Inez Lemos
Entre as ações impossíveis de serem realizadas
plenamente, Freud destacou a de governar. Embora a psicanálise não tenha
formulado uma teoria da política e do poder, ela reforça que o governo não pode
desconsiderar o sujeito desejante – sujeito fundado nas pulsões. Como inserir o
sujeito no campo da ética, da política e do poder? Como conciliar as pulsões e
a civilização? A problemática da política está em mediar o campo social, a
ordem simbólica e mítica das relações, uma vez que cada cidadão chega
atravessado por traços culturais, convicções e atavismos. Cada sujeito porta registros
simbólicos que o singularizam. O pacto social exige a equivalência simbólica
das forças - Estado e sociedade.
Quando os governos lançam projetos políticos
que rompem com o imaginário social propondo mudanças historicamente
petrificadas, sofrem forte resistência. Toda ruptura no campo psíquico provoca
uma contratransferência, uma rejeição aos modelos que contrariam os códigos
internalizados, seja de governos ou pessoas. Diante da proposta socialista, por
exemplo, Freud, embora compartilhasse do sonho por sociedades mais justas, não
acreditava na sua viabilidade, uma vez que a relação dos sujeitos com a riqueza
se inscreve no circuito pulsional que regula o gozo. Perder dinheiro significa
perda de gozo, e, para tanto, poucos estão preparados. A transformação do
estatuto simbólico dos bens materiais implicaria em mudanças culturais e de
valores, como também, na circulação do gozo.
A instituição de uma sociedade menos desigual
pressuporia a imposição de um limite ao gozo absoluto, operando como um
interdito simbólico. Quando o sujeito é interditado em suas pulsões narcísicas,
diante do imperativo do gozo se instala o mal-estar. Os conflitos entre
interesses, muitas vezes explicados por motivos econômicos, geraram guerras e
revoltas, desconstruindo o conceito de civilização universal e progresso. Contudo,
a política deve transitar entre o universal (público) e o relativo (subjetivo).
Daí a governabilidade ser um desafio que nunca se realiza completamente por se
contrapor às demandas de gozo do sujeito. O conflito entre interesses, classes
e idéias dificulta a democracia, uma vez que o narcisismo, a pulsão e o
mal-estar na civilização fundam a desarmonia entre os cidadãos.
Como entender o ódio que se
disseminou na sociedade brasileira a partir da ultima eleição para presidente
da República? A questão é aprofundar o olhar sobre o sintoma “Ódio ao PT” para
além da realidade, extrapolando os conflitos partidários. Corrupção deve ser
sempre combatida. Embora ela sempre tenha integrado o cenário político brasileiro,
como explicar a onda de moralização, o furor por denúncias justo agora? O que
subjaz à crise política que vivemos extrapola análises objetivas. A felicidade
de uma nação não pode ser absolutizada, não é um valor universal, mas um valor
relativo que remete às exigências pulsionais. Até que ponto as diferenças
individuais e pulsionais inviabilizam a construção de um pacto social? Hegemonia
prevê que a maioria dos participantes se una em torno de um valor universal.
Ao criticar às políticas
públicas de transferência de renda, como o Bolsa Família, devemos estender o
olhar às questões subjetivas – as diferenças se singularizam entre gozo e desejo.
E o desejo se fixa na fantasia, que por si só tem algo de utópico. Não há nada
de absoluto no campo das subjetividades, e a política administra fantasias
humanas, cuja função é atuar na produção do desejo. Quando o desejo do sujeito
é reconhecido, o cidadão abandona a fantasia de excluído e adquire um lugar na
polis - conquista pertencimento. Conquistar identidade é conquistar poder.
Os obsessivos por poder
geralmente mantêm uma relação insana e perversa com a política. Manipulam e
cometem crimes ao promover lobbies e garantir o “queijo intacto”. Brigam
movidos por fantasias de riqueza, vaidades, poder. Há algo no psiquismo que
dificulta avançar nas propostas de redução da pobreza. No Brasil, a retórica da
democracia sempre se opôs às políticas públicas de amplo alcance social. Os
projetos desenvolvimentistas ocorreram com dinheiro público em empreendimentos
privados. Sempre convivemos com o Bolsa Boi, Bolsa Empresário, com o crédito ao
agronegócio e às empresas. Contudo, o descontentamento com os investimentos do
governo atual na área social deflagra a relação fálica de posse que o sujeito
estabelece com os bens materiais. A lógica do lucro dificulta a aceitação, sem
oposição, à expansão dos direitos sociais. Quando estes se estendem à maioria dos
cidadãos, há perda de privilégios – a igualdade fere a fantasia fálica de acumulação.
