FELICIDADE E
UTOPIA
Inez Lemos[1]
Os filmes O porto e As neves de Kilimanjaro cumprem o papel
fundamental de plantar a esperança nos corações desamparados de ética,
solidariedade, respeito ao outro. Vivemos a época em que a culpa por prejudicar
ou maltratar uma pessoa é banida do cotidiano narcísico - descabido e furioso
em sua meta por sucesso a qualquer custo. Filmes como esses ajudam a suportar a
aridez que permeia as relações humanas, quando elas são conduzidas pelo
imperativo do lucro. Ganhar, adquirir, acumular - significantes que, juntamente
com dinheiro, tornaram-se representantes mestres do erotismo contemporâneo. Se todo neurótico é um escravo submisso em
busca de um mestre, e se a sociedade atual oferece o ideal de ostentação
material como significante mestre, quem não se insere nesta pletora de valores,
acaba se sentindo excluído, esquisito. O mal-estar dos desajustados é reforçado
pela descrença nos rumos da humanidade.
Os dois filmes, ao elegerem a
solidariedade e a sensibilidade como protagonistas, reafirmam que a vida que
exala sentimento e emoção - a que brota de dentro e emana intimismo,
cumplicidade, é a que satisfaz. Ambos reverenciam sentimentos que estão
escapando da fantástica aventura humana, quando viver é experimentar, junto ao
outro, as surpresas que a vida nos reserva. Quando o dinheiro torna-se mais sexy que o sexo, quando assistimos o
mercado atuar com força suficiente para nos cooptar em projetos de cunho apenas
financeiro, quando viver é ser acionista, empreendedor ou proprietário, descobrir
filmes que reverenciam o amor ao próximo é como descobrir cachoeiras no
deserto.
O objetivo de evocar a importância
de diretores como Aki Kaurismaki (O porto) e Robert Guédiguian (As neves de
Kilimanjaro) é registrar o apelo, um pedido de joelhos para que não desanimem,
não desistem em continuar esticando o fio da esperança aos desamparados - os
desesperados diante da pouca perspectiva de mudança cultural. Para a massa
faminta de lazer, que foi induzida a confundir entretenimento com cultura, ir
ao cinema significa se estarrecer com violência e barulho, regados a Coca-Cola
e pipoca. As salas tornaram-se lugar de comida e banho de adrenalina. Muito
diferente da profundidade dos filmes que nos conduzem, sutilmente, aos
mistérios que cercam a existência humana. Sabemos que, quanto mais circulamos
fora de nossa subjetividade, mais convocamos o vazio. E não é por acaso que o
mercado explora a incompletude - falta ôntica que clama por objetos e move a
roda do consumo. E assim claudicamos, consumindo os lançamentos dos lixos culturais
- cinematográficos ou televisivos.
A felicidade está na moda. E foi
tema da Conferência de Bem-Estar e Felicidade das Nações Unidas. Agora os
países querem disputar quem ganha o ranking no Relatório de Felicidade Global.
O Japão ocupa o 44º lugar, perdendo para o Brasil, que figura em 25º. O interessante
disso tudo é que os resultados colocam em xeque os índices de desenvolvimento
das nações - são insuficientes para garantir o grau de satisfação da população.
Ou seja, felicidade, satisfação, alegria de viver não dependem apenas de
desenvolvimento e progresso material ou tecnológico. Tudo que não falta no
Japão é avanço técnico. Então, afinal, onde se esconde essa tal de Felicidade? É
possível satisfazer o desejo humano? Lógico que não tenho a pretensão de me
meter num debate desta dimensão, mas gostaria de arriscar um palpite.
Todos os dois filmes se passam em
lugares simples, com pessoas pouco sofisticadas, sem grandes padrões de
consumo. No entanto, destacamos a forma como os personagens se interessam pela
alteridade – o imigrante africano ou o desempregado que resolve assaltar como
recompensa às perdas. Ao permearem um cotidiano rico em experiências, ao
adentrarem a intimidade dos que sofrem, conferem sentido às suas vidas. A
partir do momento em que os protagonistas se colocam no lugar de precariedade
do outro, eles encorajam e assumem o desejo de fazer o bem. E convictos de que,
tentando ajudar esse outro - excluído e injustiçado, eles poderão se sentir
melhor – aliviados e felizes. Vários filósofos proclamaram que, isoladamente,
prosperidade econômica e sucesso financeiro são insuficientes para fazer alguém
feliz. No começo, pode até seduzir, mas logo o sujeito acostuma com o lugar de
conforto e privilégios. Tanto é verdade que cansamos de ver pessoas ricas, com
alto padrão de consumo, lastimando a vida - sempre buscando motivo para
reclamar.
