Bem-vindo

Amor urgente e necessário chega de graça,
e entusiasma a alma.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

AMOR NO MASCULINO

Inez Lemos

O filme Vida de casado conta histórias de infidelidade. Harry, o marido, apaixona-se por Kay e procura Richard, seu melhor amigo para comunicar a decisão de se separar. Harry se considera bem casado com Pat. Supondo que Pat não suportaria a separação, e por não querer vê-la infeliz, sofrendo e solitária, resolve matá-la. Pat, por sua vez, está apaixonada por um outro. Enquanto Harry arquiteta a morte da esposa, Richard resolve cortejar Kay, traindo o amigo apaixonado. Eles iniciam um romance e Kay comunica a Harry a decisão de encerrar o caso, atribuindo ao fato dele ser casado. Harry, desesperado, sai da casa da amante e corre para sua casa. Precisava impedir que a esposa ingerisse o veneno que lhe preparara. Chegando, a encontra viva, olha-a com compaixão e diz que a ama.

O filme é ode ao amor e ao casamento. Ele não perdoa, joga na tela toda a dificuldade que envolve sentimentos e tomada de decisões – assumir-se frente ao outro que o amor acabou. Numa análise simplista julgamos que o mote é a infidelidade. Fidelidade é conceito dialético. A quem devemos ser fiéis, ao nosso sentimento ou ao sentimento do outro? Contrariar o outro, deixar de corresponder aos sentimentos que ele nos dedica, não significa que estamos traindo, mas deixando de amá-lo. Não há nenhuma vantagem em mantermos um casamento infeliz. Compaixão é sentimento ambíguo e nos conduz a encruzilhadas. Ninguém permanece numa relação que não garante retorno, algum ganho. Muitas vezes, esse ganho é secundário, mantemos uma situação de compromisso com as neuroses. Uma forma de permanecer na mesmice, nos poupando de assumir escolhas, arcar com decisões e responsabilidades. A repetição revela parceria com a morte, um fundo de culpa. A culpa cristã de não “fazer o mal ao outro”. Se agirmos em desacordo com nossa dignidade, fazendo concessões, ficamos mal conosco e infligimos a ética do desejo.

Embora o filme coloque ambos os gêneros na mesma situação, a experiência clínica revela que, quando se trata de assumir posições, os homens apresentam maior dificuldade. Geralmente, quando um casal se separa, é a mulher que pede a separação. Historicamente, a infidelidade conjugal é maior do lado masculino, o que reforça a ‘cultura do escape’ ao qual o masculino está submetido. O imaginário masculino do amor é mais sexo e menos carinho. Muitos buscam no casamento mais que sexo, eles também querem aconchego e proteção - casa organizada, funcionando a todo vapor. Acredito que a maioria das mães, no Brasil, educa os filhos homens para dependerem da mulher. Primeiro, dependem das mães, depois, muitos contam com a boa vontade e paciência das esposas. É comum ver homens inteligentes, grandes profissionais em enrascadas, se atrapalhando quando necessitam desempenhar trabalhos domésticos.

Se recorrermos à história do Brasil, ao passado colonial, escravista e patriarcal, encontramos explicações para a cultura antropocêntrica. É o Brasil arcaico que insiste em não crescer, evoluir. Nos países avançados, quando o profissional de serviços domésticos são raros e caros, os homens assumem participação nos afazeres domésticos. Que vantagem há em educar os filhos totalmente dependentes? Não se trata de convocar homens e mulheres ao tanque e à cozinha, mas debater o quanto equivocamos ao não inseri-los na vida de dentro, intimidades e especificidades - sentido de parceria e companheirismo. O ambiente doméstico é um bom espaço para iniciar a criança no respeito pelo trabalho alheio, desalienando-o. Fora da cama, em casa, muitos homens agem como analfabetos. “Analfabetos funcionais do lar”. Gostam de permanecer na posição do “eterno filho da mamãe”. Nesse particular, Freud nos confirma: “não há amor mais intenso que o de uma mãe pelo filho homem”. Grosso modo, sem entrar em questões edipianas, constatamos que muitas mães não educam o filho para a vida amorosa. Pelo contrário, ela não vê com bons olhos a intrusa, essa ladra que roubará o filho querido – rivalidade feminina.

Numa separação, o que mais dói é a sensação de perda - sentimento difuso. Não temos consciência do que perdemos no “objeto perdido”. Entristecemos por nos ver privados da sensação de protegidos - ungidos pela promessa de amor que tanto nos confortava. Sofremos por perder a afeição pela pessoa amada, por ela não mais ocupar o lugar de prevalência em nosso coração. Por não sentirmos desejados, tampouco desejantes. Constatar que o amor acabou é se ver no deserto, jogado à própria sorte. Gostamos de nos iludir, criando justificativas para conservar algo que já se foi. Preferimos adoecer a abandonar o mesmo. O filme se debruça diante da recusa de nos destrincharmos para o outro. Muitos fogem, partem sem elaborar e acumulam repertórios de relações abortadas. Vão e carregam o mal-estar de se sentir órfão de um amor “que tanto amava”. Poucos, à vontade, deslizam na esteira de sentimentos. O que fracassa não é a relação, mas nós ao deixarmos de olhar para não nos ver lá, onde, junto ao amor, deixamos de fluir. Interrompemos uma história de amor, mas não interrompemos velhas neuroses - a obsessão da boa imagem, o gozo em escapar de críticas e restrições. Amar é desatar nós.

