Inez Lemos[1]
O Brasil colonial era movido pela
força dos negros africanos, tratados como animais de carga e transporte. Cabia
aos escravos a função de transportar a realeza. Quando chega o automóvel, esse
desponta no cenário como símbolo aristocrático, se distanciando da população,
que contava apenas com o bonde e o trem. O carro segue como símbolo de
superioridade social. Eis o imaginário que define a rotina do motorista que se
julga superior por ostentar carro importado, reiterando a lógica da hierarquia
social. É o cidadão que tem certeza de seu direito de curtir a noite, se
embriagar, correr e matar.
Dificilmente nas rodas familiares os chamados “cidadãos de bem” discutem
a postura do mais rico e poderoso em relação ao uso do espaço público. Qual o
imaginário que permeia entre eles? Como construímos a hierarquia do rico sobre
o pobre? Embora presenciemos demanda por intervenção e correção aos abusos
cometidos no trânsito, sabemos que há um discurso direcionado ao outro (infrator)
e um diferente quando somos nós, de melhor poder aquisitivo, a bola da vez.
Situamos fora de nós o processo de conscientização que possa garantir melhoria
da convivência no espaço urbano. A guerra
só se intensificará se não repensarmos posturas elitistas e racistas que
reforçam o viés hierárquico. A dança é nossa, embora poucos se ocupem em lutar
pela igualdade de todos perante as leis que regem a cidade.
Na moderna dinâmica social convivemos com o cinismo, a desfaçatez. Características
do jeitinho brasileiro, hipócrita e obsceno - o mesmo que permite ao motorista responsável
por mortes no trânsito se esquivar da penalidade. Seja comprando o policial de
trânsito, a justiça ou os familiares da vítima, quando essa é pobre, negra e
inferior. Como lutar e exigir punição aos criminosos, realidade que ameaça todos
nós, vítimas de jovens que crescem acreditando na superioridade dos ricos sobre
os pobres, do carro sobre o pedestre, do aeroporto sobre a rodoviária? Os nostálgicos
do glamour imperial e escravocrata, no fundo, defendem a impunidade dos crimes
cometidos por um de seus pares – brancos e bem nascidos. Lembramos que no
Império fazendeiros que se opunham à escravidão eram também donos de escravos.
A mídia expõe as contradições de uma sociedade dividida. De um lado há os
que se viciaram em julgar bandido apenas o menor infrator que nasceu na favela,
cresceu entre traficantes, não teve oportunidade de estudar em boas escolas e,
consequentemente, está na rua cobrando o que a vida lhe deve. Para ele não há
outra saída senão os cárceres de Pedrinhas – amontoados de gente, ratos e
torturas. O clamor por justiça e punição é ferrenho quando o réu vem do lado de
lá. O grito por segurança ecoa nos jornais. Contudo, sabemos que a violência
deve ser tratada como sintoma, como um aviso de que as coisas andam fora do
lugar. É mais uma questão política, social e cultural do que de polícia.
Nenhuma criança nasce bandida, criminosa. Ela assim se torna em função da forma
como foi educada e inserida na cultura.
Bandido é significante vazio. Uma criança não escolhe o mundo do crime
por deleite, por ser raça ruim, gente imprestável, negativo social. Dificilmente,
vamos à rua exigir punição para o vizinho da Zona Sul - filho de um amigo
empresário. A criança que vive sob a cultura dos milicianos, que controlam a
região onde vive, cresce sob a lógica da vingança e da corrupção. A lei dos
milicianos, um Estado dentro de uma comunidade vítima da falência do poder
público, é ferrenha. Não há segunda chance. O bom educador sempre aposta na
recuperação do ser humano, quando a ele é dada oportunidade de repensar atos e conhecer
o outro lado da vida. Na rua ele aprende a se defender apenas com armas, o
poder dos excluídos. Enquanto que nós aprendemos o poder da palavra, da teoria,
dos estudos e de uma boa profissão. O que revela que os bandidos que julgamos irrecuperáveis
no fundo são humanos e carentes como nós. A diferença é que a vida é mais
generosa com uns que com outros.
