Inez Lemos
A celebrada sociedade do espetáculo,
orientada no mercado, no individualismo e no avanço tecnológico, multiplica seus efeitos
sobre o corpo, colocando em cena personagens cunhados no estilo publicitário.
Como explicar o investimento na perfectibilidade, via ciência estética e
biológica? Corpos manipulados por bisturis, corpos simulados, falsificados. A
mídia nos testemunha que o Brasil ultrapassou os EUA e se tornou campeão em
cirurgias plásticas. Na tradição clássica, o humanismo questiona os fundamentos
da razão moderna, as narrativas que nos afastam de Deus, divindade metaforizando
transcendência, o lócus onde depositamos
a fé no ser humano enquanto potencia criativa. Sem criação não há paixão,
tampouco humanismo. Qual a relação entre plástica, transcendência e humanismo?
O corpo ganha primazia, torna-se o
lugar de materialização do desejo, revelando a esperança de um futuro melhor -
possibilidade de reconhecimento e sucesso. É onde o homem da era tecnológica produz
a si mesmo. A trajetória do pensamento encurtou. O percurso da fantasia e da
utopia simplificou. Hoje o endereço dos jovens que seguem a cartilha da vida
espetáculo se resume numa clínica de cirurgia plástica. As noticias apontam
para uma reificação do humano. Fashion é escolher um boneco como ater ego. O
meu duplo é um ser midiático, industrial. É nele que vou me espelhar. Os
humanos não me interessam. O que eles têm para me oferecer? Prefiro o homem de
borracha, que não me frustra, tampouco me decepciona.
Entre as reportagens que apontam
mutações nas escolhas entre jovens e adolescentes, regulamentadas pelo
espetáculo, via mídia, destaco: “Celso Santebanes, 20, quer ser uma celebridade
de verdade. Se diz obcecado por beleza, sempre quis ser reconhecido, aparecer
na mídia. Fez quatro cirurgias plásticas para ficar parecido com Ken, o
companheiro da Barbie”. A imprensa confirma o deslocamento entre ciência,
cultura e corpo. Mundo interno e externo, desejo e política, eu e o outro. Quem
está agenciando o desejo humano? Por que a ciência segue os paradigmas da moda
atual, produzida por uma indústria truculenta e perversa? Transformar o corpo
humano em mercadoria é mais rentável, uma vez que o insere numa rede de consumo
de produtos de beleza. Dermatologistas, plásticas, cosméticos, salões de
beleza, spas do corpo.
A beleza hoje é normativa, produzida
pelos empresários da moda, que ditam os rumos da estética. Eles definem o
bonito e o feio. Contudo, importa investigar o que subjaz à busca desenfreada
pelo corpo perfeito, à intolerância com a imperfeição e a incompletude. A
tentativa de instaurar uma superfície brilhante revela a necessidade de fugir
do real. Como suportar o abismo sombrio de uma existência sem sentido? Como
enfrentar o feio, significante que nos remete à finitude? A velhice nos coloca
lado a lado com o efêmero, estética trágica imposta pelo tempo. O medo da
velhice, expresso na corrida incessante à beleza, expõe uma interioridade precária
e moldada na superfície da existência humana. Além de deflagrar pobreza
simbólica, aponta para um vazio de transcendência - empobrecimento afetivo e
laços sociais inconsistentes.
O feio em nossa cultura torna-se insuportável
quando revela uma conexão com o dentro, o sentir. Na verdade, o que não
suportamos é a dimensão do humano. Ao eleger a aparência, o externo como campo
privilegiado do brilho e do belo, estamos interessados em afastar as
perturbações, os ruídos que a existência nos coloca. Ser humano é ser
apaixonado, é se atormentar pela positividade da ilusão. Quão difícil seria
atender as demandas internas, os urros da alma que não cessam de nos incomodar,
exigir? Mais fácil é eleger falsos brilhantes, falsas esculturas, falsas idéias
de felicidade, representações simuladas de hedonismo. A hedoné moderna trilha na tecnocultura.
A rejeição do feio é um dos sintomas
das sociedades midiáticas, que cultuam a imagem e a colocam acima de outros
valores. O feio provoca conexão intensa com o sensível, por expor a vida como
ela é. O belo convoca o brilho externo - luz, imagem, aparência, show,
espetáculo. O feio convoca o dentro, por fora, ele não produz sedução alguma,
apenas repulsa. Talvez o apaziguamento esteja na aceitação do feio, uma vez que
ele nos ajuda a enfrentar a frustração, a fazer as pazes com a falta. A feiura
nos humaniza ao desvelar nossa condição de mortal e avisar que o tempo não é
benevolente. A morte é esse outro que nos invade e confunde os sentidos. Ela
exige que sejamos realistas, que cultivemos mais os sentimentos, nos ocupemos
com a intimidade, as vozes do coração. Para que trabalhar tanto, acumular
riquezas, se amanhã morreremos?
