Inez Lemos
O mundo atual recusa a figura transcendente. Os valores são definidos de
forma alheia à história, à mitologia e à carga simbólica que garantia as
trocas. Somos solicitados a nos desfazer das nuances simbólicas que subsistiam
nas transações de mercado. O foco é o simples e neutro valor monetário da
mercadoria. Quando viver passa a ser um ato operacional, sem nenhum apelo
transcendental, tradicional e moral, a humanidade, destituída de sua alma, sua
mais nobre substância, se desespera. Ao homem dessubstancializado e
dessimbolizado resta a servidão ao duro jogo da circulação infinita de
mercadorias. Assim, livres do passado e dos signos que nos identificam, reverenciamos
as propostas da sociedade de mercado. O novo sujeito, desatrelado de sua carga subjetiva,
é oco, triste, entediado e deprimido – uma vez que fora do simbólico, circula apenas
no real. E a vida no real é insuportável. Impossível ser feliz transitando por
meio de semblant soft.
Destaco alguns traços de nosso tempo no propósito de investigar o
sofrimento vivenciado pelos jovens, quando deles são esperadas apenas a venda e
a compra de mercadorias. Muitos não são acolhidos em seus delírios simbólicos, em
suas fantasias. Quando um dos integrantes da família apresenta desajuste, foge ao
roteiro doméstico e decepciona, fere expectativas, opta-se por sua exclusão.
Expulso do paraíso, esse indivíduo amarga a devastação, pois nem tudo é
negociável. Destituído de sua autonomia e de sua insígnia narcísica, o jovem se
vê diante do mal. O mal é o sonho que não se cumpre.
A arte é a instância que melhor acolhe a expressão humana, expressão de
desamparo e solidão. É fascinante abordamos o vazio e a incompletude humana por
meio do belo. Ao criarmos, elaboramos os sentimentos incendiários que nos
torturam. O que falta aos jovens que saem de cena e puxam, precocemente, a
cortina da existência? Como não se demitir de um mundo que pressiona para o
sucesso e não tolera o fracasso? Como esculpir a angústia abissal, enlaçar-se
no erotismo do sonho que não se realizou? Sublimar é descobrir formas de
suportar o objeto perdido, a falta tributária da condição humana. Quando as
perdas não são simbolizadas – bordadas com pedras e miçangas, restam-nos a
amargura, o gosto de morte na boca. Como enfrentar frustrações? Frustração – frustra é advérbio que significa “em
vão”, que se relaciona com fraudar, subtrair. Sentir-se frustrado é
experimentar a sensação de estar em falta, em desvantagem - mágoa por algo que
não se cumpriu.
A
existência humana é peleja, esforço destinado a apaziguar insatisfações. Todos
anseiam por gratificação - estado de graça, sentimento de plenitude e reconhecimento.
Somos movidos por pulsões, elas tanto podem produzir obras de arte quanto
neuroses. Que destinos devemos dar às pulsões, que interesses norteiam as
escolhas dos jovens? A psicanálise vincula criatividade e sublimação. Cada
cultura incentiva modalidades de sublimação. Ao mudar o objeto da pulsão, tem-se
o reordenamento no circuito pulsional. Ou seja, pulsão é energia conectada aos
valores de sua época.
Em Escritores criativos e devaneios,
Freud aponta a criação como responsável pelo bem estar, tanto do autor como do
leitor. Diz ele: “o escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por
meio de alterações e disfarces, e nos subordina com o prazer puramente formal,
isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias”.
O debate aponta para a capacidade de
o sujeito se envolver com o que produz - criação artística ou atividade que lhe
confere satisfação. Por meio da sublimação, imprimimos sentido a fantasias que
não cessam de pulsar. Cada época elege os valores que vão operar na proteção ao
sofrimento e à loucura. Como orientar os interesses narcísicos? A escolha entre
uma vida empobrecida, neurótica ou de grande riqueza simbólica dependerá de
nossa capacidade de sublimação. O vínculo que enlaça o indivíduo e o coloca na
posição de sujeito desejante e entusiasmado com sua produção se situa numa
fantasia inconsciente, pois o objeto que causa desejo é perdido desde sempre. Impossível
reeditar a primeira experiência de prazer. Resta-nos descobrir formas
simbólicas de representá-la.
Toda civilização é fonte de
sofrimento, viver em sociedade exige renúncia, nunca vamos nos realizar plenamente.
Entretanto, devemos dar ouvidos aos berros, ao que em nós urra, clama por
satisfação. É trabalho de detetive, pois há toda uma logística em nos desviarmos
e nos confundirmos, fazendo com que desejemos o que, no fundo, não desejamos.
Ao transitar fora do eixo subjetivo, desprezamos a herança simbólica, empobrecemos
a existência e, vulneráveis, sucumbimos frente aos interesses do mercado. Viver
bem, cultuar a satisfação interna, enfrentar a falta visceral e o vazio
existencial são tarefas de toda uma vida. Aspirar à felicidade é função social.
O sujeito feliz sabe compensar a insatisfação provocada pela civilização. Suporta
melhor contradições e adversidades da
vida.
