Inez Lemos [1]
Como explicar a gênese da
violência que assola o país? Depredação de ônibus, bancos, linchamentos aos
supostos bandidos, execuções a pedradas, vasos sanitários e pauladas.
Crueldade, vingança, ira e ressentimento. O caldo da maldade é engrossado dia a
dia. Ao analisar os sinais de descontentamento e vandalismo, esbarramos em
questões políticas e psíquicas. O inconsciente, ao ser contaminado pela
realidade social, sofre os efeitos da vida política.
O descobrimento do Brasil fez
parte do projeto de modernidade, em sua corrida pela acumulação de riquezas. Somos
filhos da pirataria, da contravenção e da corrupção. Filhos de uma relação de
interesses - o português que engravidou a índia como forma de obter informação
de quem aqui vivia. Estratégias de dominação. A arte de manipular para melhor reinar.
Alienar, impedir que o outro participe, interaja. Quanto mais alienado, mais
fácil de controlar. Contudo, o brasileiro, cansado de desrespeito e descaso, resolve
se rebelar contra o poder público e privado. Não sobrou ninguém. A espada está
no pescoço de todos nós.
O que move o mundo é o desejo
insatisfeito. O capitalismo manipula, os políticos fingem que não escutam, mas
a verdade é que não se controla um país oferecendo apenas pão e circo, celulares, tablets,
lipoaspiração. O trabalhador, além de cartão de crédito, exige transporte,
saúde e educação de qualidade. Anseia por dignidade, direitos, justiça. A
desigualdade provoca revolta e ressentimento. O sonho agora é por igualdade de oportunidades.
Punição aos ladrões de baixo e de cima. Quando o crime é uma prática da classe
política, rebelar é a palavra de ordem entre os que sofrem as conseqüências.
O Brasil é terra de ninguém, onde as leis dificilmente
são cumpridas, onde viceja o racismo, a homofobia e a intolerância. A onda
fascista é um efeito da anomia, da farra e desfaçatez dos poderosos. Como
circular idéias de ética, honestidade e honradez, se grande parte dos
governadores, prefeitos e deputados direciona o olhar para suas contas
bancárias? Educar e governar são tarefas
intermináveis. Aprendemos a amar, respeitar e governar com os pais. Pai é
aquele que, ao exercer a função paterna, simboliza a lei: interdita o desejo
descabido. Cobrar doçura de um povo injustiçado é despautério. Sem o bom
exemplo, os filhos continuarão no vandalismo. Seria o Brasil um convite ao
banditismo?
Por que somos tão condescendentes com os políticos
corruptos? Se a corrupção sempre foi um direito dos que dela se beneficiam,
privilégios e injustiças sempre fizeram parte dos que detém o poder econômico e
político. Educar é barrar os filhos em seus impulsos destrutivos, inserindo-os
nos limites da lei. Sem interditar, frustrar, a chance da criança tornar-se
perversa é grande. A política é o palco privilegiado dos perversos, é onde eles
são amparados em seus atos ilícitos e soltam as garras da ambição.
O passado coronelista e
patrimonialista nos ensinou a utilizar o espaço público como se fosse privado. Ao
mesmo tempo que o criticamos, repetimos posturas que condenamos. Como
ultrapassar o atavismo moral que parece nos definir? Mudar uma cultura, fundar
outra idéia de nação, quão difícil! É trabalho profundo, há de se tocar
entranhas e rever o lixo recalcado. Todo sintoma aponta para uma tentativa de
cura. Ao mesmo tempo que denuncia o que não vai bem, revela um gozo – prazer e
desprazer na compulsão à repetição. Reclamamos dos corruptos, mas somos
tolerantes quando eles defendem nossos privilégios.
Ao analisar a violência, penso na palavra
ressentimento. Res-sentir -
sentir duas vezes, não perdoar, guardar mágoas, alimentar vingança, não se
implicar nos conflitos. Ressentimento é
sentimento que fixa o sujeito na neurose. A neurose paralisa o sujeito no
sintoma, impedindo-o de avançar nos bons sentimentos. O ressentido é um
infeliz, pois se cristaliza na amargura. O brasileiro, que sempre gozou da
condição de ressentido e trapaceado,
agora quer, nas ruas, exigir políticas públicas de qualidade. Melhor que reclamar
em mesa de bar ou descontar no erário, engrossando o caldo dos corruptos.
