O
filme Casa Grande, de Fellipe
Barbosa, coloca em cena o debate das cotas raciais, personagem central no
combate ao racismo no Brasil - enquanto o negro for excluído da sociedade,
dificilmente será respeitado e acolhido. E para que a inclusão ocorra, ele deve
participar das oportunidades que o país oferece. Sem educação de qualidade, sem
a inserção no mercado de trabalho e, portanto, na sociedade de consumo, sempre
será visto como marginal. A tríade negro, pobre e bandido ainda provoca
ressonância nos remanescentes da Casa
Grande, cujo imaginário confunde favela com senzala, negro com escravo e
pobre com bandido. As cotas são um dos
projetos polêmicos que acirram as diversas formas de leituras do tecido
político, social e cultural que vivemos.
Destacamos também o que prevê a
redução da maioridade penal de 18 anos para 16 anos. Interessa analisar o que
subjaz ao projeto, quando esse defende interesses de segmentos sociais
economicamente dominantes. Como entender famílias que se julgam do bem, honradas,
concordar em encarcerar adolescentes que tem a rua como único recurso de
sobrevivência, quando muitos são filhos de famílias abandônicas e
desestruturadas? E, em função da falta de apoio e oportunidades, se lançam
entre os desamparados e, com eles, ingressam no mundo do crime?
O argumento de que, ao expulsar os adolescentes da rua por
meio da repressão e punição, iremos reduzir a violência, é risível e
despropositado. Sabemos que se repressão fosse a saída, a reincidência entre os
encarcerados seria quase nula. Na defesa da exclusão da garotada que perambula
pelas cidades, sem rumo e programas sociais eficazes, oculta o anseio pela
sensação de proteção - fantasia de segurança. Excluir é mais fácil que educar,
cuidar e prevenir.
Cuidar de uma sociedade exige estender o olhar do início ao
fim - do momento que a mãe engravida até o momento em que o indivíduo nasce,
cresce e morre. Cuidar é mais promissor que abandonar – é mais barato educar
bem uma criança, acompanhar sua trajetória e lhe garantir um futuro de
oportunidades do que desampará-la e, depois de inserida em atos ilícitos, tentar
recuperá-la. Diferente do que muitos afirmam, a maioria dos garotos de 16 anos
não escolheram o crime como opção de vida - foi a vida que, ao não lhes
garantir melhores oportunidades, os jogou na contravenção. Muitos sequer foram
alçados a seres humanos e conscientes de seus atos. Agem como animais, movidos
por instintos e alheios aos códigos civilizatórios. Excluídos da função
paterna, operam fora da culpa. Apenas
seguem os ditames do capitalismo cruel: matar para exibir o tênis de marca ou o
último lançamento em smartphone.
Na cultura da ostentação reina o narcisismo individualista e
imediatista, que espetaculariza a aparência e despreza a essência. Contudo,
somos responsáveis pela demanda dos garotos por objetos de consumo – estilo playboy.
Quando os exemplos entre os adultos não coadunam com os discursos moralistas cristãos,
respaldados na idéia do livre arbítrio, justiça e honra, fica visível o desejo
insaciável em punir por punir, sem se preocupar em oferecer ao garoto chances
de se recuperar. O apelo por justiça oculta vingança, maldade, preconceito e
racismo. A eugenia é um projeto de limpeza, de higienização - excluir da praça
os que incomodam.
Para que o princípio de realidade
sobreponha ao princípio de prazer, a criança deve ser interditada em suas
pulsões perversas - limitada e contrariada em seu corpo pulsional, que berra,
chora e exige o que lhe convém. Como bem nos lembrou o psicanalista Hélio
Pellegrino: “O pacto edípico que garante o pacto social”. Exigir de um adolescente renúncia pulsional, sem
antes lhe oferecer um outro destino às suas pulsões, seria acreditar em
autoformação, autogestão.
Partindo do pressuposto de que ninguém se autoeduca, e que
essa é função dos pais, talvez o melhor fosse criar leis que cobrem responsabilidade
destes, e, em caso de descumprimento, recair sobre eles a punição devida. Quando
um menor comete um crime, a Promotoria da Infância e da Juventude deve convocar
os pais ou responsável e cobrar deles uma atuação mais fecunda junto ao delinqüente.
