Maria chega à cidade
atravessada de sertão – suas metáforas e magias. Córregos, cachoeiras,
paineiras. Desde pequena procurava sua grota. Sabia que mulher carrega grotas
profundas que, não tratadas, faladas e ouvidas, a enlouquecem: eu me sentia um
embornal, a sacola dos tropeiros onde sempre havia prendas - bolo, carne seca. Sei
guardar preciosidades, fantasias que, nesse mundo de plástico e mochilas da
moda, interessa a poucos. Temia desgarrar-se de suas veredas, lavoura arcaica:
viver é se embrear. Na cozinha Maria voava, transcendia. Taioba, sexo, fubá.
Misturava desejo de mulher com mania de mãe. Casa, comida, fogão a lenha.
Descobriu que a mulher, antes de querer gostar de plantar taioba e pimenta, precisa
cansar de sexo. Precisa desacreditar de amor eterno, de carícias de homem: cozinha
é para depois da cama, quando se esgota a alma iludida, lasciva. Maria já ferventou
amores, fritou esperança: mulher sonha, sonha alto. De repente acorda, coloca
os chinelos e vai colher taioba. Ser mulher é profanar pecados. Maldição boa.
Queimar a alma na panela de ferro, desejo iluminado que transcende. Arrepiar,
chorar e lamber lágrimas - quem não chora não sabe ser feliz. O choro prepara o
rosto para o riso. Chorar levanta a pessoa, desperta emoção que cochila - cura
tristeza, mau olhado e desesperança. Na cozinha, picava cebola, fazia angu e...
pulava cercas e currais. Precisava
esquecer brutalidade de homem - acolher a revolta, transgredir. Aborrecida, encerava
casa, amassava pão de queijo. Redenção? Só nos romances íntimos: vida sem
intimidade não vale - só vale quando falamos daquilo que nos faz chorar ou
gargalhar. Coisa que, ao falar ou ouvir, amolece a gente. Ficava mole de tanto
sentir. Buscava intimidade em tudo - nas histórias de família, na chaleira
envelhecida, na fruteira de cristal. Vasculhava pecado, remorso e
arrependimento. Baú de segredos, buraco escuro onde guardamos os cacos – sobras
pujantes de um passado de erotismo, inveja, raiva e paixões. Sentimentos
embrulhados em veludo vermelho, cheirando a Madeira
do oriente, perfume de tia vaidosa.
Hoje, Maria quase não vê
lugares de memória, é tudo descartável. Quando quer se encontrar, perder-se em
devaneios e atavismos, visita museus. Poucos gostam de rememorar, revisitar intimidades:
intimidade a gente só fala pra amigos de verdade. Não é coisa pra se exibir no
facebook. Quando a gente se abre todinha, sem reservas, perdemos a defesa
diante do outro. Mulher tem que saber sentir e saber mostrar. Saber distrair as
vozes diabólicas que pulsam, pressionam. Ser mulher é pelejar com as
intermitências do coração. Coração guloso que deseja todo o tempo. Mulher não
sabe economizar sentimentos, esconder fantasias. É bicho atormentado, insatisfeito.
Maria é mulher antiga, não tem
facebook, nem mania de shopping. Acha as moças da cidade todas iguais. Não sabem variar, brincar com as emoções, explorar
cavernas. Sedução é pra ser cavoucada - beleza que vem da estrela que cada um
carrega, brilho próprio. Não é Botox, lipoaspiração. No fogão descobriu
felicidade simples - como se iludir com o possível. Trabalhar com as mãos é
fazer o caminho de dentro - tortuoso, esburacado, côncavo. Trabalhar só com a
cabeça deixa a alma fria, desidratada. Viver é desvelar sabedorias - todos têm,
ela busca.
A vida que a gente escolhe é a
que aprendemos a gostar desde pequena. Aventura humana que se cozinha na subjetividade,
temperada com lágrimas, risos e garra. Força que brota de dentro, como a
taioba, que nasce da terra molhada. Maria reverenciava a vida, encarnava as
mulheres que não abandonaram o desejo no tanque: desejo é promessa não cumprida,
é fantasma que não desaparece. Na cama ou na cozinha, é sarna que não termina. Fardo.