O feio na era tecnológica, dos
sorrisos espalhados no Facebook, é o espontâneo, o que escapa à produção, o que
não foi elaborado, maquiado. Quase tudo merece intervenção: o rosto limpo,
natural e imperfeito expõe o fantasma da falta – angústia ao enfrentar o real.
O corpo como tributo de um novo tempo é o corpo-mercadoria, o corpo-máquina. As
inovações tecnológicas trouxeram grandes transformações no campo das
subjetividades. Entre elas, destaco a percepção humana e o novo estatuto
imaginário corporal. Entram em cena novos personagens, corpos portando objetos
estranhos, desenhos, marcas simbólicas: aparelho nos dentes, unhas e cabelos
postiços, fios de ouro nas rugas, silicone nos quadris, dentes encapados. A
ciranda dos objetos sobrepõe ao sujeito, que se apaga entre dietas e salões de
beleza. O registro identitário é cunhado pela estética da transformação. Corpos
mutantes, sujeitos opacos, desejos suspensos.
“A junta comercial do Rio de Janeiro
revela que os salões de beleza cresceram 142% entre 2000 e 2013. Enquanto
cresce a procura por tratamentos de beleza, diminui a demanda por livrarias,
que recuaram 57%”. O corpo é o sintoma do homem. O que equivale dizer que a
nossa sociedade prioriza o culto à estética e à aparência, em detrimento da
essência, do conhecimento e do saber. Os holofotes estão direcionados para o
externo, as luzes do Olimpo miram os belos penteados. As belas palavras
definham no obscurantismo, nos templos de Salomão, entre dourados imitando
ouro. Simulacro de beleza oca. Vivemos a derrocada do pensamento, e se o
pensamento é uma forma de resistência, significa que estamos condenados ao
fundamentalismo midiático, na estética ou nas religiões.
“A mãe jogou o filho de 2 anos na
parede, matando-o. Alegou que a criança estava brincando com o seu celular, sem
sua permissão”. O celular, nesse caso, corresponde ao objeto de desejo do
filho, é ele que foi internalizado como parte do corpo da mãe. Desejá-lo é
desejar uma parte da mãe que lhe faltou – mãe abandônica, ausente. Mães envolvidas
entre tablets e smartphones, os novos objetos que fascinam. Brilhantes,
sedutores, cobiçados. A internet é o ópio contemporâneo, age como substância
tóxica, deixando a humanidade embriagada, viciada. Delírios provocados por uma
caixinha, nada de fantasias ao vivo, o prazer é on line. Precisa mais?
O eu não existe sem a alteridade. O Outro
da pós-modernidade é um objeto. Na nova dimensão psíquica, a criança, ao ser
marcada nas relações parentais - mais por objetos que por carinho, contato
corporal -, segue uma orientação funcional, operacional. As relações são
pautadas por agendas previamente estabelecidas. Os sentimentos devem seguir um
plano de metas, que se traduz pelo imperativo de viver todas as formas de
prazer em um só tempo. Se somos regulamentados por uma organização externa, é
de se esperar que os desejos próprios sejam desviados. Se não fomos marcados
por referências familiares sólidas, se não construímos laços sociais
consistentes, sequer adquirimos uma mínima proteção afetiva e emocional. Um
estofo básico que sustenta o sujeito diante das agonias da vida.
Ao privilegiar o externo, perdemos a
conexão com o subterrâneo, lugar onde cochilam as perturbações humanas. Ser
humano é se debater entre o trágico, o cômico, o belo e o feio. Todos são
elementos fundantes da loucura humana. E não há nada mais sedutor que uma doze
de loucura. É ela que introduz a paixão nas relações. Ao intervirmos no corpo
em função de um modelo, retiramos dele as insígnias, os traços familiares. Desprovido
do simbólico, o corpo-expressão se apaga. Abandona a memória viva, desejante,
para encarnar a imagem fria de um cadáver. Corpo sem persona. O mundo do pastiche é desumano. Beleza confinada em corpo
morto.
O filósofo Sócrates, exemplo de feiura,
conduzia os discípulos ao paraíso, ao reino do saber, a sabedoria metaforizando
o divino exercício do pensamento. A percepção da beleza que rege a existência
exige tocar entranhas, desvendar os mistérios da aventura humana. O feio, ao
mesmo tempo que provoca repulsa, fascina. Sedução, uma multidão de sentimentos,
muito mais que obra de arte - escultura em praça vazia.
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