Para tanto, o Brasil deve intensificar as políticas públicas de planejamento
familiar que assegurem à criança um lar estruturado. Gravidez na adolescência,
a metáfora da banalização da vida.
A lógica do imediatismo não inclui
ações preventivas, apenas paliativos que mais machucam, punem e pouco recupera.
Muitas vezes, o garoto parte para o crime como forma de reivindicar carinho e
atenção. Sabemos que, ao ser privado de uma família que o acolhesse, muitos
agem por revolta e vingança - cobram do mundo o que a vida lhes negou. Não
devemos castigar e punir quem já é punido e castigado por sociedades
excludentes, desiguais e injustas. Há de se descobrir formas mais eficientes,
justas e humanas de inserir o delinqüente nos limites da lei. Não há impunidade
para a criança que sofre privações afetivas e materiais, viver é a punição.
Para que o garoto respeite os códigos de convivência social
e absolva as regras do bem viver, é preciso que, desde bebê, internalize as
restrições e frustrações. A interdição no corpo pulsional provoca mal-estar,
efeito da economia pulsional. Ao demandar uma sociedade menos violenta, devemos
exigir propostas que visem cuidar e amparar o cidadão, oferecendo-lhe oportunidades,
apontando direitos e cobrando deveres. Sem isso, ficamos apenas na retórica do
dever cumprido, justificado pelo pagamento de impostos.
No século 19, Freud, ao intensificar seus estudos sobre a
histeria, observa que onde havia um corpo urrando de dor, havia um desejo
reprimido - efeito da repressão sexual da época sobre o corpo feminino. É
quando a literatura começa a se abrir para o desejo sufocado, proibido e tão
bem retratado em Madame Bovary , de
Gustave Flaubert. Nos romances, as heroínas vivenciavam relações sexuais
extraconjugais, despertando o desejo entre as mulheres que, embora casadas,
muitas não haviam experimentado o prazer sexual. Hoje, o sintoma social resulta
do excesso de permissividade - ausência de repressão. Adolescentes que não são
interditados em suas pulsões, quando deparam com a lei não a reconhece. A
sociedade de consumo explora a permissividade por ela ser rentável – vende de
tablets a sapato de salto para meninas.
O declínio da metáfora paterna, quando os pais não impõem
limites ao filho, culmina em jovens estúpidos. O show de violência,
agressividade e desrespeito não se restringe às classes sociais. A roda que gira
na senzala, gira também na Casa Grande.
Um dia, as crianças de hoje serão os adultos desrespeitosos, machistas,
corruptos e criminosos de amanhã. Sem consciência social, o Brasil da
permissividade é um convite à ilegalidade e à corrupção. Criminalidade e função
paterna - relação que inviabiliza responsabilizar apenas os garotos pela violência
que aflige o país. A criminalidade não é
apenas dos adolescentes, mas de toda a sociedade. Talvez o segmento social que
mais esteja interessado na redução da maioridade penal seja dos que sempre
lutaram por privilégios, e não por direitos. Punir e excluir a garotada das
oportunidades e dos recursos públicos fere o conceito de res-pública – coisa pública.
O cidadão atual é um panicado, estressado. E anseia que
algo aconteça e lhe devolva a tranqüilidade de outrora. Sai do trabalho e, em
casa, é bombardeado pela mídia sangrenta que, por sua vez, é alimentada pela
cultura do estupor, disseminando terror e pânico. É de se esperar que se anseie
em retornar ao paraíso, lugar sem violência, assaltos, crimes. Longe dos
conflitos sociais e das penúrias impostas pela desigualdade social, educação
frágil e paternidade e maternidade irresponsável. Contudo, a sociedade atual
quer abolir a violência sem enfrentar as raízes do conflito, apenas pela
supressão do problema - punindo e excluindo os negativos sociais. Não há dúvida
que, certamente, é sobre eles que a guilhotina recairá.
A subjetividade atual se caracteriza pela suspensão do
pensamento, é quando o cidadão idealiza soluções fora do campo da reflexão, e,
sem se implicar nas questões, se coloca passivo e alheio a tudo que o incomoda.
É como se as agruras que o atingem fossem algo estranho a ele mesmo - não lhe
cabe se ocupar ou tentar entender o mal que lhe acomete. Na inexistência de
questionamento, o registro do pensamento fica suspenso. No jogo de omissões,
implantamos o genocídio dos jovens e adolescentes, principalmente entre pobres
e negros.
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