Pesquisa realizada no Brasil
registra que a taxa de suicídio entre jovens aumentou cerca de 30% nos últimos
25 anos. Para o psiquiatra Neury Botega, da Universidade estadual de Campinas
(Unicamp), é importante falar sobre o assunto. Esse tema deve deixar de ser
tabu entre os profissionais da saúde. Dados relatados pela imprensa comprovam que
o deserto é destino dos não engajados no discurso capitalista. Conversando com
jovens que anseiam por realização pessoal e profissional, percebo que a maioria
se sente frustrada, infeliz por não conseguir ocupar um lugar de destaque e por
não ser reconhecida pelo que produz. Junto da frustração há a pressão da
família e da sociedade, pois a maioria é educada para brilhar, ganhar muito
dinheiro e fama.
A vida que se tece no anonimato, longe das luzes da ribalta, exige
coragem moral. Superar a incompletude e a transitoriedade não é tarefa fácil. Excluídos
entre os bens sucedidos, sem expectativas e impotentes para provocar movimento
em suas vidas, muitos se desesperam. Como enlaçar o sujeito, como resgatá-lo em
um vínculo erótico que garanta satisfação?
Será que o suicídio, no estado atual
do capitalismo, metaforiza o fracasso da sublimação? Na luta para obter prazer,
algo fracassa. O prazer não foi substituído pela satisfação sublimada - a
gratificação narcísica não se cumpre na produção artística ou profissional. Será
que a tecnocultura não é suficiente para proporcionar aos jovens o
apaziguamento necessário, os meios que vão operar na realização dos desejos? Privados
de suas vias de expressão e diante de sonhos frustrados, muitos se culpam pelo
fracasso. Faltam- lhes forças para, da lama, fazerem ouro.
O inferno é qualquer lugar que nos limita e impede de expressar
incômodos, sentimentos oceânicos. Se não formos competentes para descobrir
nichos de paixão, se não nos deliciarmos com o que produzimos, sucumbimos. A felicidade
está em gostar. Sem gostar é impossível ter saúde. Gostar é diferente de ansiar.
Ânsia, sanha, insânia. O corpo em fúria dilacera. Contrariado, o sonho é dantesco
- tormento, desgosto: tenta fugir ao açoite, imperativo que nos conduz a atos
desarmônicos com a natureza ôntica. Saber recusar manobras que nos embaraçam e impedem
a conexão com o próprio é garantia de satisfação. A gratificação potencializa,
empresta força ao desejo frouxo e o impulsiona. A atividade criadora barra a
frustração e viabiliza o enlaçamento do sujeito com sua interioridade, disponibilizando-o
para a produção artística, superando o medo do fracasso e a angústia ao se
expor ao outro. Na alteridade, realiza-se o laço social, a comunicação com o
mundo.
O suicídio é a forma radical de escapar da sensação de impotência e da
dificuldade de provocar mudanças. A passagem ao ato sem visitar entranhas. Ou o
tédio deflagrado pelas máquinas, quando as relações interpessoais perdem
consistência. Hoje, amor e amizade são conduzidos por sites - ações e afetos que
antes pertenciam ao acaso agora são tarefa de empresas virtuais, esmaecendo a
intensidade dos sentimentos.
Quando não ocupamos lugar que assegure pertencimento, desabamos. Sem
partido e sem heróis que os representam, jovens partem em busca de uma causa -
o coro dos descontentes se manifesta nas ruas, arrisca-se a vida em revoltas. A
vida só vale a pena quando se tem uma causa pela qual vale morrer? A luta não é
mais de classe, mas de place – lugar.
O lamento pela perda de espaços de subjetivação e pela descrença no consumo individualista,
que não o preparou frente aos anseios existenciais. Se fantasiar e simbolizar é
tratar a insatisfação, muitos perambulam no real - inferno que habita cada um
de nós.
Inez Lemos - Psicanalista
Inez Lemos - Psicanalista
Um comentário:
Prezada Dra. Inêz.
Meu nome é Ronaldo Gomes Alvim, sou biólogo de formação e doutor em biologia social.
Gostaria de felicitar-lhe sobre seu artigo. A questão do suicídio entre os jovens, de certa forma, me fez remontar a minha tese de doutorado desenvolvida na cidade de Itabira quando percebi um grande índice de suicídio no ano de 2001 e um crescente número de tentativas de suicídio em todas as idades.Cito na minha tese que teve um capítulo inteiro voltado a esta questão , de um caso de uma criança que se sentia só na sua casa porque os pais saiam para trabalhar e quando chegavam queriam ver novela e jornal e pouco conversavam entre eles. O pior Dra. que todos naquela cidade acobertavam as tentativas e consumações de suicidio como se nada estivesse acontecendo. Lembro de ter procurado um secretário da saúde em que foi rápido no seu depoimento e logo mudou de conversa. Ele disse "em Itabira não é diferente dos outros lugares no mundo".Bom Doutora, é isto. agradeço sua contribuição para um tema tão importante e INFELIZMENTE sabemos que o Estado não vai se pronunciar.
Fico aqui para qualquer discussão e se tiver interesse na minha tese ou trabalho publicado poderá encontrá-lo no meu blog http://alvimrg.blogspot.com.br/p/trabalhos-eou-artigos-pessoais.html ou me solicitar pessoalmente.
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