LOUCAS POR EROTISMO[1]
Inez Lemos
O extraordinário sucesso da série de novelas Cinqüenta tons de cinza, o “pornô das mamães”, nos remete a
fantasias arcaicas – dimensões sadomasoquistas que habitam cada um de nós. Neste
particular, interessa refletir o que subjaz à fissura das mulheres pelo romance
de Érika Leonard James. Como explicar o
interesse pelo jogo de poder e submissão que domina a trama? Ao explorar o masoquismo
feminino nas relações afetivas, acredito que a autora encontrou o ponto, o fio
da meada. O que ela precisava para prender a atenção das mulheres – donas de
casa entediadas com a mesmice de suas relações sexuais. Interessa investigar os
motivos do sucesso de um romance vulgar e excessiva pobreza simbólica.
Freud, em 1920, ao lançar a nova
teoria das pulsões, inaugurou o conceito de pulsão de morte situado além do
princípio do prazer. Significa que somos dominados por uma pulsão, que leva a nos
oferecer ao sacrifício, na busca do prazer. Há uma dimensão erótica no
sofrimento. A pulsão de morte, quando não tratada e controlada, pode dominar o
funcionamento psíquico. Equivale dizer que somos um misto de contradições,
sentimentos paradoxais. Quando esses interferem em nosso cotidiano, devemos
investigá-los – buscar ajuda, desconfiar de nossa saúde psíquica.
Pulsão de morte é gozo - prazer e desprazer. E, por ser da ordem do
inconsciente, se expressa de diversas maneiras, como: se deliciar com acidentes
nas estradas, comer excessivamente, se drogar, cultuar neuroses. Nem sempre
procuramos o melhor para nós, tampouco para aqueles que julgamos amar. Na cama,
há homens que não se interessam pelo prazer da companheira, resistem a debruçar
sobre seu corpo, prepará-lo para o prazer. Há algo de sadomasoquismo nos casais
– seja homem ou mulher. Muitos acabam se submetendo aos caprichos de parceiros ardilosos
- tornam escravos de relações perversas. Há muito de sofrimento nas famílias,
que se unem em pactos mortíferos, cultuando a dor.
O que a mulher deseja é se sentir nas nuvens. Ela anseia por situações
que a eleve e a faça se sentir única, reconhecida em sua feminilidade. Um
parceiro que lhe garanta um lugar em seu desejo, tornando-as imprescindível. O imaginário
feminino foi construído com representações de inferioridade. Crescemos na
ilusão de que somos seres incompletos, uma vez que não portamos o representante
fálico. Sem uma elaboração refinada, sem rever aspectos de sua sexualidade, a
mulher pode se entregar, com facilidade, ao sofrimento. Posição que, muitas
vezes, a coloca refém de homens bruscos. Mendigas do amor - aceitam situações
desrespeitosas e humilhantes em troca de migalhas. Contudo, a mulher anseia ser
nomeada por um homem, conferir que ele necessita de seu corpo, seu beijo e sua
companhia. De que há algo nela que o faz urrar de prazer.
Como manter a chama da sedução em um cotidiano pouco excitante? Poucos
casais conseguem driblar. O erotismo caminha por ruas floridas, ruas distantes
da rotina. Para confrontá-lo, devemos romper o automatismo. Vida mecânica,
gestos petrificados – eis o roteiro ideal para um texto afetivo broxante. A
psicanalista Viviane Mosé em O homem que
sabe nos inspira, de forma honesta, a romper com o tédio - falta de vigor e
entusiasmo na vida: “A humanidade, que conquistamos com tanto investimento,
tende a nos transformar em autômatos. É o vigor, o excesso, o desequilíbrio que
nos protege desta robotização; a alegria, a dança, a sexualidade, o erotismo
interferem nos gestos e se impõem, desmontando a seriedade e a sisudez,
trazendo vida, intensidade, força”.
Como afastar o sexo da dimensão
biológica e enlaçá-lo em dança erótica - epifania que promete júbilo? Como nos
extasiar na cama sem perdermos a dignidade? Como privilegiar o corpo erótico, recusando
práticas que visem apenas instrumentalizá-lo? Como resistir ao mundo
estruturado no saber técnico, longe das intermitências do coração? Ao sermos
pautados pela tecnologia, perdemos a substância e nos submetemos aos comandos
externos. Dessubstancializados, vulneráveis, nos tornamos presas fáceis. Ao
sermos extraídos da condição humana, ao abandonarmos a concha primordial - marcas
que nos identificam e nos tornam únicos - deixamos de ser gente para nos tornar
objetos. Seres ocos, corpos vazios. A tecnociência, na ânsia de dominar o mundo
dos negócios, cooptou a alma humana, o sagrado; essência e tempero que move
corações. Mistério que não pode ser violado.