A vingança aos infratores, recomendada por gangues que operam à margem da
lei, faz apologia à barbárie, justiça com as próprias mãos. Culpam a ação dos
direitos humanos e das ONGs que defendem o direito à infância com lazer e
escolas bem equipadas. Com cinismo e ironia, não vamos enfrentar essa tragédia
social. No Brasil às avessas, o bandido é vítima de si mesmo. A delinqüência é
efeito de uma autogestão burra e perversa. Revolta, vingança e violência. Eis o
caldo que cozinhamos quando julgamos a manifestação do problema como se fosse o
problema. Os fatos de forma simplista, com argumentos obscurantistas e pouco
consistentes. A vida não se resume em culpar, punir e condenar. Seria fácil se
a questão fosse apenas o rojão que matou o cinegrafista Santiago Andrade. Ou o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o estatuto da Impunidade, como
muitos julgam.
Seja rica ou pobre, se a criança não foi bem acolhida, ou se não foi
interditada em suas pulsões destrutivas, as chances de cair na delinqüência são
grandes. Falta ou excesso de amor? Educar é simbolizar sobre o certo e o
errado. Não adianta pressa, o ser humano demanda tempo para entender as
contradições da vida e dos sentimentos. Ódio, frustração, humilhação.
Sentimentos que atravessam o corpo e bate fundo o coração. Talvez esse percurso
nos ajude a questionar o que tem levado adolescentes a mergulhar na violência e
no crime. Uma leitura ampliada sobre o sujeito e a sociedade em que estão
inseridos. Uma comunidade implicada no sofrimento dos que vive a desesperança. Diante
da condenação, tão somente, o futuro já nasce morto. Interessados em investigar
os atos antissociais, e sem medo de rever posturas petrificadas, é hora de nos unirmos
diante do caos. Ou escolhemos educar as crianças com rigor, carinho e
oportunidades, ou mergulhamos na barbárie.
Ao atacar a epidemia da violência, deveríamos traçar linhas de condutas
preventivas (longo prazo) e curativas (curto prazo). Pouco se debatem propostas
preventivas que dificultam que a criança se refugie na delinqüência - propostas
que abordem aspectos sociais e subjetivos. Em vez de deixar o caos se
estabelecer para, então, agir de forma truculenta, melhor seria pesquisar ações
efetivas que atuam na raiz da questão. A cobiça que gera violência e crime é
mais a forma como o desamparado, que vive a privação afetiva, simbólica e material,
enfrenta os conflitos que um mal em
si. A peste que recai sobre as almas miseráveis, que
cresceram cultuando a vingança (quando se é pobre), sem chance de descobrir
outros motivos para se viver, senão roubar do outro algo que lhe provoca inveja
e revolta.
Outro exemplo de leviandade no trato de questões profundas é como estamos
debatendo a questão da maioridade penal. Agimos como adolescentes afoitos em assegurar
os anseios a qualquer custo. “Quero por que quero uma sociedade segura, onde os
filhos possam circular livres dos drogados, delinqüentes e criminosos”. O
rebotalho social que atrapalha o gozo dos abastados. O discurso pró-redução da
maioridade penal deflagra a desfaçatez com que julgamos o fracassado, o excluído.
A vida é percurso abissal, descida fecunda aos abismos da alma humana. Pouco se
pode falar sobre o drama do vulnerável, sujo e fedorento, que nasceu quando não
deveria, e cresceu como animal - sem noção dos códigos que regulam a vida
social. Contudo, mesmo sem ser promovido a sujeito, deverá responder pelos seus
atos.
Esses menores são filhos do descaso dos pais e governantes - efeito da
desigualdade social, da impunidade aos corruptos que, sem pudor, lesam o erário.
Dinheiro que deveria garantir uma juventude com emprego e perspectivas, além de
políticas públicas eficazes como planejamento familiar, inserção em atividades
culturais e esportivas. A cultura do extermínio, que apregoa a exclusão aos que
incomodam, é absoluta. A solução deve ser engendrada de forma ampla, investigando
os motivos que levam uma criança, desde cedo, a “escolher” o caminho do crime. Punir
por punir mais revolta que recupera. A forca é o último recurso. O criminoso
habita todos nós, basta deixá-lo livre, não inseri-lo nos limites da lei -
metáfora paterna.
A maldade não escolhe conta bancária, é da condição humana. Inútil
querermos aplacá-la apenas com prisões, quando sua origem deve ser simbolizada.
Questão complexa e que esbarra no outro
- essa relação que determina e regula o desejo. Mais eficaz seria criarmos um movimento exigindo
mudança na forma como o Brasil educa as crianças. Expandir o olhar diante do
outro – estupor e vergonha que produzimos.
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