dos jogadores, ao longo dos
anos. Um trabalho que envolve aspectos emocionais, psíquicos, não se faz em
apenas dois encontros, como confirmou a psicóloga Regina Brandão. Controle
interno é capina árdua, constante. Scolari
não avaliou bem o desgaste emocional, a sobrecarga de pressão quando se disputa
uma copa no próprio país. No jogo com a forte Alemanha, os jogadores, fragilizados pelo infortúnio com Neymar, e
sob os olhos do mundo, foram jogados como carne aos leões. Faltosos, inseguros
e temerosos, não resistiram. A emoção solta voou balançando o que não estava
muito firme, estruturado. O lado subjetivo sobrepôs ao objetivo.
Na sociedade de mercado, quando um jogador entra para um time poderoso,
ele deixa de ser gente e passa a ser um produto. Não se interessa pelos
aspectos psíquicos, logo contrata um
empresário. Ainda garoto, parte em busca de um sonho de infância, se consagrar ídolo.
Ali não havia sujeito do inconsciente, seres humanos dotados de coração, alma,
sentimentos, emoção. Havia produtos da Sadia, Itaú, Coca-cola, Hyundai.
Uma das características da cultura do espetáculo é o apagamento do
sujeito. Significa que a orientação passa a ser comandada pela mídia. É quando
ocorre a dessubstancialização do sujeito. Ele sofre uma intervenção subjetiva.
Apropria-se de sua essência, instrumentalizando-a. O mercado insiste em
descaracterizar o lado humano, focando apenas no resultado. O Futebol business se transformou em jogatina. Las Vegas
comandada pela CBF e Fifa - corporações com cifras no celebro e dólares na
retina.
A falta é que orienta a nossa relação com o mundo. A criança, desde cedo,
convive com a falta de um objeto. Na configuração edipiana, trata-se da mãe. A
maturidade psíquica exige experiência com a perda. É ela que orienta o desejo e
ajuda a estruturar o sujeito. Significa que o desejo é organizado por uma falta
simbólica, que ensina a suportar a
frustração, a entender os limites da vida e a desconfiar da capacidade de
infalível. E assumir, sem muita dor, fracassos, responsabilidades, erros. Ao
aprender a conviver com os tropeços que a vida nos impõe, estamos adquirindo
estofo interno. Cabe aos pais prepararem os filhos para as adversidades do
mundo.
Nossos jogadores não tiveram um bom pai. Esse, além de fracassar na
formação dos filhos, não assumiu a responsabilidade pelos equívocos que
resultaram na tragédia de 8 de julho. Contudo, algo escapa, rompe o traçado e
espalha humanidade pelo gramado. Os garotos resolvem assumir sentimentos
primários. Vergonha, humilhação. Consternados, não disfarçam mais a frustração
de terem enterrado o sonho juvenil. Frustração não é sinônimo de vergonha e
humilhação. Vergonha implica covardia, hipocrisia. E assumir erros é grandeza,
coragem moral. Isso não faltou aos filhos, apenas ao pai.
Todo sintoma é alerta, sinal de que algo não vai bem. É quando
desconfiamos de nós mesmos e assumimos a fragilidade interna. Os jogadores, ao
longo das disputas, deram vários sinais de uma singularidade comprometida. Contudo,
a máquina não podia parar. Após a derrota, quando não havia mais como sustentar
a máscara, ouvimos deles pedidos de desculpas. Banhados em lágrimas, tentaram
se redimir. No apagar das luzes, o que se via era um grito de pesar no ar. Tragédia
épica encenada sob a memória de Tiradentes. O eterno retorno dantesco. Do riso
fez-se o planto. Do céu fomos ao inferno.
Um pedido de desculpas acusa culpa. Ora, quem lutou até o fim, quem entra
numa copa do mundo preparado e dando o maior de si, diante de uma eventual
perda, resta-lhe um olhar desolado e triste, como fez Messi. Trágico não é
perder, é se descobrir enganado, iludido, ludibriado. Os garotos, desavisados,
se embalaram no conto de fadas do pai leviano, que não os prepararam à altura
dos adversários. Acreditaram na mídia,
que os endeusaram, criando a ilusão de uma vitória que não se cumpriu. O mal é
a promessa não cumprida. De deuses passaram-se a vilões.
