GERAÇÃO TARJA
PRETA[1]
Inez Lemos
Acredito ser papel dos intelectuais
anunciarem as mazelas de seu tempo, como bem fez Roseli Fishmann, professora da
Universidade de São Paulo (USP), ao denunciar os perigos que a “geração Ritalina”
está sujeita, tendo em vista o aumento do consumo da medicalização em
substituição a processos educacionais mais plenos – uma solução aparentemente confortável
para as famílias, escolas e sociedade. Todo educador deve prevenir os pais ao
desconfiar que o caminho apontado como saída coloca a saúde do estudante em
risco. Ao debater o uso de Ritalina e congêneres, devemos estender o olhar à
cultura a que estamos submetidos, e que reforçamos quando exigimos, de forma
obsessiva, que os filhos potencializem o desempenho escolar.
Quais as conseqüências, na saúde psíquica dos filhos, de pais ansiosos por
resultados, e que exigem rendimento escolar a qualquer custo? Muitas crianças
estão crescendo entre adultos aflitos e estressados. Sociedade ambiciosa,
competitiva, crianças inquietas, irritadas, hiperativas. Pesquisas apontam que
o consumo de Ritalina e Concerta aumentou 75% entre crianças e adolescentes. O
medicamento, composto de metilfenidato, tem sido indicado no tratamento de TDAH
- Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Crianças indisciplinadas
em casa ou na escola, que manifestam algum incômodo ou desajuste, ou não
correspondem às expectativas dos pais ou professores, tornam-se candidatas à
“droga da obediência”.
A proposta é alertar pais e
educadores para a necessidade de ampliar o olhar sobre o sintoma, questionando
diagnósticos apressados. Antes de empurrarmos as crianças ao abismo, lembrar
que os efeitos colaterais de tais medicações são tenebrosos. Qual o futuro de
uma criança que, desde cedo, é submetida a drogas tarja preta que atuam no
sistema nervoso central, gerando dependência física e psíquica?
Vivemos num mundo marcado pela
pressa e pelo barulho. Muitas famílias adoram levar os filhos para almoçarem,
aos domingos, nas praças de alimentação dos shoppings - lugar pouco ameno e
tranquilo. Muitas casas acordam com a TV ligada em alto volume. Poucos zelam
pelo silêncio - cuidado em proporcionar às crianças clima sereno, propício aos
estudos e à reflexão. Geralmente, não gostamos de parar o que estamos fazendo
para ouvir o filho, acolhê-lo. Infância é lugar desamparado e povoado de
fantasmas. Contudo, o que essas crianças estão querendo dizer com as
inquietações? Hiperatividade? Que barulho é esse?
Muitas vezes, a criança chega à
escola atravessada por conflitos, angústias, pressões. Entram na vida das
cobranças despreparadas, desavisadas. São empurradas, sem defesas, à lógica do
custo/benefício. Logo soltam o grito de socorro: “Se com vocês o que interessa
é obedecer sem questionar, cabe a nós, descontentes, manifestarmos o protesto -
seja pela desobediência ou pela inquietação, importa avisar que assim não
rola”. Qual a forma exata que uma criança, insatisfeita e incomodada com a sua
vida, deve se comportar? Onde que elas estão aprendendo a serem ansiosas e estressadas?
A quem interessa a homogeneização, o silenciamento dos incômodos? Será que a
mordaça, que antes era imposta pelos governos autoritários, deslocou-se para os
lares e escolas?
Além das controvérsias sobre a
medicalização, muitos especialistas questionam a veracidade dos diagnósticos,
denunciando a banalização com que são realizados. Será que estamos sofrendo os
efeitos de um saber científico que, motivado por interesses econômicos,
conspira contra a saúde da humanidade? Uma rede de serviços, orquestrada por um
conjunto de iniciativas, apostam, cada vez mais, na produção de diagnósticos
que, outrora, eram desconhecidos. Panicados e transtornados, devemos todos
exibir a carterinha, a senha de dependentes de drogas lícitas - candidatos a um
futuro morto.
Domar a lucidez em troca de uma
falsa felicidade, triunfo diabólico dos psicofármacos. Um elogio à loucura, um
retorno à nau dos loucos, pintada por Bosch, ao ilustrar os desajustados
encarcerados em navios. Recurso medieval no tratamento dos que extrapolavam,
fugiam às regras. Tratar todos sob um mesmo diagnóstico, uma mesma química, sem
dar ouvidos à “locura” que cada um de nós carrega, é no mínimo perverso.