O erotismo está no vínculo com o
outro, quando as substâncias de um se misturam com a do outro. Se não
conferimos sentido ao outro, se não imprimimos algo nosso na vida do parceiro,
vivemos suspensos, destituídos da própria pele. A alegria de se fazer mulher,
de plantar no outro o desejo de continuidade, pertence ao campo da conquista. Para
tocar estrelas - um pedacinho do céu - devemos suar a camisa. O amor exige mais
que algemas e chicotinhos. Exige viagens pelas ruínas, sabedoria ao vasculhar
entranhas, teias de contradições.
Laços, afetos. Queremos causar
sensações, emoções, mas não queremos nos jogar em planícies desconhecidas,
vales íngremes. O erotismo nos enreda, questiona nossa determinação em assumirmos
o desejo nas relações afetivas e sexuais. Até que ponto estamos contaminados
por escolhas que não nos dizem respeito, que escapam às fantasias primordiais?
Se pensamos e desejamos segundo um outro, se vivemos numa sociedade comandada
por interesses de mercado, quem define com quem e como vamos para a cama? Espero
que não sejam os best-sellers.
A técnica esvazia as palavras,
extrai seu sentido. No lugar coloca o sentido que a convém. A palavra sem
sentido aponta para a razão moderna. À razão não interessa a verdade, ela não
se funda na experiência. Quanto mais ela se distanciar do homem dialético,
ontológico, melhor para o insano mundo do dinheiro. Tudo que ele deseja é
capturar o homem em sua totalidade - alma e atavismos. E transformá-lo em agentes
tecnificados, focados e absolutos. Em nome da ciência, muita loucura tem se
praticado nos consultórios médicos. Muitos absurdos são prescritos. Vivemos a
banalização dos diagnósticos, a epidemia do Rivotril. Rotulados pelo discurso
médico, que se apóia no saber-poder, o cidadão torna-se refém da
psicofarmacologia. É quando o interesse financeiro manipula a razão e exclui do
discurso o diferente, o que insiste acreditar nos comandos de dentro. A alegria
delirante, escandalosa e exuberante de viver é a que ressalta aos olhos. Ex-ótica.
Eros gosta do que excede, extrapola. O “exota” é aquele que está fora da ordem,
recusa o ordinário.
O mundo dos afetos sofre as
conseqüências da ciência engajada. A ela interessa patologizar os sentimentos que,
outrora, faziam parte da vida humana como tristeza, medo, ansiedade. Sob o
manto dos transtornos, caminhamos de mãos dadas com a farmacologia. Como
resgatar a lucidez, o saber de si? Estamos nos tornando loucos por sentido, loucos
por autoexpressão. Poucos ousam sair da linha, questionar a medicina que se
ocupa mais com a doença do que com a saúde. O revolucionário foi capturado pela
ciência, que subverteu a coragem de contestar, questionar. Despertencido e destituído
de sua filiação, perambula sem os fios que o conectava à sua verdade. Ávidos por
produzir clientes cativos, os laboratórios comandam o mundo abstrato dos
diagnósticos. Os doutores da pós-modernidade não se interessam pelo sujeito
desejante, apenas pelo portador de patologias. Pathos - patologia, paixão.
Ao romper com o cotidiano
massificado, a falta de criatividade nas relações, ao recusar a mesmice que
cochila nas alcovas, Cinqüenta tons de
cinza coloca em cena o erotismo banal - introduz movimento, promessa de felicidade.
O romance, ao cultuar o masoquismo feminino, expõe fantasias arcaicas – algo
que excede e que não serve para mais nada senão nos manter vivos. O que a ciência quer é eliminar tudo que esteja
fora, desalinhado. Devemos ser pornô, mas na medida certa - como manda a
literatura.
A liberdade requer integridade, percurso nas entranhas. O que fez Ana (personagem
em questão) se submeter aos caprichos sádicos do senhor Grey? Hoje, dominamos
técnicas, mas esquecemos que a vida se funda nos subterrâneos da subjetividade.
Eros está em nossa capacidade de reinventarmos repertórios empolgantes. O fazer
por conta própria, livre de modismos impostos por um outro poderoso, o que
detém a chave eficaz da manipulação, da persuasão. Também na recusa de cárceres
privados, confinamentos operados pelos novos sofistas, sedutores de almas
desavisadas. Consumidores em potencial - seja de Rivotril, seja de promessas
falsas de erotismo.
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