Além da dor de existir, carregava as contradições do mundo: capitalismo, machismo,
racismo. Para os irmãos, bicicletas, motos. Mulher se diverte na cozinha,
enrolando rosquinha. Só teve uma boneca na infância. Mesmo assim, o irmão, quando
resolve exercitar os dotes de futuro médico, a mutila com ferro do pai marcar
boi. Como se proteger das invasões fraternas e machistas? Os irmãos abusavam de
Maria com o beneplácito dos pais. As brincadeiras, sempre agressivas, abriam um
abismo em sua fragilidade cor de rosa. Descobriu que ser mulher é coisa pra
macho. É peleja pra vida toda: feminino é sentimento insatisfeito que não cessa
de incomodar. Gostava de debruçar a alma gulosa, fragil, cutucar abismos e arranhar
sentimentos. Depois de muita decepção, recolheu as fantasias que excediam -
desejos inoportunos. Mulher fraca é insuportável, tem que fingir indiferença.
Demissionária da posição
submissa, da loucura feminina quando não tratada, firmou pé: ser mulher é se
reinventar, é construir identidade, conquistar poder. Descobre que só havia
duas opções: se fazer mulher brava e determinada, ou enlouquecer. Submeter-se,
jamais! Maria foi estruturada na raiva. Precisava receber, recuperar substância,
intensidade. Olhava a cidade e sentia o cimento dentro. Necessitava curar o
vazio: enquanto os carros correm, eu urro por dentro. Estava pronta para a vida
com poesia, senão seria se extraviar, naufragar. A salvação viria da riqueza
simbólica - divindade através das palavras. Abandonar de vez as futilidades,
característica das cidades do interior paulista. Ar parado, respiração ofegante
- tonteira diante das vitrinas. Abundância, tédio, vácuo. Nada transcendia aos
arranha-céus. Paisagem de pouca sombra, curva e metafísica. Aridez. A atmosfera
seca das pessoas desidratava os miolos. Ficava aflita de tanto desejar outro
mundo. Atordoada pelos berros de dentro, simulava fugir - jogar a mala, pular a
janela e descer pelo coqueiro. Vasculhar novas veredas, descampar outros
sertões - vida de rico é pequena por dentro, só é esticada por fora.
Como se encontrar nas mulheres
invisíveis deste país, longe do reino das botas e botinas? Rezava por desespero;
a mãe gostava de rezar, ela, de nadar. Mania de mandar os outros tomarem banho.
Achava que, se lavando por fora, se lavava também por dentro. Um dia descobre
que, para lavar a alma, precisava de mais coisas além de água e sabão. Maria não
acreditava em bondade bobinha. Desconfiava do calvário feminino, lugar
instituído pela mãe: Mulher tem que aceitar a cruz, fazer mortificação, se
entregar ao sacrifício. Vaidade pura, humildade é gostar de aparecer pelo
sofrimento. Recusava, aos olhos dos outros, ser reconhecida como heroína. Não
queria ser exemplo pra ninguém, apenas inventar a si mesma: precisa mais? Uma
Maria entre tantas: cheia de graça, sem graça, sem santidade e sem véu.
Desvelada. Pecados todos têm. Família é lugar de injustiça. Quando muitos
filhos, o amor não dá para todos. Sempre falta: mãe gosta de dar mais amor pra
filho homem. Mulher, na roça, tinha que se virar com o amor dos animais. Admirava
as galinhas - alegres, assanhadas, histéricas: porco é preguiçoso, sujo,
lambancento. Cavalo, macho elegante, nasceu pra conquistar. Há homens que
conquistam só de chegar e olhar. Até dói. Gostava de homens e de cavalos.
Com a magia dos rios no peito, escrevia
para desatormentar a dor, sustentá-la na esperança: não se pode matar a
angústia, ela carrega sinais que nos salvam e nos garantem voo ontológico. Era
encantada com as palavras. Existem palavras moles e palavras duras. Com elas
esvazia-se a alma incendiária e faz-se belezuras. Sua diversão preferida era
sentir: hoje as pessoas preferem comprar que sentir e gostar. Ficava molhada de
tanto sentir - arar o passado, apaziguar fantasmas, diabruras subterrâneas. Fantasias
que nos protegem da loucura. Como se abastecer de histórias em que cochilam vivencias
consistentes e saborosas? Maria não conseguia olhar para as panelas e não ver
transcendência. Cozinhar é produzir sentido - colocar de molho sentimentos,
palavras. Temperar, junto com a carne, mágoas e ressentimentos. Marinar
consciência, preparar o perdão. A história que ensaio contar é tecida na brasa
- fogo que arde, emoção que afaga e toca um pedaço do céu. O encontro da mulher
com a verdade, a linguagem certa para nela se afirmar. Quando isso acontece, é
epifania, alegria esfuziante.
Um comentário:
Amei, amei, amei o seu texto.
Ja li cinco vezes e cada vez me vejo mais nos sentimentos da Maria...
Viver e desfazer nos...mulher e sanar feridas...mulher e coisa pra
macho!!!!!!! Divino.
Obrigada pela maravilha.
Um abraco,
Yara Dalva
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