Inez Lemos
Se o pai foge à responsabilidade, se não cumpre bem a função paterna, como
a de garantir saúde e profissão ao filho, se não o respeita, um dia o filho
cobrará caro desse pai. Se a nação é a casa, a morada do povo, os governantes representam
os pais, os que têm o dever de amparar os filhos, prepará-los para enfrentar o
mundo. Contudo, quando o povo se vê desamparado, excluído de seus projetos, ele
se desespera. E sem esperança, se revolta. Há muito vivemos por um fio, dependurados
na corda da crença por um amanhã melhor. A Ficha Limpa não passou de promessa.
No Congresso mais caro do mundo, a maioria constitui uma máfia, cujo trabalho é
convencer seus pares a votar em interesses próprios. Os homens de ternos pretos
que sucateiam o país em troca de poder, vaidade e muita grana. Sempre para
eles, enquanto o povo rala dependurado em ônibus e metrôs como gado.
Toda relação social é determinada por um discurso e o discurso que
permeia o debate sobre a violência, na sociedade de mercado, aponta para o
vazio, a falta de sentido e, portanto, de perspectiva. Como enfrentar o
problema atacando apenas suas manifestações? Propostas de combater a violência
com carros blindados, polícia e cerca elétrica deflagram o quanto a sociedade
não está interessada em desvelar a questão até as raízes. Se ninguém nasce
violento, é de se perguntar: em que medida o Brasil produz o delinquente, o
vândalo - monstro que espalha terror? Como evitar que eles se reproduzem?
Sabemos que a questão é complexa e começa dentro das casas, nas famílias, e esbarra
nas políticas públicas, instituições de ensino, mídia. Arranha todos nós, deixando
de ser apenas uma questão de segurança pública, para ser uma questão subjetiva
– diz das formas de subjetivação social, pois educar um filho é função social.
Todo país, como toda família, deve se sustentar em parâmetros
filosóficos, sociológicos, os quais nortearão os rumos a seguir. Uma sociedade
que prima pela competição, pelo desejo do ganho fácil, que prega a inveja e não
a solidariedade, o que esperar de seus cidadãos? Prevenir – ver antes, agir por
antecipação. Ao nos prevenir contra a violência, o melhor é ouvir os anseios do
filho e considerar as demandas com seriedade. O cenário mostra crianças nas
periferias que crescem sem perspectiva, convivendo
com a polícia, que, muitas vezes, agride e mata mais que protege. Quais as
chances de esse garoto se tornar um criminoso? É quando ele olhará o outro, o
bem nascido, com fúria, inveja e desejo de extermínio, uma vez que não foi
acolhido com carinho, tampouco com olhar de respeito e reconhecimento. Apenas
lhe apontaram o lugar de negativo social. O que norteia o impulso agressivo é a
identificação com um ódio pela criança que ele foi, uma infância de dor e
sofrimento, exclusão e violência. Portanto, o outro, o que lhe confere ódio,
deverá sofrer ainda mais, e nele descarregará toda a revolta pela injustiça
social. Entretanto, se realmente estamos interessados num Brasil melhor,
devemos repensar nossa participação na sociedade - nosso compromisso por uma
cidade melhor, uma família melhor.
Muitos dos jovens violentos são movidos a inveja, cujo conceito revela a
forma como nos vemos no outro – olhamos o outro que nos incomoda. É quando
desejamos ocupar o lugar desse outro e, não conseguindo, orientamos a ação no
sentido de privá-lo daquele objeto ou lugar de privilegiado que ocupa. A inveja
deflagra significantes como: compre, venha, participe, assine! Todos são
convocados a comprar a felicidade, um lugar de prestígio. E aos excluídos do
banquete, o cacete! O revoltado, o desamparado busca, muitas vezes, uma
oportunidade de revanche contra a violência da qual foi vítima. Nunca combateremos
a violência com cinismo e hipocrisia, fingindo que essa conta não é de todos
nós. Os sofistas vão dizer que cabe apenas aos políticos, esquecendo-se que esses apenas legitimam
interesses, e se fazem malfeito, cabe a nós cobrar e protestar, como os jovens
nesse momento. Nada mudará se nós não mudarmos, não repensarmos valores e práticas
sociais. Será que realmente estamos dispostos a nos implicar em outras
posturas, novos paradigmas? Como iniciar uma mudança de cultura, implementando
micropolíticas – políticas de subjetivação? Como contribuir na formação de um
novo sujeito, um novo brasileiro: humano, solidário, gentil, atuante e
interessado nos conflitos individuais e sociais?