O
gozo do sujeito contemporâneo está na ostentação da riqueza e na
espetacularização da posse – imagem de rico e poderoso. O projeto de felicidade
fundado na pós-modernidade e centrado na tecnologia reforça a cultura narcísica,
individualista. O ideal de acumulação em que a riqueza material ganha primazia,
muitas vezes não consegue produzir satisfação, uma vez que o viver em sociedade
provoca interdições e renúncias pulsionais. É quando o sujeito se vê diante de
propostas que contraria a ordem simbólica - orientação internalizada de
ostentação.
Em “Psicologia das massas e análise do eu”,
Freud enuncia que o homem é um animal de horda e não um animal de massa. Há
algo no sujeito que o leva a rejeitar o social, a resistir aos processos de
coletivização. No meio da massa, ele se entrega aos impulsos primários,
abandona as interdições e, como animal feroz, defende seu naco de carne.
Ao
defender com violência o seu espaço, seu patrimônio e seu partido, o sujeito demarca território. É o narcisismo que, ao
impor singularidade, rejeita a igualdade. Freud, ao refletir sobre as guerras, cunhou
a expressão “narcisismo das pequenas diferenças”. Ele explica os conflitos
entre os cidadãos - fonte do ódio entre partidos, torcidas, nações. A “guerra
entre partidos”, a conduta beligerante do atual Congresso Nacional expõe a obsessão
pelo poder - digladiar por um lugar de destaque na arena política. A corrupção,
o desejo de se locupletar de forma ilícita, se inscreve no circuito pulsional -
é sintoma que escapa. Os perversos sempre rodearam o poder, lugar onde os atos
espúrios são protegidos.
Quando
governos tentam inovar com políticas sociais que rompem com o ideário da elite
conservadora, que sempre determinou os investimentos públicos, há que se tentar
uma intervenção e transformação no sistema de valores e na produção do desejo
coletivo. Não é possível entender a resistência ao Bolsa Família - programa que
não se resume a transferir renda, mas garantir educação, saúde, saneamento,
eletricidade e moradia aos mais pobres -, pelo viés da razão moderna. Há algo
no psiquismo que inviabiliza a construção de um modelo iluminista de cidadania,
baseado no bem comum, uma vez que ele se oporia ao projeto universal de
felicidade, quando as riquezas seriam mais bem distribuídas.
Quando
a política não consegue dialogar com as diferentes subjetividades, não oferece
outras formas de laço social senão as clássicas inseridas pelo mercado e poder
econômico, o efeito é a evidente corrosão entre Estado e tecido social. Tudo
isso aponta para uma crise estrutural de valores, provocando uma dicotomia -
ruptura no ideal de nação. De um lado os defensores do status quo – riquezas e
privilégios -, de outro a população, que anseia por projetos que lhes garantam
qualidade de vida. Uma população mais educada, saudável e com acesso a bens e
serviços é pré-requisito ao desenvolvimento mais sustentável e menos desigual.
A inclusão social e produtiva dos mais pobres é benéfica para o conjunto da
sociedade.
Conclui-se
que a relutância às políticas sociais, cujos impactos positivos na economia foram
reconhecidos, aponta a dificuldade de se romper com a tradição simbólica que
permeia as relações humanas, cristalizadas no preconceito e na resistência em
conviver com a mobilidade social. Como em socializar os espaços de convivência
e democratizar o acesso ao patrimônio público. Quando uma classe é ameaçada de
perda de privilégios, ela sofre intervenção na relação fálica de posse, é
privação do gozo.
O
mal-estar que se instalou no país não pode ser explicado apenas pela corrupção
na Petrobrás (uma vez que ela remonta a várias décadas), tampouco pela alta do
dólar e da gasolina. É efeito de algo maior e que escapa às análises econômicas
- diz da demanda de gozo do sujeito. Governar, educar e analisar são profissões
infindáveis e incompletas.