A exposição de um cotidiano
promíscuo provoca no brasileiro o desejo de desforra, de botar para quebrar. Se
para o político a demanda da população é o que menos conta, se poucos se ocupam
com suas necessidades, é de se esperar que o muro se rompa. No filme Getúlio, quando não havia mais o que
esconder, o presidente Vargas confessa “Nunca me pediram nada para o país (ou
para povo), sempre me pediram algo para alguém”. A violência das ruas metaforiza
o filho lesado contra o pai perverso. Passa-se ao ato de forma impulsiva,
impensável. É sangue fervendo na veia.
Nossa
história ressalta a ausência de interdição capaz de regulamentar o apetite pelo
gozo e organizar um quadro social que outorgue a cidadania. O romance familiar
brasileiro, nossa mitologia, produziu a fantasia do privilégio e da violação de
direitos. Revisitando as determinações histórico-sociais dos processos de
subjetivação, identificamos o descaso pela res-pública (coisa pública).
O ethos que nos funda é o do prazer e não o da felicidade. A imagem que
vendemos é do paraíso sexual. Mulheres gostosas e de fácil acesso.
País idílico, frívolo, que não soube se fazer respeitar. A Copa promete
jogos e orgia. Goleada no campo e na cama. A volúpia e o fascínio que exercermos
no imaginário dos estrangeiros condena nossa filiação. Submetidos ao imperativo
do gozo, deixamos de cobrar o ouro que o mundo nos deve. Filhos de um amor
pérfido. Sedução e traição.
A filha pobre e de pouca escolaridade, diante do dinheiro, se corrompe e
se prostitui. Promiscuidade que lhe atravessa a alma e a lança na sarjeta das
perdidas. Menina de um futuro morto. O que não nos faltam são motivos para
subverter a ordem, romper com a imagem do negativo social. Chega de manipulação.
Mídias e governantes nos alienam e dominam. Submissos aos interesses do
mercado, nos fixamos no gozo.
A
herança escravocrata explica a sujeição ao grande outro e a vocação à dependência.
Consumista, imediatista e permissivo. Reserva libidinal do mundo. Aos olhos dos
estrangeiros, a imagem será de eterno prostíbulo? Como explicar a tendência da
mulher brasileira à nudez? Nossa condescendência com os sedutores revela o fracasso
da função paterna. Adoramos nos exibir. Do carnaval ao Facebook, não perdoamos
os flashes. Repetiremos na Copa o destino colonial? Permitiremos que o
estrangeiro entre e explore o melhor, seja açaí ou adolescentes?
Sem
Marx e Freud, sem pudor e ética, vencerá a violência. O niilismo quer acabar
com a consciência social - utopia por maior distribuição de renda e
oportunidades. O fantasma fundamentalista, aliado ao obscurantismo que se
esconde nas religiões de esquina, prega a ignorância e a insanidade. Viver é
enfrentar contradições. Saber lidar com os paradoxos humanos.
A anomia revela a desorganização social, a ausência de leis. Para que o
tecido social se articule, é necessário mais que renúncia pulsional. Não se
constrói uma nação apenas com repressão. O respeito aos pais se deve ao amor –
o temor apenas é insuficiente para que a criança internalize a lei. Para que o
brasileiro se anime e torça pelo Brasil, é preciso haver paixão. É preciso
motivo para que o filho torça pelo pai. Contudo, a questão da violência no
Brasil, antes de ser política, é psíquica.
Se a Copa servir para deflagrar a
consciência de cidadania, que aponta que a responsabilidade na construção de um
país é de todos, valeram os investimentos. Se servir para estancar o masoquismo
e investigar a condição de vítima, melhor ainda. Toda neurose, todo lugar de
gozo, responde por uma filiação. A violência tanto pode ser efeito de uma metáfora
paterna inconsistente, como do desamor do pai pelo filho. Como respeitar a casa
se nela somos violentados, desprezados? Por tudo isso é difícil para o
brasileiro sair às ruas com bandeiras e apitos. No lugar da torcida, prepara-se
a revolta. Como sustentar um outro lugar, uma outra filiação?
O
significante que operou como referência simbólica foi o da permissividade – riqueza
e sexo em terras tropicais: praias, borracha e minério. Quando a filiação
fracassa, a maledicência ganha espaço e se instaura como arremedo da função
paterna. Colonização e exploração, corrupção e impunidade, permissividade e
leviandade. A história e os significantes nos condenam. A onda de ações
predatórias revela a condição de rebotalho, ela está no inconsciente do sujeito
e não em sua condição econômica. Traço de filho rejeitado, com mãe omissa e pai
ambicioso. Filho do português com a índia, do coronel com a escrava. Como
reparar as perdas? Não estaria os black blocs denunciando o fracasso da função
paterna?
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