Todos devem se implicar. Os empresários - muitos podem devolver à cidade
parte dos lucros aviltantes em forma de cultura, arte, fundações. As montadoras
de carro podem contribuir com a qualidade do transporte público - chega de tanto
lucrar no Brasil, país onde o carro é mais caro do mundo. Como o oligopólio do
transporte coletivo, que há anos enriquece e pouco devolvem à população – nunca
o olhar chega ao usuário. E as famílias se comportando melhor no trânsito -
fila dupla nas escolas, até quando? Seria muito sugerir que estacionem o carro
e levem o filho até lá? Ética e cidadania ensinam-se com mais leitura e menos
TV. O Brasil é um dos países onde menos se lê no mundo. Somente esticando o
olhar à nossa volta, somente mudando o foco, posturas e paradigmas,
conseguiremos um país mais agradável para se viver. Sejamos realistas, exigimos
o possível! É o Brasil no divã por um futuro melhor.
O erotismo ganhou as ruas. Eros evoca paixão, fervor - garra em defender
um país, uma causa. É o que presenciamos quando a geração Facebook, que fingia
apodrecer diante da web, resolve dar lição de cidadania. Num só grito, rompe com
o biopoder, quando confinava desejos e sonhos em apartamentos - espremendo
utopia, esperança e coragem. Sim, eles estão lutando por muito mais que smartphone
e iPad. Os significantes que emergem das ruas são: compromisso e respeito com o
público. Não brinquem com o sentimento do povo, há algo no ser humano que não
pode ser violado e que se chama dignidade. Não se fere com balas de borracha e
bombas de gás lacrimogêneo o coração que pulsa na cidade. O país, ferido em seu
narcisismo, sangra e exige perdão. Perdoar em política é assumir erros, rever
prioridades. Aos políticos, cabe repensar suas práticas, pois a vida sem Eros é
abismo, osso duro de roer. Sem o erotismo da juventude, o país brocha. Exigir
reconhecimento é erótico, é desejar festa. Eros sabe apreciar a vida, gosta de
bons vinhos, é amigo de Baco.
A cidadania metaforizada nos vinte centavos ultrapassa a escuridão, abre
clareira e aponta rumos. A rua foi ocupada e nela registraram o recado - não
desejamos o que vocês querem que desejamos. Há de haver o dia em que o filho
terá um lugar no desejo dos pais. Gostamos de Copa, mas deveríamos definir
prioridades, como saneamento básico, escolas profissionalizantes de qualidade, hospitais,
planejamento familiar para as mulheres de baixa renda, políticas de fixação do
homem no campo, visando desafogar as metrópoles. Governar é saber priorizar.
Onde a bandidagem é maior no país? O povo foi violentado e desrespeitado
por aqueles que o deveriam proteger, amparar. Somos órfãos de pais vivos – políticos
irresponsáveis, descompromissados e corruptos. Lutemos por um congresso sério,
políticos que trabalham por amor à pátria e não apenas para defender seus
feudos e altos salários. Onde buscar um discurso que sustenta uma moral de
princípios? Em Kant? Onde buscar forças para acreditar que a lógica perversa e
cínica dos sofistas não irá prevalecer ao sofrimento dos desvalidos, aos
protestos dos desamparados? O cinismo é a caricatura da moral iluminista - a guerra
entre capital e trabalho, a falência do marxismo sob o espetáculo, a exploração
e a manipulação. O fetiche da mercadoria virou contra os feiticeiros. Ninguém acredita
mais em seus feitiços. A confraternização dos perversos com a exclusão dos
pobres, negros e homossexuais estão com os dias contados. Presenciamos a
revolta dos filhos contra pais fundamentalistas e obscurantistas, que debocham
dos direitos humanos - Feliciano e sua “cura gay”, entre tantas pautas
descabidas e insanas.
A massa ressentida exige o fim da orgia. Exigir respeito é promover
autoestima, é ser protagonista da história, registrando escolhas e propostas.
Devemos ler o recado das ruas para além dos olhos. A frente fria de inverno
chega anunciando: não queremos apenas bens de consumo. Nossos sonhos não cabem
num micro-ondas. Desejamos ir além das montanhas - parem de nos propor o vazio,
o nada que nos levará a lugar nenhum. Desejamos a essência - tocar a vida na
plenitude, apreendê-la com sabedoria. Queremos sorver o conforto material e o existencial.
Para tanto, estamos aprendendo a fazer política e pretendemos continuar na
escola - revendo lições, debatendo propostas. Vale lembrar Freud e suas três
profissões intermináveis: educar, governar e analisar. Tarefas que não se
findam.
Um comentário:
Querida Inez, bom ver o "país" no divã como coloca. A alienação nos mata de várias formas. Um grande abraço,
Teresa
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