Quem nos diferencia, nos singulariza, é o sintoma. Ele diz do sujeito -
seus anseios, fantasias, frustrações. Sinal, alerta que o corpo emite tentando
dizer daquilo que não vai bem. Ele é salvação quando enfrentado com sabedoria e
investigadas as razões - diferente de tamponá-lo com medicamentos. “A loucura
não está mais a espreita do homem pelos quatro cantos do mundo. Ela se insinua
nele, ou melhor, é ela um sutil relacionamento que o homem mantém consigo
mesmo”. Assim, Foucault, em História da
loucura, rompe o mistério, o obscurantismo que rondava a loucura,
tratando-a como manifestação subjetiva. O importante é que investiguemos as
doenças e suas metáforas, o que elas representam no mundo atual.
O verdadeiro espetáculo advém dos
delírios, quando deitamos e deixamos o pensamento voar, fantasiar. O
renascimento rompe com as leis, os dogmas irracionais do teocentrismo. Hoje,
contudo, quando o homem é tratado como coisa, não estão nos garantindo grandes
vantagens. O poder de manipulação se apresenta em nova roupagem, nova
nosografia. O mal não é o fracasso da
criança diante do que se espera dela, mas impedir que ela participe do
tratamento, entenda o processo, apreenda as fases da vida. Tratar – falar,
desvelar a verdade sobre si mesmo. O saber científico produz discursos com
efeito de verdade, drogas com promessas de cura. Delegamos à medicina a saúde
das crianças - a ela cabe normatizar nossas vidas. Estamos governando os afetos
e as emoções como se fossem um fígado, um rim.
O olhar técnico impõe sua lógica.
Desterritorializados dos sentimentos, ingressamos numa existência
artificial.
Será que existe uma ordem maldita na
qual devemos nos espelhar ao educar os filhos? Ao incorporar o discurso médico
sem questioná-lo, validamos as práticas
irresponsáveis do mercado. Zelar pela saúde dos filhos é trabalhoso -
demanda dedicação, paciência e esforço. É estender o olhar sobre a família e a
sociedade. Desresponsabilizar a cultura - pais, escola, práticas sociais, é, no
mínimo, leviandade. Onde há grito e sofrimento, devem-se levar atenção e
cuidado. Educar exige implicação na dor do outro, senão transformaremos
sintomas em transtornos, doenças crônicas.
Interessa chamar a atenção dos pais
e educadores para o fenômeno. Propor que, antes de optar pela medicalização,
que esgotem outros caminhos. Oferecer às crianças oportunidades, espaços onde
possam entrar em contato consigo mesmas. Apostar nas múltiplas facetas do ser
humano – carregamos uma multidão de interesses e habilidades a serem
exploradas. No lugar de posturas desumanas, vivências intensas, consistentes e
que honram a aventura humana. O contato com as entranhas, com o âmago, propicia
êxtase. Vontade de gostar da vida. Ao acariciar o temor que espreita a
infância, aplacamos a insegurança e promovemos apaziguamento. Interpretar os
berros com ternura silencia a alma inquieta. Convoca as divindades necessárias,
diante do desafio de educar uma criança. Já o barulho promove estresse,
inquietação, agressão.
Estamos nos pautando pelo discurso
de uma ciência erigida na rentabilidade e que reduz o homem num ser biológico. Fugimos
do mal-estar, optamos por tratamentos em que não somos convocados, não
participamos do processo de cura. Transferimos aos filhos a mesma postura
irresponsável diante das manifestações de sofrimento. Devemos refazer o olhar,
inundá-lo de poesia, reformulando posturas e expectativas. Dar tempo às demandas internas. Vida louca, chata, sem
sentido. Crianças aborrecidas, rebeldes. Pressa, pressão. O mundo moderno
desabou sobre nós murchando o sonho de vida feliz, enfraquecendo a autoridade
dos pais e ampliando os focos de violência e epidemias.
Com a sacralização das especialidades, perdemos o elo da totalidade, o
gancho com o estranho mundo dos sentimentos. Não há sintoma fora de contexto,
pensamento isolado, escolas desconectadas da cultura. A dança é complexa e
exige interação de seus pares. Pais, lembrem-se que a maior conquista do homem
é cunhar sua liberdade e autonomia. Com coragem, recusar a barbárie, o olimpo
dos tolos - os preguiçosos que seguem pegadas alhures, estranhas. Educar é
abrir o coração ao filho, prepará-lo para o salto à cultura, à expansão do
mundo. Desobstruir estradas, desmatar veredas. Esperança é crença boa, é
escutar a vontade que chega de dentro - conquista necessária.
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