Contudo, somos treinados para
respondermos àquilo que esperam de nós. Se somos estimulados à cobiça, à gula
dos insatisfeitos, se desejamos o poder, é porque crescemos dentro deste ideal
de mundo. O meu desejo é o desejo do Outro. O outro do mercado – o empresário
que hoje controla a alma humana. E como ele tem pressa, acabamos por tentar
atender o desejo de gratificação de forma rápida. É o mundo de olho nos efeitos
dos Big Brothers. E deparar com a perspectiva de não ganhar, é cair na
ansiedade, insatisfação e frustração. O que fazer com a crença de felicidade
como realização pelo próprio esforço? Como saborear a conquista, se o alvo é a
chegada e não a travessia? Como nos desvencilhar da idéia de que não há
satisfação maior que se compare com o ganho merecido?
O debate visa questionar a proposta
de felicidade apregoada pelo capitalismo. É assustador como a idéia de sucesso
financeiro vem ocupando os espaços da existência humana. Enquanto sabemos que a
questão está em resistir aos ímpetos de realização imediata - a ânsia por
satisfação é uma sanha infindável. Felicidade é sentimento subjetivo e deve ser
cunhado lentamente, passo a passo, em consonância com as marcas - insígnias que
habitam cada um de nós. Cada qual, ao longo de sua trajetória, colecionou
lembranças, atavismos – somos um pouco de tudo que vimos, ouvimos e sentimos.
Não é possível querer nivelar a humanidade em índices, colocar todos dentro de
uma só tabela, sufocando singularidades, interesses e idiossincrasias. Isso sim
é quimera. Felicidade acontece quando é sonho a ser conquistado - quando a ele empenhamos
sentido, tempo e esforço. E com perseverança, submetemos às pelejas - suor na
nuca e coragem na alma.
Se a dificuldade faz parte do show
da vida, se tudo que é bom tem que ser merecido, como entender o mundo que
apregoa o sucesso instantâneo, tanto profissional como afetivo? Como aceitar a
tendência em apagar a subjetividade de cada um, e no lugar imprimir uma marca,
como se gente fosse mercadoria? Muitos invejam o deprimido sorridente, jovial e
endieirado. Muitos vivem pressionados em ganhar a vida por meio da
visibilidade. Os que não conseguem seus minutos de fama, do alto de suas
fragilidades narcísicas, acabam por lançar mão de qualquer loucura como recompensa
ao ostracismo existencial. Seja entrando numa seita de canibalismo – tornar-se
alguém devorando um outro e se purificando. Principalmente quando esse outro é
tão desprazível quanto ele. É o vazio ocupando o lugar do nada, da desesperança
e da falta de utopia.
Importa questionar a tendência de
iludir as pessoas com a promessa de felicidade fácil – querem nos vender a
fantasia de que existe uma completude, um êxtase ao qual todos tem acesso,
bastando ser bonito, rico e cheiroso. A beleza perfeita, o corpo irretocável.
Eis o modelo excludente que acaba disseminando angústia e ansiedade. Ao
contrário disso tudo, de forma corajosa e honesta, os filmes citados apontam a
felicidade possível, a que moldamos no sofrimento - nos intervalos, nos hiatos
da luta diária. Na peleja de se saber humano. Se o mal é prometer e não
cumprir, vivemos num mundo cruel, que mais faz mal que bem. Não podemos
confundir gozo com prazer. Acreditar que a nossa felicidade pode ser construída
por um outro, que ela pertence ao além – que há uma magia que resolverá os
problemas e nos conduzirá ao paraíso, isso sim é loucura, insanidade. É
permanecer no gozo.
Quando abrimos mão de viver a vida
autêntica, quando acomodamos e deixamos de lutar pelo próprio, acolhendo
escolhas alheias à nossa vontade, a vida perde o viço, a exuberância. Vida desbotada,
sem combustível. A depressão, ao se tornar um sintoma contemporâneo, defraga o
fracasso de apostar apenas no progresso e no avanço tecnológico como
responsáveis pela felicidade. O facebook está em pleno vigor, os tablets
perambulam de mão em mão. O
que não faltam são meios de aproximar pessoas. Contudo, o que vemos é, cada vez
mais, internautas solitários, deprimidos e descrentes de uma vida pujante - a
que entranha e revela a face sublime de compartilhar com o outro fragmentos
intimistas. Vale lembrar de pesquisas que certificam: os que se ocupam com
projetos coletivos tendem a ser mais felizes.
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