Nenhum sentimento negativo cabe no Olimpo! E quanto mais endeusados, mais
cegos e surdos para o óbvio eles se tornam. A cegueira não foi dos jogadores,
eles avisaram, choraram, expuseram as fissuras. E o técnico, mesmo diante do
fracasso, tentou nos convencer se valendo da matemática. Justo ela que não
consegue alcançar o invisível, o que se oculta no mais íntimo dos mortais. Estatística não toca o âmago, tampouco serve
para sanar um corpo sangrando diante do flagelo humano. Frente a um país
trucidado, o poderoso Felipão tenta um salvo-conduto, se defende e afirma que o
time caminhava certo. O que nos faz lembrar Fernando Pessoa e seu Poema em linha reta: “Nunca conheci quem
tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos tem sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes
reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil...”
Enquanto isso, os alemães marcam a passagem esbanjando dedicação, carisma
e comprometimento. Lembro-me de uma referência à seleção alemã, que não obstante
seu prepara e empenho, considera o futebol uma questão de “educação e esporte”.
Educação é processo que visa aprendizagem. Uma intervenção com o propósito de
transformar, de inserir algo novo, modificando hábitos, vícios. A forma como a
CBF lida com o esporte no Brasil é lamentável. De cima de uma estrutura
poderosa, formada por um covil de coronéis, numa postura autoritária e
arrogante, se coloca distante dos compromissos públicos. Esperamos que tudo
isso tenha se espatifado no campo da pouco transparente Fifa.
A falta que o pai faz - tanto para a seleção como para o cidadão.
Desamparados pela classe política, sofremos uma crise de representação. Como
abandonar o imediatismo, o individualismo exacerbado, a urgência de ser feliz?
Um país se faz com a participação de todos. Não apenas com personagens, astros,
estrelas. Um sentimento coletivo, um grupo e não celebridades que pouco se
interessam pelos bastidores. No campo e na rua, devemos cultuar a alteridade, o
culto ao bem comum. O povo brasileiro demonstrou que leva jeito para isso.
Basta convocá-lo à comunidade dos bons sentimentos.
O fracasso foi o significante fundante desta Copa. Muitos orquestraram o
fiasco, julgando que seria um evento vergonhoso. Marcelo, no primeiro jogo,
cumpre a profecia. Num ato falho, crava o gol contra. Seria o inconsciente
atravessando a realidade? Um inconsciente de nação desacreditada, desprezada? O
discurso não colou, não teve efeito de verdade, e a mídia nacional e
internacional teve que desconstruir a narrativa pessimista. O sol é nosso, o
céu azul também. Chega de cultuar crepúsculos.
O mundo do futebol é reduto dos machos, cartolas. Gente que não se
interessa pelo mundo subjetivo - angústia que cochila no subterrâneo da alma
humana. Esquecem que somos todos do mesmo barro, e quando encharca, vira lama.
Ser que oscila, claudica, fraqueja. Como o sol, que ora se levanta, ora desce
no horizonte e se recolhe. Nem sempre teremos céu azul. Um céu nublado ainda é
céu. Assustados com os leões, os canarinhos não soltaram o canto. O que não
significa que desaprenderam de cantar. Não há trauma que não possa ser
superado, ultrapassado. A tragédia do fracasso serve para nos humanizar.
O sentimento que fica é de pesar. Pesar diante do sofrimento dos meninos.
Doeu nas entranhas vê-los no limbo, soltos entre gorilas. Pesar por eles ter
acreditados em
Papai Noel. Velhinho que metaforiza o sonho de vida feliz,
quando todos serão contemplados com um belo presente. Não, a Fifa não garante
um lugar no pódio a todos, apenas aos mais preparados. Muitas serão as
histórias que teremos a contar. O fato dos jogadores exibirem salários
milionários não é suficiente para mudar a posição deles diante da complexidade
humana. Ricos, porém precários como todos nós. Vale uma visita ao divã.
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