Fidelidade, medo de ficar só, culpa ou dificuldade de elaborar o que nos bole por dentro? Como escapar da miserabilidade humana que banaliza os sentimentos e prega o amor mercenário? Por que poucos se empenham na manutenção do encantamento? Atribuir apenas ao outro a responsabilidade pela felicidade é injusto. É muita pretensão julgar que, sozinhos, somos capazes de fazer o outro feliz. Antigamente, diante do altar, um prometia ao outro fazê-lo feliz. A melhor forma de acabar com o encanto é entrar numa relação e aceitar tamanha carga. A chance da felicidade a dois é tramada na cumplicidade. Sem disputas e competições, podemos até tocar um pedacinho do céu.

Saramago, escritor português e prêmio Nobel, viveu amor intenso com Pilar del Rio, jornalista espanhola. Na época, Saramago vivia só. Embora atormentado com os rumos do mundo atual, exemplificava “o homem bem em sua própria pele”. Expressão que ilustra o sujeito apaziguado, em harmonia com seus demônios. Geralmente, os escritores são pessoas inquietas com o jogo do poder, a lama oculta nos subterrâneos das instituições. Fedor sufocado em frascos dourados. Saramago escancarou feridas - sacras e profanas. Contudo, soube realizar a conexão entre vida de fora e vida de dentro. Debruçado sobre o mundo, reverenciou o amor. Não estabeleceu dicotomia, construiu a ponte da felicidade enlaçando escrita e vida íntima.

Saramago registrou nos relógios da casa a hora em que conheceu Pilar. Todos paralisados na “hora do amor” - quatro da tarde! Artifício que eternizou a emoção do primeiro encontro - instante mágico, misterioso, delicioso! Inscrever a sensação de felicidade, prolongar, ao máximo, a condição de feliz. É quando, sob o sentimento de grandeza, potenciamos o belo, o contentamento por gostar. “Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter; ter deve ser a pior maneira de gostar”. Em linguagem poética, nos lembra o quão ridículo é confundir “gostar” com “possuir”.

Lamentar pela relação e pelo tempo em que, juntos, poderiam promover coisas valiosas. A sensação de que “algo se esvai sem justa causa” nos arrasa. Quando cada qual caminha díspares nas fantasias, é sofrimento que se espera. Saramago encontra em Pilar um lugar em que pudesse “ser”. A carne sente forte impulso em ser penetrada quando tocada fundo - algo cutuca o coração, mexe com as entranhas e desequilibra a libido. É a danação do desejo que chega e bota tudo de perna pro ar. O amor é a única tirania aceitável. Uma mulher de 35 anos se apaixona por um senhor de 63 anos. O que representa 28 anos de diferença quando os interesses são da mesma idade? Não existe amor desencontrado pela idade, existe amor que não se descobriu nas afinidades. Todos deveriam percorrer o caminho de dentro, ele oculta fiordes. Amor gestado no cimento das cidades, articulado e consumido no imediatismo do mercado, é amor frouxo e pouco suporta os trancos do coração.

Saramago metaforiza o homem que, embora idoso, não se envergonhou de continuar perseguindo o amor. Não se contentou com as migalhas de afeto que a vida lhe reservava. Lutou por muito mais. A grandiosidade do amor exige humildade e sabedoria. Como entrelaçar palavras e conjugar verbos de uma outra boca? Penetrar em sentimentos estrangeiros, diferentes concepções de vida e prazer? É o jogo do decifrar - debulhar o rosário da existência. Contentamento e alegria encontram um lugar no desejo. Saramago fez valer o desejo de felicidade, abandonou a arrogância e pediu ajuda a Pilar. Queria pular, com ela, os tocos da caminhada. Desvelar entraves, traumas e neuroses é preparar o caminho para o amor. Encontro sonhado e, muitas vezes, mal tratado.
Ocupamo-nos com os cabelos, o celular e o futebol, mas poucos se dedicam à aprendizagem. Como transitar melhor na vida intima e manejar as intermitências do coração? Amar, verbo intransitivo. Com Mário de Andrade descobrimos que “o amor deve nascer de correspondências, de excelências interiores. Espirituais, pensava...De noite uma ópera de Wagner, Brahms”. Quão profundo e sério é convidar uma pessoa para o amor! Compartilhar uma trajetória, tecer um tempo, destilar emoções. Se nos bastamos e não queremos dividir o pão da vida com o outro, evitemos o verbo amar. Amor mísero é o que nos espera quando mergulhamos na cultura do escape. Quando o parceiro, desencantado, escolhe o benefício da morte ao desimpedir-se para outro amor. Forma pouco sábia de se iniciar um novo romance.

Artigo publicado no C. Pensar em 7/8/2010

Nenhum comentário: